quinta-feira, 2 de junho de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Introdução 5

Dando continuidade às reflexões sobre a fé dentro da seção introdutória da série de Catequeses do Papa São João Paulo II sobre o Creio, propomos aqui as suas Catequeses nn. 9-10.

Para acessar a introdução geral às Catequeses, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL

9. Deus que se revela, fonte da fé do cristão
João Paulo II - 27 de março de 1985

1. Nosso ponto de partida na Catequese sobre Deus que se revela permanece sempre o texto do Concílio Vaticano II: “Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se e dar a conhecer o mistério da sua vontade (Ef 1,9), pelo qual os homens, por Cristo, o Verbo feito carne, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (Ef 2,18; 2Pd 1,4). Por esta revelação, o Deus invisível (Cl 1,15; 1Tm 1,17), na abundância de sua caridade, fala aos homens como a amigos (Ex 33,11; Jo 15,14-15) e com eles convive (Br 3,38) a fim de os convidar à comunhão com Ele e nela os acolher” (Dei Verbum, n. 2).
Já consideramos a possibilidade de conhecer a Deus apenas com a capacidade da razão humana. Segundo a constante doutrina da Igreja, expressa especialmente no Concílio Vaticano I (Dei Filius, n. 2) e retomada pelo Concílio Vaticano II (Dei Verbum, n. 6), a razão humana possui tal capacidade e possibilidade: “Deus, princípio e fim de todas as coisas - se diz -, pode ser conhecido com certeza a partir das coisas criadas pela luz natural da razão humana (Rm 1,20)”, ainda que a Revelação Divina seja necessária, porque “aquelas realidades divinas que, por sua natureza, não são inacessíveis à razão humana (...) podem de igual modo ser facilmente conhecidas - com firme certeza e sem qualquer erro - por todos, inclusive na presente condição do gênero humano”.

A fé e a razão unidas (Ludwig Seitz)

Este conhecimento de Deus por meio da razão, ascendendo a Ele “a partir das coisas criadas”, corresponde à natureza racional do homem. Corresponde também ao desígnio original de Deus, que dotando o homem de tal natureza, quer poder ser conhecido por ele. “Deus, ao criar e conservar tudo pelo Verbo (Jo 1,3), oferece aos homens um perene testemunho de si nas coisas criadas (Rm 1,19-20)” (Dei Verbum, n. 3). Este testemunho é oferecido como dom e, ao mesmo tempo, como objeto de estudo por parte da razão humana. Mediante a atenta e perseverante leitura do testemunho das coisas criadas, a razão humana se dirige a Deus e se aproxima d’Ele. Esta é, em certo sentido, a via “ascendente”: pelos “degraus” das criaturas o homem se eleva a Deus, lendo o testemunho do ser, da verdade, do bem e da beleza que as criaturas possuem em si mesmas.

2. Esta via do conhecimento que, de certa forma, tem sua origem no homem e em sua mente, permite à criatura subir ao Criador, podemos chamá-la a via do “saber”. Há uma segunda via, a via da “fé”, que tem sua origem exclusivamente em Deus. Estas duas vias são diversas entre si, mas se encontram no mesmo homem e, em certo sentido, se completam e se ajudam reciprocamente.
Diferentemente do conhecimento mediante a razão, que parte “das criaturas”, as quais só indiretamente levam a Deus, no conhecimento mediante a fé partimos da Revelação, na qual Deus “dá a conhecer a si mesmo” diretamente. Deus se revela, isto é, permite-nos conhecer a Si mesmo, manifestando à humanidade “o mistério da sua vontade” (Ef 1,9). A vontade de Deus é que os homens, por meio de Cristo, Verbo feito homem, tenham acesso no Espírito Santo ao Pai e se tornam participantes da natureza divina. Deus, pois, revela ao homem “a Si mesmo”, revelando ao mesmo tempo o seu plano salvífico a respeito do homem. Este misterioso projeto salvífico de Deus não é acessível apenas ao raciocínio do homem. Portanto, mesmo a mais perspicaz leitura do testemunho de Deus nas criaturas é incapaz de desvelar à mente humana estes horizontes sobrenaturais. Essa [a mente] não abre ao homem “o caminho da salvação que vem do alto” (Dei Verbum, n. 3), caminho que está estreitamente unido ao “dom que Deus faz de Si ao homem. Na revelação de Si mesmo Deus “convida o homem à comunhão com Ele e nela o acolhe” (cf. ibid., n. 2).

3. Somente tendo tudo isto diante dos olhos podemos compreender o que é realmente a fé, qual é o conteúdo da expressão “creio”.
Se é exato dizer que a fé consiste em aceitar como verdadeiro aquilo que Deus revelou, o Concílio Vaticano II oportunamente ressaltou que é também uma resposta do homem todo, destacando sua dimensão “existencial” e “personalista”. Se, de fato, Deus “revela a Si mesmo” e manifesta ao homem o “mistério salvífico de sua vontade”, é justo oferecer a Deus que se revela a “obediência da fé”, pela qual o homem total e livremente se abandona a Deus, oferecendo-lhe “a plena submissão do intelecto e da vontade” (Concílio Vaticano I, Dei Filius), “voluntariamente assentindo à sua revelação” (cf. Dei Verbum, n. 5).
No conhecimento mediante a fé o homem aceita como verdade todo o conteúdo sobrenatural e salvífico da Revelação; todavia, este fato o introduz, ao mesmo tempo, em uma relação profundamente pessoal com o próprio Deus que se revela. Se o conteúdo próprio da Revelação é a “autocomunicação” salvífica de Deus, então a resposta da fé é correta na medida em que o homem, aceitando como verdade esse conteúdo salvífico, ao mesmo tempo “se abandona inteiramente a Deus”. Somente um completo “abandono a Deus” por parte do homem constitui uma resposta adequada.

10. Jesus Cristo, cumprimento definitivo da Revelação
João Paulo II - 03 de abril de 1985

1. A fé - isto é, o que se encerra na expressão “creio” - permanece em uma relação essencial com a Revelação. A resposta ao fato de que Deus revela “a Si mesmo” ao homem, e ao mesmo tempo desvela diante dele o mistério da eterna vontade de salvá-lo mediante “a participação da natureza divina”, é o “abandono em Deus” por parte do homem, o qual que se exprime na “obediência da fé”. A fé é a obediência da razão e da vontade a Deus que se revela. Esta “obediência” consiste antes de tudo em aceitar como verdade” aquilo que Deus revela: o homem permanece em harmonia com a própria natureza racional neste acolher o conteúdo da Revelação. Mas mediante a fé o homem se abandona por inteiro a este Deus que lhe revela a Si mesmo, e então, enquanto recebe o dom “do Alto”, responde a Deus com o dom da própria humanidade. Assim, com a obediência da razão e da vontade a Deus que se revela, tem início um modo novo de existir de toda a pessoa humana em relação a Deus.
A Revelação - e, por conseguinte, também a fé - “supera” o homem, porque abre diante dele as perspectivas sobrenaturais. Mas nestas perspectivas está posto o mais profundo cumprimento das aspirações e dos desejos enraizados na natureza espiritual do homem: a verdade, o bem, o amor, a alegria, a paz. Santo Agostinho expressou esta realidade com a famosa frase: “Nosso coração está inquieto até que repouse em Ti” (Confissões, I, 1). Santo Tomás de Aquino dedica as primeiras questões da segunda parte da Suma Teológica a demostrar, como que desenvolvendo o pensamento de Santo Agostinho, que apenas na visão e no amor de Deus se encontra a plenitude de realização da perfeição humana, e portanto o fim do homem. Por isso a Divina Revelação se encontra, na fé, com a transcendente capacidade de abertura do espírito humano à Palavra de Deus.

2. A Constituição conciliar Dei Verbum faz notar que esta “economia da Revelação” se desenvolve desde o princípio da história da humanidade: “se realiza através de atos e palavras intimamente relacionados entre si, de forma que as obras, operadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras, enquanto que as palavras proclamam as obras e elucidam o mistério nelas contido” (Dei Verbum, n. 2). Pode se dizer que essa economia da Revelação contém em si uma particular “pedagogia divina”. Deus “se comunica” gradualmente ao homem, introduzindo-o sucessivamente em sua sobrenatural “autorrevelação”, até o ápice que é Jesus Cristo.
Ao mesmo tempo, toda a economia da Revelação se realiza como história da salvação, cujo processo permeia a história da humanidade desde o princípio. “Deus, ao criar e conservar tudo pelo Verbo (Jo 1,3), oferece aos homens um perene testemunho de Si nas coisas criadas (Rm 1,19-20) e tendo em vista abrir o caminho da salvação que vem do alto, manifestou-se desde o princípio a nossos primeiros pais” (Dei Verbum, n. 3).
Assim, pois, como desde o princípio o “testemunho das coisas criadas” fala ao homem atraindo sua mente ao Criador invisível, assim também desde o princípio perdura na história do homem a autorrevelação de Deus, que exige uma justa resposta no “creio” do homem. Esta Revelação não foi interrompida pelo pecado dos primeiros homens. Deus, de fato, “após haverem pecado, prometeu-lhes a redenção, suscitando neles a esperança da salvação (Gn 3,15) e cuidando sem cessar do gênero humano, a fim de dar a vida eterna a todos aqueles que, perseverando nas boas obras, buscam a salvação (Rm 2,6-7). No tempo prescrito chamou Abraão, a fim de fazer dele uma grande nação (Gn 12,2-3). Depois dos Patriarcas, através de Moisés e dos Profetas, instrui-a para que O reconhecesse como único Deus vivo e verdadeiro, Pai providente e juiz justo, e para que esperasse o Salvador prometido, preparando assim, no decorrer dos séculos, o caminho do Evangelho” (Dei Verbum, n. 3).
A fé como resposta do homem à palavra da Divina Revelação entrou na fase definitiva com a vinda de Cristo, quando por fim Deus “falou-nos por meio do Filho” (Hb 1,1-2).

3. “Assim, Jesus Cristo, o Verbo feito carne, ‘homem enviado aos homens’ (Carta a Diogneto 7,4), ‘fala as palavras de Deus’ (Jo 3,34) e realiza a obra da salvação que o Pai lhe deu a fazer (Jo 5,36; 17,4). Por isto, aquele que O vê, vê o Pai (Jo 14,9) através de toda a sua presença e manifestação - por palavras e obras, por sinais e milagres, e sobretudo por sua Morte gloriosa e Ressurreição dentre os mortos -, e tendo enviado o Espírito da verdade, leva a pleno cumprimento a Revelação e a confirma com o testemunho divino: que Deus está conosco para nos libertar do pecado e das trevas da morte e para nos ressuscitar para s vida eterna” (Dei Verbum, n. 4).
Crer em sentido cristão quer dizer acolher a definitiva autorrevelação de Deus em Jesus Cristo, respondendo a ela com um “abandono em Deus”, do qual o próprio Cristo é fundamento, vivo exemplo e mediador salvífico.
Tal fé inclui, pois, a aceitação de toda a “economia cristã da salvação como uma nova e definitiva aliança, que “não passará jamais”. Como diz o Concílio: “não se deve esperar nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (1Tm 6,14; Tt 2,13)” (Dei Verbum , n. 4)
Assim o Concílio, que na Constituição Dei Verbum nos apresenta de modo conciso mas completo toda a “pedagogia da Divina Revelação, nos ensina ao mesmo tempo o que é a fé, o que significa “crer”, e de modo particular “crer de maneira cristã”, como que respondendo ao convite do próprio Jesus: “Credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14,1).

Ícone de Jesus Cristo, definitiva autorrevelação de Deus

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (27 de março e 03 de abril de 1985).

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