quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (44): Vésperas da quinta-feira da II semana

As duas últimas Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas em 2004 e a primeira de 2005 foram dedicadas às Vésperas da quinta-feira da II semana do Saltério: 01 de dezembro (Sl 71,1-11) e 15 de dezembro de 2004 (Sl 71,12-19) e 12 de janeiro de 2005 (Ap 11,17-18; 12,10b-12a).

128. O poder régio do Messias I: Sl 71(72),1-11
01 de dezembro de 2004

1. A Liturgia das Vésperas, cujos textos sálmicos e cânticos estamos comentando progressivamente, propõe em duas etapas um dos Salmos mais preciosos da tradição judaico-cristã, o Salmo 71, um canto real que os Padres da Igreja meditaram e voltaram a interpretar em chave messiânica.
Agora escutamos o primeiro grande movimento desta solene oração (vv. 1-11). Ele começa com uma intensa invocação coral a Deus para que conceda ao soberano aquele dom fundamental para o bom governo, a justiça. Ela é exercida sobretudo em relação aos pobres que, geralmente, são as vítimas do poder.
Observe-se a particular insistência com que o salmista realça o compromisso moral de governar o povo segundo a justiça e o direito: “Dai ao Rei vossos poderes, Senhor Deus, vossa justiça ao descendente da realeza! Com justiça ele governe o vosso povo, com equidade ele julgue os vossos pobres... Este Rei defenderá os que são pobres” (vv. 1-2.4).
Assim como o Senhor governa o mundo segundo a justiça (cf. Sl 35,7), também o rei, que é o seu representante visível sobre a terra - segundo a antiga concepção bíblica -, deve agir conforme a ação do seu Deus.

2. Quando se violam os direitos dos pobres, não só se realiza um ato politicamente injusto e iníquo do ponto de vista moral: para a Bíblia, perpetra-se também um ato contra Deus, um crime religioso, porque o Senhor é o tutor e o defensor dos miseráveis e dos oprimidos, das viúvas e dos órfãos (cf. Sl 67,6), ou seja, daqueles que não têm protetores humanos.
É fácil intuir como a tradição substituiu a figura, muitas vezes decepcionante, do rei dravídico - já a partir da queda da monarquia de Judá (séc. VI a. C.) -, pela fisionomia luminosa e gloriosa do Messias, na linha da esperança profética expressa por Isaías: “Ele julgará os pobres com justiça, e com equidade os humildes da terra” (Is 11,4). Ou então, segundo o anúncio de Jeremias: “Dias virão em que farei brotar de Davi um rebento justo que será rei, governará com sabedoria e exercerá no país o direito e a justiça oráculo do Senhor” (Jr 23,5).

"Os reis de toda a terra hão de adorá-lo" (Sl 71,11)
(Mosaico da Natividade na Basílica de Lourdes - França)

3. Depois desta profunda e apaixonada súplica pelo dom da justiça, o Salmo amplia o horizonte e contempla o reino messiânico-real no seu desenvolvimento ao longo das suas coordenadas, tanto do tempo como do espaço. Com efeito, por um lado exalta-se a sua duração na história (vv. 5.7). As imagens de tipo cósmico são vivazes: de fato, elas contêm o correr dos dias, cadenciados pelo sol e pela lua, mas também a passagem das estações, com a chuva e o florescimento.
Portanto, um reino fecundo e sereno, mas inserido sempre na linha daqueles valores que são capitais: a justiça e a paz (v. 7). Estes são os sinais do ingresso do Messias na nossa história. Nesta perspectiva, é iluminador o comentário dos Padres da Igreja, que veem naquele rei-Messias o rosto de Cristo, rei eterno e universal.

4. Assim São Cirilo de Alexandria, na sua Explanatio in Psalmos, observa que o juízo, que Deus dá ao rei, é o mesmo de que fala São Paulo, “o desígnio de submeter tudo a Cristo” (Ef 1,10). Com efeito, “nos seus dias florescerá a justiça e transbordará a paz”, como que para dizer que “nos dias de Cristo, por meio da fé, surgirá para nós a justiça, e da nossa orientação para Deus a paz brotará em abundância para nós”. De resto, precisamente nós somos os “miseráveis” e os “filhos dos pobres”, que este rei socorre e salva: e se, em primeiro lugar, ele “chama ‘miseráveis’ aos santos Apóstolos, porque eram pobres de espírito, contudo salvou-nos enquanto ‘filhos dos pobres’, justificando-nos e santificando-nos na fé por meio do Espírito” (PG LXIX, 1180).

5. Por outro lado, o salmista delineia também o âmbito espacial em que se insere a realeza de justiça e de paz do rei-Messias (vv. 8-11). Aqui entra em cena uma dimensão universalista, que vai desde o Mar Vermelho ou do Mar Morto até ao Mediterrâneo, desde o Eufrates, o grande “rio” oriental, até aos extremos confins da terra (v. 8), evocados também por Társis e pelas ilhas, os territórios ocidentais mais remotos, segundo a antiga geografia bíblica (v. 10). Trata-se de um olhar que se estende sobre todo o mapa do mundo então conhecido, que empenha árabes e nômades, soberanos de Estados longínquos e até mesmo inimigos, em um abraço universal, não raro cantado pelos Salmos (cf. Sl 46,10; 86,1-7) e pelos profetas (cf. Is 2,1-5; 60,1-22; Ml 1,11).
Assim, a confirmação ideal desta visão poderia ser formulada precisamente com as palavras de um profeta, Zacarias, palavras que os Evangelhos aplicarão a Cristo: “Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti, Ele é justo... Ele exterminará os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será quebrado. Proclamará a paz para as nações. O seu império irá de um mar ao outro e do rio às extremidades da terra” (Zc 9,9-10; cf. Mt 21,5).

129. O poder régio do Messias II: Sl 71(72),12-19
15 de dezembro de 2004

1. A Liturgia das Vésperas, que estamos acompanhando através da série dos seus Salmos, propõe-nos em duas etapas distintas o Salmo 71, um hino real-messiânico. Depois de já ter meditado a primeira parte (vv. 1-11), agora temos à nossa frente o segundo movimento poético e espiritual deste cântico dedicado à gloriosa figura do rei-Messias (vv. 12-19). Porém, devemos observar imediatamente que o final dos últimos dois versículos (vv. 18-19) é, na realidade, um acréscimo litúrgico posterior ao Salmo.
Com efeito, trata-se de uma breve mas intensa bênção, que devia selar o segundo dos cinco livros em que a tradição judaica tinha subdividido a coletânea dos 150 Salmos: este segundo livro tinha começado com o Salmo 41, o da corça sequiosa, símbolo luminoso da sede espiritual de Deus. Pois bem, é um cântico de esperança numa era de paz e de justiça, que conclui essa sequência de Salmos, e as palavras da bênção final são uma exaltação da presença eficaz do Senhor, tanto na história da humanidade, onde “realiza maravilhas” (v. 18), como no universo repleto da sua glória (v. 19).

2. Como já se podia ver na primeira parte do Salmo, o elemento decisivo para reconhecer a figura do rei messiânico é sobretudo a justiça e o seu amor pelos pobres (vv. 12-14). Eles têm como ponto de referência e fonte de esperança somente ele, enquanto é o representante visível do seu único defensor e patrono, Deus. A história do Antigo Testamento ensina que os soberanos de Israel, na realidade, desmentiram com demasiada frequência este seu compromisso, prevaricando sobre os fracos, os miseráveis e os pobres.
É por isso que, agora, o olhar do salmista visa um rei justo, perfeito, encarnado pelo Messias, o único soberano pronto a livrar os oprimidos “da violência e opressão” (v. 14). O verbo hebraico utilizado é o jurídico, do protetor dos últimos e das vítimas, aplicado também a Israel, “resgatado” da escravidão quando era oprimido pelo poder do faraó.
O Senhor é o “salvador-redentor” primário, que atua através do rei-Messias, salvaguardando “a vida e o sangue” dos pobres, seus protegidos. Pois bem, “vida” e “sangue” são a realidade fundamental da pessoa, a representação dos direitos e da dignidade de cada ser humano, direitos muitas vezes violados pelos poderosos e pelos prepotentes deste mundo.

3. Na sua redação original, o Salmo 71 termina antes da antífona final, à qual já nos referimos, com uma aclamação em honra do rei-Messias (vv. 15-17). Ela é semelhante a um toque de corneta, que acompanha um coro de bons votos e de auspícios para o soberano, para a sua vida, para o seu bem-estar, para a sua bênção e para a permanência da sua recordação nos séculos.
Naturalmente encontramo-nos na presença de elementos que pertencem ao estilo das conciliações de corte, com a ênfase que lhes é própria. Contudo, estas palavras adquirem a sua verdade na ação do rei perfeito, aguardado e esperado, o Messias.
Segundo uma característica dos hinos messiânicos, toda a natureza está envolvida numa transformação, que é em primeiro lugar social: o trigo das messes será tão abundante, que se tornará quase como um mar de espigas que ondulam até aos cimos dos montes (v. 16). Este é o sinal da bênção divina, que se difunde plenamente sobre uma terra apaziguada e serena. Aliás, toda a humanidade, abandonando e eliminando toda a divisão, convergirá para este soberano de justiça, cumprindo deste modo a grande promessa feita pelo Senhor a Abraão: “Todos os povos serão nele abençoados, todas as gentes cantarão o seu louvor!” (v. 17; cf. Gn 12,3).

4. No rosto deste rei-Messias a tradição cristã intuiu o retrato de Jesus Cristo. Na sua Exposição sobre o Salmo 71, relendo o cântico precisamente em chave cristológica, Santo Agostinho explica que os miseráveis e os pobres, de quem Cristo vai ao encontro, são “o povo dos que n’Ele creem”.
Aliás, recordando os reis aos quais o salmo se tinha precedentemente referido, especifica que “neste povo estão incluídos também os reis que o adoram. Com efeito, não desdenharam ser miseráveis e pobres, ou seja, confessar humildemente os próprios pecados e reconhecer-se necessitados da glória e da graça de Deus, a fim de que aquele rei, filho do rei, os libertasse do poderoso”, isto é, de Satanás, o “caluniador”, o “forte”. “Porém, o nosso Salvador humilhou o caluniador e entrou na casa do forte, tirando-lhe os seus vasos depois de tê-lo acorrentado; ele ‘libertou o miserável do poderoso, e o pobre que não tinha quem o socorresse’. Efetivamente, isto não poderia ter sido feito por qualquer poder criado: nem o de qualquer homem justo e nem sequer o do anjo. Não havia ninguém capaz de nos salvar; e eis que veio Ele pessoalmente e nos salvou” (71,14: Nuova Biblioteca Agostiniana, XXVI, Roma, 1970, pp. 809.811).

130. O julgamento de Deus: Ap 11,17-18; 12,10-12
12 de janeiro de 2005

1. O hino que agora ressoou desce idealmente do céu. Com efeito, o Apocalipse, que o propõe, liga-o na sua primeira parte (Ap 11,17-18) aos “vinte e quatro anciãos, os que estão sentados nos seus tronos diante de Deus” (Ap 11,16); e, na segunda estrofe (Ap 12,10-12), a “uma voz forte no céu” (v. 10).
Assim estamos envolvidos na grandiosa representação da corte divina, onde Deus e o Cordeiro, ou seja, Cristo, circundados pelo “conselho da coroa”, estão a julgar a história humana no bem e no mal, mostrando contudo também o seu fim último, feito de salvação e de glória. Os cânticos que constelam o Apocalipse têm precisamente a função de explicar o tema do senhorio divino que sustém o fluxo, muitas vezes desconcertante, das vicissitudes humanas.

2. Significativo, a respeito, é o primeiro trecho do hino, colocado nos lábios dos vinte e quatro anciãos, que parecem encarnar o povo da eleição divina nas suas duas etapas históricas: as doze tribos de Israel e os doze Apóstolos da Igreja.
Pois bem, o Senhor Deus onipotente e eterno “assumiu o poder que lhe pertence e tomou posse como rei” (v. 17), e seu ingresso na história tem a finalidade não só de impedir as reações violentas dos rebeldes (cf. Sl 2,1.5), mas sobretudo de exaltar e de recompensar os justos. Eles são definidos com uma série de termos utilizados para delinear a fisionomia espiritual dos cristãos. Eles são “servos” que aderem à lei cívica com fidelidade; são “profetas”, dotados da palavra revelada que interpreta e julga a história; e são “santos”, consagrados a Deus e respeitosos do seu nome, ou seja, prontos a adorá-lo e a seguir a sua vontade. Entre eles há “pequenos e grandes” (v. 18), uma expressão querida ao autor do Apocalipse (Ap 13,16; 19,5.18; 20,12) para designar o povo de Deus na sua unidade e variedade.

3. Assim, passamos à segunda parte do nosso cântico. Depois da cena dramática da mulher grávida “revestida de sol” e do terrível dragão vermelho (Ap 12,1-9), uma voz misteriosa entoa um hino de ação de graças e de alegria.
O júbilo provém do fato de que Satanás, o antigo adversário, que na corte celeste era como que o “Acusador dos nossos irmãos” (v. 10), como o vemos no Livro de Jó (cf. Jó 1,6-11; 2,4-5), já foi “expulso” do céu e, portanto, já não tem um poder tão grande. Ele sabe “que pouco tempo lhe resta”, porque a história está prestes a passar por uma virada radical de libertação do mal e, por conseguinte, reage “com grande furor”.
Do outro lado eleva-se Cristo Ressuscitado, cujo sangue é princípio de salvação (v. 11). Ele recebeu do Pai um poder régio sobre todo o universo; nele realizam-se “a salvação, o poder e a realeza do Senhor e nosso Deus” (v. 10).
À sua vitória são associados os mártires cristãos, que escolheram o caminho da cruz, sem ceder ao mal e à sua virulência, mas entregando-se ao Pai e unindo-se à morte de Cristo através de um testemunho de doação e de coragem, que os levou a “desprezar sua vida até à morte” (v. 11). Parece que se pode ouvir o eco das palavras de Cristo: “Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste mundo, assegura para si a vida eterna” (Jo 12,25).

4. As palavras do Apocalipse sobre aqueles que venceram Satanás e o mal “por meio do sangue do Cordeiro” ressoam em uma maravilhosa oração atribuída a Simeão, Catholicos de Selêucia-Ctesifonte, na Pérsia. Antes de morrer mártir, juntamente com numerosos companheiros, no dia 17 de abril de 341, durante a perseguição do rei Sapor II, ele dirigiu a Cristo a seguinte súplica:
“Senhor, dai-me esta coroa: vós sabeis como a desejei, porque vos amei com toda a minha alma e com toda a minha vida. Terei a alegria de ver-vos e vós me dareis o descanso... Desejo perseverar heroicamente na minha vocação, cumprir com fortaleza a tarefa que me foi designada e servir de exemplo para todo o vosso povo do Oriente... Receberei a vida que não conhece sofrimentos, nem preocupações, nem angústias, nem perseguidor, nem perseguido, nem opressor, nem oprimido, nem tirano, nem vítima; ali, já não verei ameaças de reis, nem terrores de prefeitos; ninguém que me leve ao tribunal e que me aterrorize cada vez mais, ninguém que me arraste e me amedronte. As feridas dos meus pés hão de sarar em vós, ó Caminho de todos os peregrinos; o cansaço dos meus membros encontrará descanso em vós, ó Cristo, crisma da nossa unção. Em vós, cálice da nossa salvação, desaparecerá a tristeza do meu coração; em vós, nossa consolação e alegria, se enxugarão as lágrimas dos meus olhos” (A. Hamman, Preghiere dei primi cristiani, Milão, 1995, pp. 80-81).

"Libertará o indigente que suplica, e o pobre ao qual ninguém quer ajudar" (Sl 71,12)
(Cristo curando os enfermos - Gebhard Fugel)

Fonte: Santa Sé (01 de dezembro e 15 de dezembro de 2004 e 12 de janeiro de 2005).

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