“Vós, santos do
Senhor, bendizei-o para sempre!”.
Em nossas postagens anteriores já analisamos dois dos três
hinos da Liturgia das Horas para a Solenidade de Todos os Santos, celebrada
pelo Rito Romano no dia 01 de novembro (ou, no Brasil, transferida para o
domingo seguinte):
I e II Vésperas: Christe, redémptor ómnium, consérva tuos fámulos (Redentor de todos, Cristo);
Ofício das Leituras: Christe, caelórum habitátor alme (Dos santos todos fostes caminho);
Laudes: Iesu, salvátor
saeculi (Jesus, que o mundo salvastes).
Coro dos Santos Patriarcas (Luca Signorelli - Catedral de Orvieto, Itália) |
Concluindo
este breve ciclo, trazemos aqui o hino das Laudes (oração da manhã), Iesu, salvátor saeculi (Jesus, que o
mundo salvastes) que, assim como o hino do Ofício das Leituras, é uma composição anônima do século
X.
Publicamos a seguir seu texto
original, em latim, e sua tradução oficial para o português do Brasil,
seguidos de alguns comentários sobre teologia do hino.
Laudes: Iesu, salvátor saeculi
Iesu, salvátor saeculi,
redémptis ope súbveni,
et, pia Dei génetrix,
salútem posce míseris.
Coetus omnes angélici,
patriarchárum cúnei
ac prophetárum mérita
nobis precéntur véniam.
Baptísta tui praevius
et cláviger aethéreus
cum céteris apóstolis
nos solvant nexu críminis.
Chorus sacrátus mártyrum,
sacerdótum conféssio
et virginális cástitas
nos a peccátis ábluant.
Monachórum suffrágia
omnésque cives caelici
ánnuant votis súpplicum
et vitae poscant praemium.
Sit, Christe, tibi glória
cum Patre et Sancto Spíritu,
quorum luce mirífica
sancti congáudent pérpetim. Amen [1].
Laudes: Jesus, que o mundo salvastes
Jesus, que o mundo salvastes,
dos que remistes cuidai.
E vós, Mãe santa de Deus,
por nós a Deus suplicai.
Os coros todos dos Anjos,
patriarcal legião,
Profetas de tantos méritos,
pedi por nós o perdão.
Ó Precursor do Messias,
ó Ostiário dos céus,
com os Apóstolos todos,
quebrai os laços dos réus.
Santa Assembleia dos Mártires;
vós, Confessores, Pastores,
Virgens prudentes e castas,
rogai por nós pecadores.
Que os monges peçam por nós
e todos que o céu habitam:
a vida eterna consigam
os que na terra militam.
Honra e louvor tributemos
ao Pai e ao Filho também,
com seu Amor, um só Deus,
por todo o sempre. Amém [2].
Comentário:
Assim como o hino das Vésperas, o hino das Laudes da Solenidade de Todos os Santos já constava no Breviarium Romanum anterior à reforma litúrgica. Entoava-se, porém, uma versão do hino modificada pelo Papa Urbano VIII (†1644): “Salutis aeternae dator” (Doador da salvação eterna) [3].
A reforma do Concílio Vaticano II recuperou o texto original do poema, que é uma composição anônima do século X.
a) 1ª estrofe:
Este hino, como veremos, é bastante similar ao das Vésperas. Ambos começam, na 1ª estrofe, invocando Cristo e a Virgem Maria.
Jesus, primeiramente, é invocado como “salvátor saeculi”, “salvador do mundo” (saeculum, geralmente traduzido em relação ao tempo, “século”, emprega-se aqui como sinônimo de “mundo”). A Ele pedimos que “venha em nosso auxílio”, que “socorra os remidos” (redémptis ope súbveni).
Segue-se a invocação da “pia Dei génetrix”, a “piedosa Mãe de Deus”, a quem pedimos que “implore [ao seu Filho] salvação para nós, míseros” (salútem posce míseris).
Sobre a “dupla intercessão” de Jesus e Maria, “novo Adão” e “nova Eva”, diante do trono da misericórdia do Pai, confira nossa postagem sobre o hino das Vésperas.
b) 2ª estrofe:
A partir desta estrofe começa a “ladainha dos santos”, invocados em vários “coros”. Como vimos em nossa postagem sobre o hino de Vésperas, a Igreja venera os santos conforme as diversas vocações específicas que viveram (cf. o capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios).
Nos primeiros séculos, além dos santos mencionados na Escritura (Patriarcas e Profetas do Antigo Testamento e Apóstolos do Novo Testamento), eram venerados apenas os Mártires, as “testemunhas” que morreram defendendo a fé. Após o fim das perseguições, a veneração é estendida aos Confessores (santos “não-mártires”) e aos Ascetas, Monges e Virgens (que viveram uma especial a consagração a Cristo).
A 2ª estrofe começa, pois, invocando os Anjos, seguidos dos dois “coros” de santos do Antigo Testamento, os Patriarcas e os Profetas, aos quais se faz uma súplica:
“Coetus omnes angélici, patriarchárum cúnei ac prophetárum mérita nobis precéntur véniam” - “O coro de todos os anjos, todos os Patriarcas e Profetas: por seus méritos, supliquem para nós o perdão”.
Coros dos Santos Doutores (Confessores da fé) (Luca Signorelli - Catedral de Orvieto, Itália) |
c) 3ª estrofe:
A 3ª estrofe começa nomeando um santo que faz a ponte entre
os Profetas e os Apóstolos, entre o Antigo e o Novo Testamento: João Batista,
invocado aqui como “Baptísta tui praevius”
- “o Batista, teu Precursor” [de Jesus, que é o destinatário principal do hino,
como evidencia a 1ª estrofe].
Em nossas postagens sobre a história do culto a São João Batista evidenciamos a importância que ele teve desde os primeiros séculos,
tanto no Oriente como no Ocidente.
Após o Batista, introduzindo o “coro” dos Apóstolos, está o
“guardião das chaves do céu” (cláviger
aethéreus): São Pedro (cf. Mt
16,18-19). A tradução brasileira usa aqui a expressão “Ostiário dos céus” (do
latim óstium, “porta”), isto é, o
“porteiro” [4].
A Pedro o hino une “os outros Apóstolos” (cum céteris apóstolis), aos quais se
pede que “nos libertem dos laços do pecado” (nos solvant nexu críminis).
d) 4ª estrofe:
A 4ª estrofe prossegue invocando outros três “coros” de
santos: a “santa assembleia” dos Mártires (Chorus
sacrátus mártyrum), a “confissão” (profissão de fé) dos Sacerdotes (sacerdótum conféssio) e a “castidade”
das Virgens (virginális cástitas).
A tradução brasileira, em sintonia com a reforma conciliar,
utiliza para o 2º grupo tanto o termo “Confessores” quanto o termo “Pastores”.
Com efeito, a fim de evitar ambiguidades, a reforma litúrgica abandonou o termo
“Confessores”, preferindo “Pastores” para os santos sacerdotes (presbíteros e
Bispos), e invocando os demais apenas como “Santos” (diáconos, religiosos e
leigos).
Destaque também aqui, em relação à tradução brasileira, para
o acréscimo do adjetivo “prudentes” para as santas Virgens, que faz eco à
parábola de Mt 25,1-13.
De toda forma, aos três grupos de santos o hino pede que
“lavem-nos do pecado” (nos a peccátis
ábluant). Esta afirmação é particularmente significativa ao ser referida
aos mártires que “lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,13-14).
e) 5ª estrofe:
Concluindo a “ladainha” dos “coros” dos santos, a 5ª estrofe
invoca, por fim, os santos Monges e todos os demais Santos de Deus:
“Monachórum suffrágia
omnésque cives caelici ánnuant votis súpplicum et vitae poscant praemium”
- “Que o sufrágio dos monges, com todos
os cidadãos do céu acolham às preces dos suplicantes e nos obtenham o prêmio da
vida”.
A imagem do céu como “cidade”, subentendida na referência
aos santos como “cidadãos do céu” (cives
caelici) é utilizada no Livro do Apocalipse (Ap
21–22), retomada por Santo Agostinho em sua célebre obra De Civitate Dei (A cidade de Deus).
f) 6ª estrofe:
Como vimos anteriormente, fica claro na 1ª estrofe que o
destinatário principal da composição é Jesus, o Salvador do mundo, embora
também sejam invocados a Virgem Maria, os Anjos e Santos.
Assim, a última estrofe é uma doxologia (breve fórmula de
louvor) dirigida ao Filho, unido ao Pai e ao Espírito no mistério da Trindade:
“Sit, Christe, tibi
glória cum Patre et Sancto Spíritu, quorum luce mirífica sancti congáudent
pérpetim. Amen” - “Cristo, a Ti seja a glória, com o Pai e o Santo
Espírito, em cuja luz admirável os santos se alegram eternamente. Amém”.
Na versão do hino adaptada por Urbano VIII a doxologia
dirige à Trindade “virtus, honor, laus,
glória”, isto é, “poder, honra, louvor, glória”. Essa expressão remete-nos
ao louvor de Deus em Ap 7,12.
Na tradução oficial para o Brasil merece destaque a
referência ao Espírito Santo simplesmente como “o Amor” (com letra maiúscula)
do Pai e do Filho.
É mais uma vez Santo Agostinho que, à luz da afirmação da Primeira Carta de João, “Deus é amor” (1Jo 4,8.16), refere-se à Trindade como
“Aquele que ama” (o Pai), “Aquele que é amado” (o Filho) e “o Amor” (o Espírito
Santo) [5].
Notas:
[1] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus Liturgiae: Inni della
«Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis & Communia.
[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, p. 1423.
[4] Antes da reforma litúrgica do Vaticano II havia o ministério litúrgico do “ostiário”, uma das chamadas “ordens menores”. O ostiário era responsável
por abrir e fechar a porta da igreja, tocar os sinos e preparar o necessário para a celebração, exercendo portanto a
função de “sacristão”.
[5] cf. AGOSTINHO.
A Trindade (VIII,10–IX,4). São Paulo:
Paulus, 1995, pp. 284-294. Coleção: Patrística,
07.
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