Prosseguindo
com a série das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, propomos hoje suas reflexões sobre as Vésperas da quarta-feira
da II semana do Saltério, proferidas nos dias 10 de novembro (Sl 61), 17 de novembro
(Sl 66) e 24 de novembro de 2004 (Cl 1,12-20).
125. A paz em Deus: Sl
61(62),2-12
10 de novembro de 2004
1. Ressoaram agora as doces
palavras do Salmo 61, um cântico de confiança, aberto por uma espécie de
antífona, repetida a meio do texto. É como uma serena e forte jaculatória, uma
invocação que é também um programa de vida: “Só em Deus a minha alma tem
repouso, porque d’Ele é que me vem a salvação! Só Ele é meu rochedo e salvação,
a fortaleza, onde encontro segurança!” (vv. 2-3.6-7).
2. Contudo, o Salmo, no seu
desenvolvimento, contrapõe duas espécies de confiança. São duas escolhas
fundamentais, uma boa e uma pervertida, que levam a dois comportamentos morais
diferentes. Antes de tudo, está a confiança em Deus, exaltada na invocação
inicial, onde entra em cena um símbolo de estabilidade e de segurança: o “rochedo”,
a rocha de defesa, ou seja, uma “fortaleza” e um baluarte de proteção.
O salmista recorda: “A minha
glória e salvação estão em Deus; o meu refúgio e rocha firme é o Senhor” (v.
8). Ele afirma isto depois de ter evocado as armadilhas hostis dos seus
inimigos que procuram “derrubá-lo” do seu posto (vv. 4-5).
"Só em Deus a minha alma tem repouso..." (Sl 61,2) (Ícone do "discípulo amado") |
3. Depois, há outra confiança, de tipo idolátrico, sobre a qual o orante fixa com insistência a sua atenção crítica. Trata-se de uma confiança que faz procurar a segurança e a estabilidade na violência, no roubo e na riqueza.
Então, o apelo torna-se claro e decisivo: “Não confieis na opressão, na violência nem vos gabeis de vossos roubos e enganos! E se crescerem vossas posses e riquezas, a elas não prendais o coração” (v. 11).
São três os ídolos aqui evocados e condenados como sendo contrários à dignidade do homem e à convivência social.
4. O primeiro deus falso é a violência, à qual infelizmente a humanidade continua a recorrer também em nossos dias ensanguentados. Este ídolo está acompanhado pelo enorme cortejo de guerras, opressões, prevaricações, torturas e assassinatos abomináveis, infligidos sem o mínimo remorso.
O segundo deus falso é o roubo, que se expressa na extorsão, na injustiça social, na usura, na corrupção política e econômica. Demasiadas pessoas cultivam a “ilusão” de satisfazer desta maneira a própria avidez.
Por fim, a riqueza é o terceiro ídolo ao qual “se apega o coração” do homem na esperança enganadora de se poder salvar da morte (cf. Sl 48) e garantir para si uma primazia de prestígio e de poder.
5. Servindo esta tríade diabólica, o homem esquece que os ídolos são soluções inconsistentes, aliás, danosas. Confiando nas coisas e em si mesmo, ele esquece-se de que é “um sopro... é mentira e ilusão”; se subisse na balança, “pesaria menos do que o vento” (v. 10; cf. Sl 38,6-7).
Se nós estivéssemos mais conscientes da nossa caducidade e dos limites próprios das criaturas, não optaríamos pelo caminho da confiança nos ídolos, nem organizaríamos a nossa vida sobre uma escala de pseudo-valores frágeis e inconsistentes. Ao contrário, a orientaríamos para outra confiança, a que tem o seu centro no Senhor, fonte de eternidade e de paz. De fato, unicamente a Ele “pertence o poder”; só Ele é fonte de graça; só Ele é o artífice de justiça; recompensando cada homem “conforme as suas obras” (vv. 12-13).
6. O Concílio Vaticano II aplicou aos sacerdotes o convite do Salmo 61 a “não prender o coração à riqueza” (v. 11b). O Decreto sobre o ministério e a vida dos presbíteros exorta: “Não apegando de forma alguma o coração às riquezas, evitem sempre toda a cupidez e abstenham-se cautelosamente de toda a espécie de lucro” (Presbyterorum ordinis, n. 17).
Contudo este apelo a rejeitar a confiança pervertida e a optar por aquilo que nos conduz a Deus é válido para todos e deve tornar-se a nossa “estrela polar” no comportamento quotidiano, nas decisões morais, no estilo de vida.
7. Sem dúvida este é um caminho difícil, que comporta, para o justo, também provas e opções corajosas, mas sempre marcadas pela confiança em Deus (Sl 61,2-3). Sob esta luz os Padres da Igreja viram no orante do Salmo 61 a prefiguração de Cristo, e colocaram a invocação inicial de total confiança e adesão a Deus em seus lábios.
A este propósito, no Comentário ao Salmo 61, Santo Ambrósio argumenta assim: “O Senhor nosso Deus, ao assumir sobre si a condição humana a fim de purificá-la na sua pessoa, que deveria ter feito imediatamente, a não ser cancelar a influência maléfica do antigo pecado? Por meio da desobediência, isto é, violando as prescrições divinas, tinha-se insinuado a culpa, rastejando. Então, antes de tudo, foi preciso restabelecer a obediência, para aplacar a sede do pecado... Assumiu sobre si a obediência, para derramá-la sobre nós” (Comentário a doze salmos, 61,4: Saemo, VIII, Milão-Roma, 1980, p. 283).
126. Todos os povos celebram o Senhor: Sl 66(67),2-8
17 de novembro de 2004
1. “A terra produziu sua colheita”, exclama o Salmo que acabamos de proclamar, o 66, um dos textos inseridos na Liturgia das Vésperas. A frase faz-nos pensar num hino de agradecimento dirigido ao Criador pelos frutos da terra, sinal das bênçãos divinas. Mas este elemento natural está profundamente ligado com o histórico: os frutos da natureza são tomados como ocasião para pedir repetidamente a Deus que abençoe o seu povo (vv. 2.7-8), de maneira que todas as nações da terra se dirijam a Israel, procurando por seu intermédio alcançar o Deus Salvador.
Por conseguinte, tem-se na composição uma perspectiva universal e missionária, em continuidade com a promessa divina feita a Abraão: “Em ti serão abençoadas todas as famílias da terra” (Gn 13,3; 18,18; 28,14).
2. A bênção divina pedida por Israel manifesta-se concretamente na fertilidade dos campos e na fecundidade, isto é, no dom da vida. Por isso o Salmo começa com um versículo que invoca a célebre bênção sacerdotal referida no Livro dos Números: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti a sua face e te dê a paz!” (Nm 6,24-26; cf. Sl 66,2).
O tema da bênção se repete no final do Salmo, onde comparecem os frutos da terra (vv. 7-8). Mas ali se encontra o tema universal que confere à substância espiritual de todo o hino uma surpreendente amplitude de horizontes. Trata-se de uma abertura que reflete a sensibilidade de um Israel preparado para se confrontar com todos os povos da terra. Talvez se deva situar a composição do Salmo depois da experiência do exílio na Babilônia, quando o povo já iniciara a vicissitude da Diáspora entre nações estrangeiras e em novas regiões.
3. Graças à bênção implorada por Israel, toda a humanidade poderá conhecer “o caminho” e “a salvação” do Senhor (v. 3), ou seja, o seu projeto salvífico. É revelado a todas as culturas e todas as sociedades o Deus que julga e governa os povos e as nações de todas as partes da terra, conduzindo cada um rumo a horizontes de justiça e de paz (v. 5).
Trata-se do grande ideal para o qual todos tendemos, do anúncio arrebatador que surge do Salmo 66 e de tantas páginas proféticas (cf. Is 2,1-5; 60,1-22: Jó 4,1-11; Sf 3,9-10; Ml 1,11).
Será também esta a proclamação cristã, que São Paulo traçará recordando que a salvação de todos os povos é o centro do “mistério”, isto é, do desígnio divino salvífico: “Os gentios são admitidos à mesma herança, membros do mesmo Corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho” (Ef 3,6).
4. Agora Israel pode pedir a Deus para que todas as nações sejam envolvidas no seu louvor: será um coro universal. “Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor, que todas as nações vos glorifiquem!”, repete-se no Salmo (vv. 4.6).
O desejo do Salmo anuncia o acontecimento descrito pela Carta aos Efésios, quando menciona talvez o muro de separação que no templo de Jerusalém mantinha separados os hebreus dos pagãos: “Mas, em Cristo Jesus, vós, que outrora estáveis longe, agora, estais perto, pelo sangue de Cristo. Com efeito, Ele é a nossa paz, Ele que, dos dois povos, fez um só e destruiu o muro de separação, a inimizade... Portanto, já não sois estrangeiros nem migrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2,13-14.19).
Provém daqui uma mensagem para nós: devemos abater os muros das divisões, da hostilidade e do ódio, para que a família dos filhos de Deus se reencontre em harmonia na única mesa, bendizendo e louvando o Criador pelos dons que Ele concede a todos, sem distinções (cf. Mt 5,43-48).
5. A tradição cristã releu o Salmo 66 em chave cristológica e mariológica. Para os Padres da Igreja a terra que “produziu sua colheita” é a Virgem Maria que dá à luz Cristo Senhor.
Assim, por exemplo, São Gregório Magno, na Exposição sobre o Primeiro Livro dos Reis, comenta este versículo, relacionando-o com muitos outros trechos da Escritura: “Maria é justamente chamada ‘monte rico de frutos’, porque dela nasceu um fruto ótimo, ou seja, um homem novo. E o profeta, vendo-a bela e adornada na glória da sua fecundidade, exclama: ‘Brotará um rebento do tronco de Jessé, e um renovo brotará das suas raízes’ (Is 11,1). Davi, exultando pelo futuro deste monte, diz a Deus: ‘Que os povos te louvem, ó Deus! Todos os povos te louvem! A terra deu o seu fruto’. Sim, a terra deu o seu fruto, porque Aquele que a Virgem gerou não o concebeu por obra do homem, mas porque o Espírito Santo espalhou sobre ela a sua sombra. Por isso o Senhor diz ao rei e profeta Davi: ‘Hei de colocar no teu trono um descendente da tua família’ (Sl 131,11). Por isso Isaías afirma: ‘E o fruto da terra será grandeza e honra’ (Is 4,2). De fato, Aquele que a Virgem gerou não foi unicamente “homem santo”, mas também ‘Deus poderoso’ (Is 9,5)” (Textos marianos do primeiro milênio, III, Roma, 1990, p. 625).
127. Cristo, o Primogênito de toda a criatura e o Primogênito dentre os mortos: Cl 1,12-20
24 de novembro de 2004
1. Acaba de ressoar o grande hino cristológico com que se inicia a Carta aos Colossenses. Nele sobressai, precisamente, a figura gloriosa de Cristo, coração da Liturgia e centro de toda a vida eclesial. Porém, o horizonte do hino alarga-se depressa à criação e à redenção, envolvendo todos os seres criados e toda a história.
Neste cântico é possível vislumbrar o impulso de fé e de oração da antiga comunidade cristã, e o Apóstolo capta a sua voz e o seu testemunho, imprimindo, contudo, a sua marca pessoal no hino.
2. Depois de uma introdução, em que se dá graças ao Pai pela redenção (vv. 12-14), duas são as estrofes em que se divide este cântico, que a Liturgia das Vésperas volta a propor em cada semana. A primeira celebra Cristo como o “Primogênito de toda a criatura”, ou seja, gerado antes de todos os seres, afirmando assim a sua eternidade que transcende o espaço e o tempo (vv. 15-18a). Ele é a “imagem”, o “ícone” visível de Deus, que permanece invisível no seu mistério. Esta foi a experiência de Moisés que, no seu desejo ardente de lançar um olhar sobre a realidade pessoal de Deus, recebeu a seguinte resposta: “Tu não poderás ver a minha face, pois o homem não pode contemplar-me e continuar a viver” (Ex 33,20; cf. também Jo 14,8-9).
Contudo, o rosto do Pai Criador do universo torna-se acessível em Cristo, artífice da realidade criada: “Porque n’Ele é que tudo foi criado... por Ele e para Ele foram feitos” (vv. 16-17). Por conseguinte, Cristo, por um lado, é superior às realidades criadas, mas, por outro, é envolvido na sua criação. Por isso, podemos vê-lo como “imagem de Deus invisível”, que se tornou próximo de nós através do ato da criação.
3. O louvor em honra a Cristo orienta-se, na segunda estrofe (vv. 18b-20), para outro horizonte: o da salvação, da redenção, da regeneração da humanidade por Ele criada, mas que, pecando, tinha caído na morte.
Pois bem, a “plenitude” da graça e do Espírito Santo, que o Pai depositou no Filho, faz com que Ele, morrendo e ressuscitando, possa comunicar-nos uma nova vida (vv. 19-20).
4. Portanto, Ele é celebrado como o “Primogênito entre os mortos” (v. 18b). Com a sua “plenitude” divina, mas também com o seu sangue derramado na cruz, Cristo “reconcilia” e “pacifica” todas as realidades celestes e terrenas. Assim, Ele as restitui à sua situação original, voltando a criar a harmonia primordial, desejada por Deus segundo o seu projeto de amor e de vida. Assim, a criação e a redenção estão ligadas entre si como etapas de uma única história de salvação.
5. Segundo o nosso costume, dediquemos agora espaço à meditação dos grandes mestres da fé, os Padres da Igreja. Será um deles que nos orientará na reflexão sobre a obra redentora, realizada por Cristo no seu sangue sacrifical.
Comentando o nosso hino, São João Damasceno, no Comentário às Cartas de São Paulo a ele atribuído, escreve: “São Paulo fala de ‘redenção mediante o seu sangue’ (Ef 1,7). Com efeito, é dado como resgate o sangue do Senhor, que conduz os prisioneiros da morte para a vida. Não era absolutamente possível, para aqueles que estavam sujeitos ao reino da morte, libertarem-se de outra maneira, a não ser mediante Aquele que se tornou participante da morte juntamente conosco... Da operação realizada com a sua vinda, conhecemos a natureza de Deus, que existia antes da sua vinda. Com efeito, são obras de Deus a destruição da morte, a restituição da vida e a nova orientação do mundo para Deus. Por isso, diz: ‘Ele é a imagem do Deus invisível’ (Cl 1,15), para manifestar que é Deus, embora Ele não seja o Pai, mas a imagem do Pai, e tem a identidade com Ele, apesar de não ser Ele” (I libri della Bibbia interpretati dalla grande tradizione, Bolonha, 2000, pp. 18.23).
Em seguida, João Damasceno conclui com um olhar de conjunto sobre a obra salvífica de Cristo: “A morte de Cristo salvou e renovou o homem; e restituiu os anjos à alegria primitiva, por causa dos que foram salvos, e reuniu as realidades inferiores com as superiores... Com efeito, instaurou a paz e eliminou a inimizade. Por isso, os anjos diziam: ‘Glória a Deus no alto dos céus e paz na terra’ (Lc 2,14)” (ibid., p. 37).
"Que o Senhor e nosso Deus nos abençoe" (Sl 66,8) (O sacerdote Melquisedec abençoa o patriarca Abraão - Hippolyte Flandrin) |
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