Dando
continuidade às suas Catequeses sobre os salmos e cânticos das Vésperas, o Papa
João Paulo II refletiu sobre os textos da segunda-feira da II semana do
Saltério nos dias 29 de setembro (Sl 44,2-10), 06 de outubro (Sl 44,11-18) e 13
de outubro de 2004 (Ef 1,3-10).
119. As núpcias do Rei I: Sl 44(45),2-10
29 de setembro de 2004
1.
“Transborda um poema do meu coração; vou cantar-vos, ó Rei, esta minha canção”
(v. 2): estas palavras, inseridas na abertura do Salmo 44, orientam o leitor no
que se refere ao caráter fundamental deste hino. O escriba da corte que o
compôs revela-nos imediatamente que se trata de um cântico em honra do soberano
hebraico. Aliás, voltando a percorrer os versículos da composição, nota-se que
se está na presença de um epitalâmio, ou seja, de um cântico nupcial.
Os
estudiosos comprometeram-se em identificar as coordenadas históricas do Salmo,
tendo como base alguns indícios como a ligação da rainha à cidade fenícia de
Tiro (v. 13), mas sem conseguir realizar uma identificação exata do casal real.
É relevante o fato de que na cena há um rei hebraico, porque isto permitiu que
a tradição judaica transformasse o texto em cântico ao rei-Messias, e que a tradição
cristã voltasse a ler o Salmo em chave cristológica e, em virtude da presença
da rainha, também em perspectiva mariológica.
2.
A Liturgia das Vésperas faz-nos
usar este Salmo como oração, subdividindo-o em dois momentos. Agora nós ouvimos
a primeira parte (vv. 2-10) que, depois da introdução já evocada do escriba
autor do texto, apresenta um retrato maravilhoso do soberano que está para
celebrar as suas núpcias.
Por
isso o Judaísmo reconheceu no Salmo 44 um cântico nupcial, que exalta a beleza
e a intensidade do dom de amor entre os cônjuges. Em particular, a mulher pode
repetir com o Cântico dos Cânticos: “O meu amado é para mim e eu para ele” (Ct 2,6); “Eu sou para o meu amado e o
meu amado é para mim” (Ct 6,3).
3. O perfil do esposo real é traçado de modo solene, com o recurso a todos os aspectos de um cenário de corte. Ele tem condecorações militares (vv. 4-6), a que se acrescentam suntuosas vestes perfumadas, enquanto ao fundo brilham os palácios revestidos de marfim nas suas salas grandiosas e ressoantes de músicas (vv. 9-10). No centro eleva-se o trono e é mencionado o cetro, dois sinais do poder e da investidura real (vv. 7-8).
Nesta altura, gostaríamos de sublinhar dois elementos. Em primeiro lugar, a beleza do esposo, sinal de um esplendor interior e da bênção divina: “Sois tão belo, o mais belo entre os filhos dos homens!” (v. 3). Precisamente com base neste versículo, a tradição cristã representou Cristo em forma de homem perfeito e fascinante. Em um mundo muitas vezes marcado por torpezas e fealdades, esta imagem é um convite a encontrar a “via pulchritudinis” na fé, na teologia e na vida social, para ascender à beleza divina.
4. Porém, a beleza não é um fim em si mesma. A segunda nota que gostaríamos de propor diz respeito exatamente ao encontro entre beleza e justiça. Com efeito, o soberano avança “em defesa da fé, da justiça e verdade” (v. 5); ele “ama a justiça e odeia a maldade” (v. 8) e o seu “cetro real é sinal de justiça” (v. 7). A beleza deve-se unir à bondade e à santidade de vida, de maneira a fazer resplandecer no mundo o rosto luminoso de Deus bom, admirável e justo.
Segundo os estudiosos, no v. 7 o apelativo “Deus” seria dirigido ao próprio rei, porque consagrado pelo Senhor e, portanto, de certa forma pertencente à área divina: “O teu trono, ó Deus (como o de um deus), é eterno, é sem fim”. Ou, então, poderia ser uma invocação ao único rei supremo, o Senhor, que se debruça sobre o rei-Messias. A Carta aos Hebreus, aplicando o Salmo a Cristo, não hesita em reconhecer a divindade plena e não meramente simbólica do Filho que entrou na glória (cf. Hb 1,8-9).
5. Na esteira desta leitura cristológica, concluímos remetendo para a voz dos Padres da Igreja, que a cada versículo atribuem ulteriores valores espirituais. Assim, sobre a frase do Salmo em que se diz que “Deus, para sempre, vos deus sua bênção” (v. 3), São João Crisóstomo tece a seguinte aplicação cristológica: “O primeiro Adão foi cumulado de uma grandíssima maldição, mas o segundo, de grande bênção. O primeiro tinha ouvido: ‘Maldita seja a terra por tua causa’ (Gn 3,17) e, de novo: ‘Maldito o que executa com negligência o mandato do Senhor!’ (Jr 48,10); ‘Maldito o que não respeitar as palavras desta lei’ (Dt 27,26) e ‘O enforcado é uma maldição de Deus’ (Dt 21,23). Vês quantas maldições? Foste libertado de todas estas maldições por obra de Cristo, que se fez maldição (cf. Gl 3,13): com efeito, assim como se humilhou para depois te erguer e morreu para te tornar imortal, assim tornou-se maldição para te encher de bênção. O que é que podes comparar com esta bênção, quando por meio de uma maldição te concede uma bênção? De fato, Ele não tinha necessidade de bênção, mas concede-te a mesma” (Expositio in Psalmum XLIV, 4, PG 55, 188-189).
120. As núpcias do Rei II: Sl 44(45),11-18
06 de outubro de 2004
1. O doce retrato feminino que nos foi oferecido constitui o segundo quadro do díptico com o qual se compõe o Salmo 44, um sereno e jubiloso cântico nupcial, que a Liturgia das Vésperas nos faz ler. Assim, depois de ter contemplado o rei que está celebrando as núpcias (v. 2-10), agora os nossos olhos fixam-se na figura da rainha-esposa (vv. 11-18). Esta perspectiva nupcial permite que dediquemos o Salmo a todos os casais que vivem com intensidade e vigor interior o seu Matrimônio, sinal de um “mistério grandioso”, como sugere Paulo, o do amor do Pai pela humanidade e de Cristo pela sua Igreja (cf. Ef 5,32). Contudo, o Salmo apresenta um ulterior horizonte.
De fato, no cenário encontra-se o rei hebreu e precisamente nesta perspectiva a tradição judaica sucessiva leu nele um perfil do Messias davídico, enquanto o Cristianismo transformou o hino num cântico em honra a Cristo.
2. Mas agora a nossa atenção fixa-se no perfil da rainha que o poeta da corte, autor do Salmo (cf. v. 2), pinta com grande delicadeza e sentimento. A indicação da cidade fenícia de Tiro (v. 13) faz supor que se trata de uma princesa estrangeira. O apelo a esquecer o povo e a casa paterna (v. 11), do qual a princesa teve que se afastar, adquire então um significado particular.
A vocação nupcial é uma mudança na vida e altera a existência, como já emerge no Livro do Gênesis: “O homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne” (Gn 2,24). A rainha-esposa caminha com o seu cortejo nupcial, que leva os dons, em direção ao rei, deslumbrado pela sua beleza (vv. 12-13).
3. É relevante a insistência com que o salmista exalta a mulher: ela é “majestosa” (v. 14) e esta magnificência é expressa pelo hábito nupcial, completamente decorado de ouro e enriquecido com preciosos bordados (vv. 14-15).
A Bíblia ama a beleza como reflexo do esplendor do próprio Deus; também as vestes podem ser sinal de uma luz interior resplandecente, de uma candura da alma.
O pensamento corre paralelamente, por um lado, para as páginas do Cântico dos Cânticos (cf. Ct 4.7) e, por outro, para a página do Apocalipse que descreve as “núpcias do Cordeiro”, isto é, de Cristo com a comunidade dos redimidos, realçando o valor simbólico das vestes nupciais: “Chegou o momento das núpcias do Cordeiro; a sua Esposa já está pronta. Ele ofereceu-lhe um vestido de linho resplandecente e puro. O linho representa as boas obras dos santos” (Ap 19,7-8).
4. Paralelamente à beleza, é exaltada a alegria que transparece no jubiloso cortejo das “virgens amigas”, as donzelas que acompanham a esposa “com grande alegria” (vv. 15-16). O júbilo genuíno, muito mais profundo que a simples alegria, é expressão de amor, que participa no bem da pessoa amada com serenidade de coração.
Mas, segundo as palavras conclusivas de bons votos, delineia-se outra realidade radicalmente intrínseca ao Matrimônio: a fecundidade. De fato, fala-se de “filhos” e de “gerações” (vv. 17-18). O futuro, não só da dinastia, mas também da humanidade, realiza-se precisamente porque o casal oferece ao mundo novas criaturas.
Trata-se de um tema relevante nos nossos dias, no Ocidente muitas vezes incapaz de confiar a própria existência ao futuro através da geração e da tutela de novas criaturas, que continuem a civilização dos povos e realizem a história da salvação.
5. Muitos Padres da Igreja, como se sabe, leram o retrato da rainha aplicando-o a Maria, a partir do apelo inicial: “Escutai, minha filha, olhai, ouvi isto...” (v. 11). Assim acontece, por exemplo, na Homilia sobre a Mãe de Deus de Crisipo de Jerusalém, um monge capadócio que foi um dos fundadores do mosteiro de Santo Eutímio, na Palestina, e, depois da sua ordenação sacerdotal, foi guardião da Santa Cruz na Basílica da Anastasis em Jerusalém.
“Dirige-se a ti o meu discurso”, disse ele, dirigindo-se a Maria, “a ti que estás destinada a ser esposa do grande soberano; dirige-se a ti o meu discurso, a ti que estás para conceber o Verbo de Deus, do modo que Ele conhece... ‘Escuta filha e vê, presta atenção’; verifica-se de fato o feliz anúncio da redenção do mundo. Presta atenção e o que ouvires aliviará o teu coração... ‘Esquece o teu povo e a casa de teu pai’: não prestes atenção aos parentes terrenos, porque tu serás transformada numa rainha celeste. E ouve quanto te ama Aquele que é o Criador e Senhor de todas as coisas. ‘Porque o rei deixou-se prender pela tua beleza’: o próprio Pai te tomará como sua esposa; o Espírito predisporá todas as condições necessárias para estas núpcias... Não penses que darás à luz um menino humano, ‘porque Ele é o teu Senhor e tu o adorarás’. O teu Criador tornou-se o teu menino; irás concebê-lo e, com os outros, o adorarás como teu Senhor” (Textos marianos do primeiro milênio, I, Roma, 1988, pp. 605-606).
121. O plano divino da salvação: Ef 1,3-10
13 de outubro de 2004
1. Estamos diante do solene hino de bênção que abre a Carta aos Efésios, uma página de grande densidade teológica e espiritual, admirável expressão da fé e talvez da Liturgia da Igreja dos tempos apostólicos.
O hino é reproposto, por quatro vezes, em todas as semanas em que se desenvolve a Liturgia das Vésperas (cf. Catequese n. 99), para que o fiel possa contemplar e apreciar este grandioso ícone de Cristo, centro da espiritualidade e do culto cristão, mas também princípio de unidade e de sentido do universo e de toda a história. A bênção eleva-se da humanidade ao Pai que está nos céus (v. 3), partindo da obra salvífica do Filho.
2. Ela inicia com o eterno projeto divino, que Cristo está chamado a realizar. Neste desígnio brilha antes de tudo a nossa eleição para sermos “santos e imaculados”, não somente a nível ritual - como pareceriam sugerir estes adjetivos usados no Antigo Testamento para o culto sacrifical -, mas “no amor” (v. 4). Trata-se, por conseguinte, de uma santidade e de uma pureza moral, existencial e interior.
Contudo, o Pai tem em mente para nós uma meta ulterior: destina-nos, através de Cristo, a acolher o dom da dignidade filial, tornando-nos filhos no Filho e irmãos de Jesus (cf. Rm 8,15.23; 9,4; Gl 4,5). Este dom da graça efunde-se através “do Filho bem-amado”, o Unigênito por excelência (vv. 5-6).
3. Desta maneira, o Pai realiza em nós uma transformação radical: uma libertação total do mal, “a redenção”, a “remissão dos pecados” pelo o sangue de Cristo, derramando sobre nós “sua graça transbordante e inesgotável” (cf. v. 7). A imolação de Cristo na cruz, ato supremo de amor e de solidariedade, derrama sobre nós um raio superabundante de luz, de “saber e inteligência” (v. 8). Somos criaturas transfiguradas: cancelado o nosso pecado, conhecemos o Senhor em plenitude. E sendo o conhecimento, na linguagem bíblica, expressão de amor, ele introduz-nos mais profundamente no “mistério” da vontade divina (v. 9).
4. Um “mistério”, isto é, um projeto transcendente e perfeito, que tem como conteúdo um admirável plano salvífico: “em Cristo, reunir todas as coisas: as da terra e as do céu.” (v. 10). O texto grego sugere que Cristo se tornou o kephalaion, ou seja, o ponto cardeal, o eixo central para o qual converge e adquire sentido toda a criação. A mesma palavra grega remete para outra, preferida pelas Cartas aos Efésios e aos Colossenses: kephalé, “cabeça”, que indica a função cumprida por Cristo no corpo da Igreja.
Agora o olhar é mais amplo e cósmico, mesmo incluindo a dimensão eclesial mais específica da obra de Cristo. Ele reconciliou consigo todas as coisas, “pacificando pelo sangue de sua cruz tudo aquilo que por Ele foi criado, o que há nos céus e o que existe sobre a terra” (Cl 1,20).
5. Concluímos a nossa reflexão com uma oração de louvor e de gratidão pela redenção de Cristo realizada em nós. Fazemo-lo com as palavras de um texto conservado num antigo papiro do século IV:
“Nós te invocamos, ó Senhor Deus. Tu conheces todas as coisas, nada passa despercebido aos teus olhos, Mestre da verdade. Criastes o universo e velas sobre cada ser. Tu guias pelo caminho da verdade aqueles que andavam nas trevas e na sombra da morte. Tu queres salvar todos os homens e fazer com que conheçam a verdade. Todos juntos, oferecemos-te louvores e hinos de agradecimento”.
O orante continua: “Tu redimiste-nos, com o sangue precioso e imaculado do teu único Filho, de toda a corrupção e da escravidão. Libertaste-nos do demônio e concedeste-nos glória e liberdade. Estávamos mortos e fizeste-nos renascer, alma e corpo, no Espírito. Estávamos manchados e purificaste-nos. Por conseguinte, pedimos-te, Pai das misericórdias e Deus de toda a consolação: confirma-nos na nossa vocação, na adoração e na fidelidade”.
A oração conclui-se com a invocação: “Fortifica-nos, ó Senhor benévolo, com a tua força. Ilumina a nossa alma com o teu conforto... Concede-nos olhar, procurar e contemplar os bens do céu e não os da terra. Assim, pela força da tua graça, será prestada glória ao poder onipotente, santíssimo e digno de qualquer louvor, em Cristo Jesus, o Filho predileto, com o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém” (A. Hamman, Orações dos primeiros cristãos, Milão, 1955, pp. 92-94).
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