“O Rei do universo nos
ressuscitará para uma vida eterna” (2Mc 7,9)
Os chamados “livros históricos” na Bíblia cristã são
compostos na verdade por quatro grupos de escritos: a “história
deuteronomista”, a “história cronística”, a “história helenística” e as
“novelas bíblicas”.
Em nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, após analisarmos as obras da “história deuteronomista” e da “história cronística”, nesta postagem contemplaremos os
dois representantes da “história helenística”: os Livros dos Macabeus (1Mc
e 2Mc).
1. Breve introdução
aos Livros dos Macabeus
Como vimos nas postagens sobre a “história do Cronista”, a
partir do ano 539 a. C. Israel passa a pertencer ao Império Persa Aquemênida.
Em 331 a. C., porém, Alexandre Magno da Macedônia conquista os territórios
persas, incluindo Israel.
Após a precoce morte de Alexandre, o Império foi dividido
entre seus generais. Inicialmente Israel ficou sob o domínio da dinastia
ptolomaica (ou lágida), do Egito. Porém, no contextos das guerras dos diádocos
(sucessores), passou no ano 200 a. C. ao domínio da dinastia selêucida da
Síria.
Os reis selêucidas inicialmente foram tolerantes com a
religião judaica. Porém, sobretudo no governo de Antíoco IV Epífanes (175-164
a. C.), houve uma tentativa de adequar Jerusalém à cultura e a religião gregas,
fenômeno conhecido como helenismo.
Os Livros dos Macabeus descrevem este período, marcada pela resistência judaica. Existem na verdade quatro livros com este título, sendo os dois últimos apócrifos. Os dois primeiros são considerados “deuterocanônicos”, isto é, da “segunda lista” (fazendo parte do Antigo Testamento grego, a Septuaginta, mas não da Bíblia Hebraica) [1].
O nome dos livros deve-se a Judas, filho do sacerdote
Matatias, grande líder da revolta judaica. Seu apelido, “Macabeu” poderia
significar “escolhido por Deus” ou “martelo” (contra os inimigos). Na Idade
Média foi incluído entre os “Nove da Fama”, máximos exemplos de coragem, junto
com outros dois personagens bíblicos (Josué e Davi).
O Primeiro Livro dos Macabeus (1Mc), obra
de um autor anônimo, provavelmente de Jerusalém. O livro narra acontecimentos que
vão do ano 175 ao ano 134 a. C.:
a) 1Mc 1–2: Introdução, recapitulando as conquistas de
Alexandre, o governo de Antíoco Epífanes e o início da revolta judaica com
Matatias;
b) 1Mc 3,1–9,22: Atividade de Judas Macabeu, filho de
Matatias ;
c) 1Mc 9,23–12,53: Atividade de Jônatas, irmão de Judas;
d) 1Mc 13,1–16,24: Atividade de Simão, irmão de Judas e
Jônatas.
Simão é sucedido por seu filho, João Hircano. Nesse período Israel
torna-se praticamente independente, governada pela dinastia judaica dos
asmoneus, até sua conquista pelos romanos em 63 a. C.. A redação dos dois
livros situa-se, pois, dentro desse período.
Judas Macabeu (Igreja de Todos os Santos - Leek, Inglaterra) |
O Segundo Livro dos
Macabeus (2Mc) seria um resumo de uma obra maior, escrita por um certo
Jasão de Cirene (colônia grega na atual Líbia). Este livro narra acontecimentos
paralelos a 1Mc, entre os anos 175 e
161 a. C.:
a) 2Mc 1–2: Prólogo, com duas cartas aos judeus do Egito;
b) 2Mc 3,1–5,10: As causas da revolta;
c) 2Mc 5,11–7,42: A perseguição de Antíoco Epífanes;
d) 2Mc 8,1–15,36: A atividade de Judas Macabeu;
e) 2Mc 15,37-39: Epílogo.
Deste segundo livro destacam-se:
- o martírio de Eleazar e da mãe com seus sete filhos por se
recusarem a participar de cultos pagãos (2Mc 6–7) - Como vimos em nossas postagens sobre o culto aos Santos do Antigo Testamento, esses personagens são comemorados pelo Martirológio Romano no dia 01 de agosto;
- a purificação do Templo sob Judas Macabeu após a morte de
Antíoco IV (2Mc 10), celebrada anualmente no Judaísmo na festa de Hannukah (“dedicação” em hebraico; τὰ ἐγκαίνια,
“encênias” em grego);
- e oração pelos mortos (2Mc 12), dando um passo
importante em relação à escatologia do Antigo Testamento (ver, neste sentido, o Livro da Sabedoria e o cap. 19 do Livro de Jó).
A teologia dos dois livros, com efeito, é bastante “elevada”.
1Mc defende a absoluta transcendência
de Deus, a ponto de não mencionar seu nome. 2Mc,
por sua vez, elenca diversos atributos divinos: sua majestade, sua providência,
sua santidade... Costuma-se associar 1Mc
ao grupo dos saduceus e 2Mc aos
fariseus.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
dos Livros dos Macabeus: Composição
harmônica
Analisaremos a seguir a leitura litúrgica dos Livros dos Macabeus segundo os critérios
de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa: composição harmônica e leitura semicontínua [2].
Começamos pela composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o
tempo ou a festa litúrgica.
Moeda de Antíoco IV Epífanes Este rei considerava-se a "viva manifestação dos deuses" |
a) Celebração Eucarística
Nos diversos tempos do Ano Litúrgico encontramos apenas uma leitura dos nossos livros em composição harmônica, mais especificamente em um domingo do Tempo Comum. Aqui as leituras do Antigo Testamento foram escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [3].
Assim, no XXXII Domingo do Tempo Comum do ano C lemos 2Mc 7,1-2.9-14 [4]. Em sintonia com a índole escatológica do final do Tempo Comum, que se prolonga até o início do Advento, a perícope traz um trecho do relato do martírio dos sete irmãos sob Antíoco Epífanes.
Cada um dos irmãos, antes de morrer, professa sua fé na ressurreição dos mortos: “O Rei do universo nos ressuscitará para uma vida eterna...”. No Evangelho desse dia (Lc 20,27-38) será Jesus a defender a ressurreição contra as questões levantadas pelos saduceus.
No Próprio dos Santos
temos uma leitura ad libitum, isto é,
à escolha dentre as várias opções de textos, para a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro). Trata-se
de 2Mc 12,43-46 [5], texto no qual Judas Macabeu manda oferecer um sacrifício
expiatório pelos pecados dos seus soldados mortos.
Sua ação é elogiada pelo autor do livro: “Ação justa e nobre, inspirada na sua crença
na ressurreição (...) Santo e piedoso
pensamento, este de orar pelos mortos” (vv. 43.46). Vale lembrar que as
mesmas leituras dessa Comemoração são indicadas para o sacramental das Exéquias.
Passando aos Comuns
dos Santos, formulários igualmente com várias opções de textos ad libitum, conforme as “categorias” de santos, identificamos três
perícopes da “história helenística” indicadas para o Comum dos mártires:
- 2Mc 6,18.21.24-31: o relato do martírio de Eleazar;
- 2Mc 7,1-2.9-14: o relato do martírio dos sete irmãos;
- 2Mc 7,1.20-23.27b-29: a fortaleza da mãe diante do martírio
[6].
Por fim, em relação à Celebração Eucarística, há ainda uma
leitura de Macabeus à escolha dentre
as Missas para diversas necessidades.
Na Missa pelos cristãos perseguidos sugere-se
a leitura de 1Mc 2,49-52.57-64 [7], a exortação de Matatias aos seus filhos
antes de morrer, recordando exemplos de fidelidade na provação (Abraão, Daniel
e os três jovens), e concluindo: “Compreendei,
portanto, que, de geração em geração, todos os que esperam em Deus não
desfalecem” (v. 61).
b) Sacramentais
Da Celebração Eucarística passamos aos sacramentais. Além das Exéquias,
como vimos acima, uma leitura dos nossos escritos é indicada ad libitum para a Dedicação de altar. Trata-se aqui de 1Mc 4,52-59 [8], a consagração do “novo altar dos holocaustos” (v. 53) no
contexto da purificação do Templo sob Judas Macabeu.
O candelabro de nove velas (hanukiá) usado na Festa da Dedicação do Templo (Não confundir com a menorah, com sete velas) |
c) Liturgia das Horas
Por fim, a última leitura em composição harmônica dos nossos
livros encontra-se na Liturgia das Horas,
como 2ª opção de leitura breve para a Hora
Média (09h) do Ofício dos fiéis defuntos: 2Mc 7,9b [9]. Este versículo é a
profissão de fé na ressurreição dos mortos proclamada por um dos jovens
mártires, como vimos acima: “O Rei do
universo nos ressuscitará para uma vida eterna”.
3. Leitura litúrgica
dos Livros dos Macabeus: Leitura
semicontínua
Após a composição harmônica, passamos ao segundo critério de
seleção dos textos bíblicos nas celebrações: a leitura semicontínua. Aqui se
leem os principais textos de um livro na sequência, oferecendo um contato mais
amplo com as Escrituras [10].
a) Celebração
Eucarística
Na Celebração Eucarística, os livros
do Antigo e do Novo Testamento são lidos de
modo semicontínuo nos dias de
semana do Tempo Comum, várias semanas cada um, conforme sua extensão [11].
Assim, nossos livros são lidos na XXXIII semana do Tempo Comum do ano ímpar, entre Sabedoria e Daniel, em sintonia com a índole escatológica do final do Tempo
Comum. As seis perícopes escolhidas dos Livros
dos Macabeus para essa semana são:
XXXIII semana do Tempo
Comum (ano ímpar):
Segunda-feira: 1Mc
1,10-15.41-43.54-57.62-64;
Terça-feira: 2Mc
6,18-31;
Quarta-feira: 2Mc
7,1.20-31;
Quinta-feira: 1Mc
2,15-29;
Sexta-feira: 1Mc
4,36-37.52-59;
Sábado: 1Mc 6,1-13
[12].
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas,
o “locus liturgicus” da leitura
semicontínua é o Ofício das Leituras. Também aqui os Livros dos Macabeus nos acompanham por uma semana no final do Ano
Litúrgico, no Ofício das Leituras da XXXI
semana do Tempo Comum, novamente entre
Sabedoria e Daniel.
As sete perícopes selecionadas aqui são:
Ofício das Leituras da
XXXI semana do Tempo Comum:
Domingo: 1Mc
1,1-24: Vitória e soberba dos gregos;
Segunda-feira: 1Mc
1,41-64: A perseguição de Antíoco;
Terça-feira: 1Mc
2,1.15-28.42-50.65-70: Revolta de
Matatias e sua morte;
Quarta-feira: 1Mc
3,1-26: Judas Macabeu;
Quinta-feira: 1Mc
4,36-59: Purificação e dedicação do
templo;
Sexta-feira: 2Mc
12,32-46: O sacrifício pelos mortos;
Sábado: 1Mc 9,1-2:
Morte de Judas Macabeu no combate [13].
A revolta dos Macabeus (Menorah do Knesset - Jerusalém) |
No ciclo bienal do
Ofício das Leituras, por sua vez, o qual ainda não possui tradução para o
Brasil, nossos livros são lidos por quase duas semanas, também no final do Ano
Litúrgico, entre a XXXII e a XXXIII
semanas do Tempo Comum no ano par.
Com efeito, como indica a Introdução Geral da Liturgia das Horas (n. 152), nos anos pares
desse ciclo bienal as leituras do Antigo Testamento no Tempo Comum narram “a
História da Salvação depois do exílio até o tempo dos Macabeus” [14].
Indicamos abaixo em negrito as leituras “inéditas” em
relação ao ciclo anual [15]:
Ofício das Leituras
da XXXII semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo e segunda-feira:
como no ciclo anual (domingo e segunda-feira da XXXI semana);
Terça-feira: 2Mc 6,12-3: Martírio
de Eleazar;
Quarta-feira: 2Mc 7,1-19: Martírio
dos sete irmãos;
Quinta-feira: 2Mc 7,20-41: Martírio
dos sete irmãos. A mãe e o filho menor;
Sexta-feira e sábado: como
ciclo anual (terça e quarta-feira da XXXI).
Ofício das Leituras
da XXXIII semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo e segunda-feira:
como no ciclo anual (quinta e sexta-feira da XXXI semana);
Terça-feira: 1Mc 6,1-17: O
fim de Antíoco;
Quarta-feira: como
no ciclo anual (sábado da XXXI semana).
Quanto à 2ª leitura do Ofício, a qual é tomada dos textos
patrísticos e eclesiásticos, cabe destacar - tanto no ciclo anual quanto no
ciclo bienal - a escolha de alguns parágrafos da Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo
contemporâneo do Concílio Vaticano II dedicados ao tema da paz (nn.
78.82-83.88-90), que traçam um paralelo antitético à perseguição de Antíoco
Epífanes.
Nos últimos dias, por sua vez, a 2ª leitura volta-se para os
temas da fé e da oração pelos mortos, com textos de vários Padres da Igreja.
Vitral representando o martírio dos sete irmãos sob Antíoco IV Epífanes |
Encerramos assim nosso percurso pela leitura litúrgica dos Livros dos Macabeus. Nas próximas
postagens desta série continuaremos analisando a presença dos escritos do
Antigo e do Novo Testamento nas celebrações do Rito Romano. Acomapnhe-nos!
Breve bibliografia
sobre os Livros dos Macabeus usada
para esta postagem:
ABADIE, Philippe. 1-2
Macabeus. in: RÖMER, Thomas;
MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São
Paulo: Loyola, 2015, pp. 773-786.
JULIÁN, Víctor Pastor. História
helenística. in: LAMADRID,
Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São
Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 291-328. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.
MARTÍN NIETO, Evaristo. Livros
dos Macabeus. in: OPORTO,
Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp.
673-726.
MCELENEY, Neil J. 1 e
2 Macabeus. in: BROWN, Raymond
E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo:
Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 835-882.
Para saber mais sobre
a Festa da Dedicação do Templo (Hanukkah):
DI SANTE, Carmine. Liturgia
judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp.
242-244.
Notas:
[1] Além de 1 e 2
Macabeus são livros deuterocanônicos Tobias,
Judite, Sabedoria, Eclesiástico (Sirácida) e Baruc. Há também adições em grego a Ester e Daniel.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 103.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. xxx.
[5] ibid., p. xxx.
[6] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. xxx.
[7] ibid., p. xxx.
[8] LECIONÁRIO IV: Lecionário
do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil.
São Paulo: Paulus, 2000, p. 188.
[9] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 1401; v. II, p. 1955; v. III, p.
1779; v. IV, p. 1791. A outra opção de leitura breve é Jó 19,25-26.
[10] cf. ALDAZÁBAL,
op. cit., p. 76.
[11] ibid., p.
105.
[12] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, pp. xxx.
[13] OFÍCIO DIVINO, v. IV, pp. 405.410.413.417.421.425.429.
[14] ALDAZÁBAL, José. Instrução
Geral sobre a Liturgia das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas,
2010, p. 88.
[15] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei
Verbum.
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