Dando continuidade às reflexões sobre a fé dentro da seção introdutória da série de Catequeses do Papa São João Paulo II sobre o Creio, propomos aqui as suas Catequeses nn. 9-10.
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL
9. Deus que se revela, fonte da fé do cristão
João Paulo II - 27 de março de 1985
1. Nosso ponto de partida na
Catequese sobre Deus que se revela permanece sempre o texto do Concílio
Vaticano II: “Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se e dar a conhecer o mistério da sua vontade (Ef 1,9),
pelo qual os homens, por Cristo, o Verbo feito carne, têm acesso ao Pai no
Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (Ef 2,18; 2Pd 1,4).
Por esta revelação, o Deus invisível (Cl
1,15; 1Tm 1,17), na abundância de sua
caridade, fala aos homens como a amigos (Ex
33,11; Jo 15,14-15) e com eles
convive (Br 3,38) a fim de os
convidar à comunhão com Ele e nela os acolher” (Dei Verbum, n. 2).
Já consideramos a possibilidade de
conhecer a Deus apenas com a capacidade da razão humana. Segundo a constante
doutrina da Igreja, expressa especialmente no Concílio Vaticano I (Dei
Filius, n. 2) e retomada pelo Concílio Vaticano II (Dei Verbum, n.
6), a razão humana possui tal capacidade e possibilidade: “Deus, princípio e
fim de todas as coisas - se diz -, pode ser conhecido com certeza a partir das
coisas criadas pela luz natural da razão humana (Rm 1,20)”, ainda que
a Revelação Divina seja necessária, porque “aquelas realidades divinas que, por
sua natureza, não são inacessíveis à razão humana (...) podem de igual modo ser
facilmente conhecidas - com firme certeza e sem qualquer erro - por todos,
inclusive na presente condição do gênero humano”.
A fé e a razão unidas (Ludwig Seitz) |
Este conhecimento de Deus por meio
da razão, ascendendo a Ele “a partir das coisas criadas”, corresponde à
natureza racional do homem. Corresponde também ao desígnio original de Deus, que
dotando o homem de tal natureza, quer poder ser conhecido por ele. “Deus, ao
criar e conservar tudo pelo Verbo (Jo 1,3), oferece aos homens um perene
testemunho de si nas coisas criadas (Rm 1,19-20)” (Dei Verbum,
n. 3). Este testemunho é oferecido como dom e, ao mesmo tempo, como objeto de
estudo por parte da razão humana. Mediante a atenta e perseverante leitura do
testemunho das coisas criadas, a razão humana se dirige a Deus e se aproxima d’Ele.
Esta é, em certo sentido, a via “ascendente”: pelos “degraus” das criaturas o homem se eleva a Deus, lendo o
testemunho do ser, da verdade, do bem e da beleza que as criaturas possuem em
si mesmas.
2. Esta via do conhecimento que, de
certa forma, tem sua origem no homem e em sua mente, permite à criatura subir ao
Criador, podemos chamá-la a via do “saber”. Há uma segunda via, a
via da “fé”, que tem sua origem exclusivamente em Deus. Estas duas vias são
diversas entre si, mas se encontram no mesmo homem e, em certo sentido, se
completam e se ajudam reciprocamente.
Diferentemente do conhecimento mediante
a razão, que parte “das criaturas”, as quais só indiretamente levam
a Deus, no conhecimento mediante a fé partimos da Revelação, na qual Deus “dá a conhecer a si mesmo” diretamente.
Deus se revela, isto é, permite-nos conhecer a Si mesmo, manifestando à
humanidade “o mistério da sua vontade” (Ef 1,9). A vontade de Deus
é que os homens, por meio de Cristo, Verbo feito homem, tenham acesso no
Espírito Santo ao Pai e se tornam participantes da natureza divina. Deus, pois,
revela ao homem “a Si mesmo”, revelando ao mesmo tempo o seu plano salvífico a
respeito do homem. Este misterioso projeto salvífico de Deus não é acessível
apenas ao raciocínio do homem. Portanto, mesmo a mais perspicaz leitura do testemunho
de Deus nas criaturas é incapaz de desvelar à mente humana estes horizontes
sobrenaturais. Essa [a mente] não abre ao homem “o caminho da salvação que vem do alto” (Dei
Verbum, n. 3), caminho que está estreitamente unido ao “dom que Deus faz
de Si” ao homem. Na
revelação de Si mesmo Deus “convida o homem à comunhão com Ele e nela o acolhe”
(cf. ibid., n. 2).
3. Somente tendo tudo isto diante
dos olhos podemos compreender o que é realmente a fé, qual é o conteúdo da
expressão “creio”.
Se é exato dizer que a fé consiste
em aceitar como verdadeiro aquilo que Deus revelou, o Concílio Vaticano II
oportunamente ressaltou que é também uma resposta do homem todo, destacando
sua dimensão “existencial” e “personalista”. Se, de fato, Deus “revela a Si
mesmo” e manifesta ao homem o “mistério salvífico de sua vontade”, é justo oferecer
a Deus que se revela a “obediência
da fé”, pela qual o homem total e livremente
se abandona a Deus, oferecendo-lhe “a
plena submissão do intelecto e da vontade” (Concílio Vaticano I, Dei
Filius), “voluntariamente assentindo à sua revelação” (cf. Dei Verbum, n. 5).
No conhecimento mediante a fé o
homem aceita como verdade todo o conteúdo sobrenatural e salvífico da Revelação;
todavia, este fato o introduz, ao mesmo tempo, em uma
relação profundamente pessoal com o próprio Deus que se revela. Se o
conteúdo próprio da Revelação é a “autocomunicação” salvífica de Deus, então a
resposta da fé é correta na medida em que o homem, aceitando como verdade esse
conteúdo salvífico, ao mesmo tempo “se abandona inteiramente a Deus”. Somente
um completo “abandono a Deus” por parte do homem constitui uma
resposta adequada.
10. Jesus Cristo, cumprimento definitivo da Revelação
João Paulo II - 03 de abril de 1985
1. A fé - isto é, o que se encerra
na expressão “creio” - permanece em uma relação essencial com a Revelação. A
resposta ao fato de que Deus revela “a Si mesmo” ao homem, e ao mesmo tempo
desvela diante dele o mistério da eterna vontade de salvá-lo mediante “a
participação da natureza divina”, é o “abandono em Deus” por parte do homem, o
qual que se exprime na “obediência da fé”. A fé é a obediência da razão
e da vontade a Deus que se revela. Esta “obediência” consiste antes de tudo em aceitar
“como verdade” aquilo que Deus revela: o homem permanece em harmonia
com a própria natureza racional neste acolher o conteúdo da Revelação. Mas
mediante a fé o homem se abandona por inteiro a este Deus que lhe revela a Si
mesmo, e então, enquanto recebe o dom “do Alto”, responde a Deus com
o dom da própria humanidade. Assim, com a obediência da razão e da vontade
a Deus que se revela, tem início um modo novo de existir de toda a pessoa
humana em relação a Deus.
A Revelação - e, por conseguinte,
também a fé - “supera” o homem, porque abre diante dele as perspectivas
sobrenaturais. Mas nestas perspectivas está posto o mais profundo cumprimento
das aspirações e dos desejos enraizados na natureza espiritual do homem: a verdade,
o bem, o amor, a alegria, a paz. Santo Agostinho expressou esta realidade com a
famosa frase: “Nosso coração está inquieto até que repouse em Ti” (Confissões,
I, 1). Santo Tomás de Aquino dedica as primeiras questões da segunda parte da Suma Teológica a demostrar, como que desenvolvendo
o pensamento de Santo Agostinho, que apenas na visão e no amor de Deus se encontra
a plenitude de realização da perfeição humana, e portanto o fim do homem. Por
isso a Divina Revelação se encontra, na fé, com a transcendente capacidade de
abertura do espírito humano à Palavra de Deus.
2. A Constituição conciliar Dei
Verbum faz notar que esta “economia da Revelação” se desenvolve desde
o princípio da história da humanidade: “se realiza através de atos e palavras
intimamente relacionados entre si, de forma que as obras, operadas por Deus na história da salvação, manifestam e
confirmam a doutrina e as realidades
significadas pelas palavras, enquanto que as palavras proclamam as obras e
elucidam o mistério nelas contido” (Dei Verbum, n. 2). Pode se dizer que
essa economia da Revelação contém em si uma particular “pedagogia divina”.
Deus “se comunica” gradualmente ao homem, introduzindo-o sucessivamente em sua sobrenatural
“autorrevelação”, até o ápice que é Jesus Cristo.
Ao mesmo tempo, toda a economia da
Revelação se realiza como história da salvação, cujo processo permeia
a história da humanidade desde o princípio. “Deus, ao criar e conservar tudo pelo
Verbo (Jo 1,3), oferece aos homens um perene testemunho de Si nas
coisas criadas (Rm 1,19-20) e tendo em vista abrir o caminho da
salvação que vem do alto, manifestou-se desde o princípio a nossos
primeiros pais” (Dei Verbum, n. 3).
Assim, pois, como desde o
princípio o “testemunho das coisas criadas” fala ao homem atraindo sua mente ao
Criador invisível, assim também desde o princípio perdura na história do homem
a autorrevelação de Deus, que exige uma justa resposta no “creio” do homem. Esta
Revelação não foi interrompida pelo pecado dos primeiros homens. Deus, de
fato, “após haverem pecado, prometeu-lhes a redenção, suscitando neles a
esperança da salvação (Gn 3,15) e cuidando sem cessar do gênero
humano, a fim de dar a vida eterna a todos aqueles que, perseverando nas boas
obras, buscam a salvação (Rm 2,6-7). No tempo prescrito chamou
Abraão, a fim
de fazer dele uma grande nação (Gn 12,2-3). Depois dos Patriarcas, através
de
Moisés e dos Profetas, instrui-a para que O reconhecesse como único Deus
vivo e verdadeiro, Pai providente e juiz justo, e para que esperasse o
Salvador prometido, preparando assim, no decorrer dos séculos, o caminho
do Evangelho” (Dei Verbum, n. 3).
A fé como resposta do homem à
palavra da Divina Revelação entrou na fase definitiva com a vinda de Cristo, quando
por fim Deus “falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2).
3. “Assim, Jesus Cristo, o Verbo
feito carne, ‘homem enviado aos homens’ (Carta
a Diogneto 7,4), ‘fala as palavras de Deus’ (Jo 3,34) e realiza
a obra da salvação que o Pai lhe deu a fazer (Jo 5,36; 17,4). Por isto,
aquele que O vê, vê o Pai (Jo 14,9) através de toda a sua presença e
manifestação - por palavras e obras, por sinais e milagres, e sobretudo por sua
Morte gloriosa e Ressurreição dentre os mortos -, e tendo enviado o Espírito da
verdade, leva a pleno cumprimento a Revelação e a confirma com
o testemunho divino: que Deus está conosco para nos libertar do pecado e das trevas
da morte e para nos ressuscitar para s vida eterna” (Dei Verbum, n. 4).
Crer em sentido cristão quer dizer acolher a definitiva autorrevelação de
Deus em Jesus Cristo, respondendo a ela com um “abandono em Deus”, do qual o
próprio Cristo é fundamento, vivo exemplo e mediador salvífico.
Tal fé inclui, pois, a aceitação
de toda a “economia cristã”
da salvação como uma nova e definitiva aliança, que
“não passará jamais”. Como diz o Concílio: “não se deve esperar nenhuma nova
revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (1Tm 6,14; Tt 2,13)” (Dei Verbum , n. 4)
Assim o Concílio, que na
Constituição Dei Verbum nos apresenta de modo conciso mas
completo toda a “pedagogia”
da Divina Revelação, nos ensina ao mesmo tempo o que é a fé, o que
significa “crer”, e de modo particular “crer de maneira cristã”, como que
respondendo ao convite do próprio Jesus: “Credes em Deus, crede também em mim”
(Jo 14,1).
Ícone de Jesus Cristo, definitiva autorrevelação de Deus |
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (27 de março e 03 de abril de 1985).
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