“Gaudeamus omnes in
Domino, diem festum celebrantes sub honore Sanctorum omnium” -
“Alegremo-nos todos no Senhor, celebrando a festa de todos os Santos”.
A Igreja de Rito Romano celebra no dia 01 de novembro a
Solenidade de Todos os Santos - que em alguns países, incluindo o Brasil, é transferida
para o domingo seguinte. Para conhecer sua história, clique aqui para acessar nossa postagem a respeito.
Essa Solenidade possui três hinos próprios para a Liturgia
das Horas (LH), oração oficial da Igreja para a santificação das horas do dia:
I e II Vésperas: Christe,
redémptor ómnium, consérva tuos fámulos (Redentor de todos, Cristo);
Ofício das Leituras: Christe, caelórum habitátor alme (Dos santos todos fostes caminho);
Laudes: Iesu, salvátor saeculi (Jesus, que o mundo salvastes).
Todos os Santos (Giusto di Menabuoi - Batistério de Pádua, Itália - séc. XIV) |
O hino é aqui uma composição
poética “extra-bíblica” (uma vez que, na LH, os hinos da Sagrada Escritura são
chamados de “cânticos”) que sintetiza o sentido de cada hora, festa ou tempo
litúrgico [1]. Na LH reformada pelo Concílio Vaticano II há 291 hinos,
compostos ao longo de toda a história da Igreja.
Assim, após publicarmos nos
últimos dias os “índices” com os hinos para as celebrações dos Santos (tanto do Próprio quanto dos Comuns), passaremos a analisar as três composições em honra
de Todos os Santos.
Sendo uma Solenidade, a celebração de Todos os Santos começa
na tarde do dia anterior (como nos domingos), com a oração das I Vésperas.
Confira, pois, o hino Christe, redémptor
ómnium, consérva tuos fámulos [2], “Redentor de todos, Cristo”, em seu texto
original em latim e em sua tradução oficial para o português do Brasil, seguidos de
alguns comentários sobre a sua teologia.
I e II Vésperas: Christe, redémptor ómnium, consérva tuos fámulos
Christe, redémptor ómnium,
consérva tuos fámulos,
beátae semper Vírginis
placátus sanctis précibus.
Beáta quoque ágmina
caeléstium spirítuum,
praetérita, praeséntia,
futúra mala péllite.
Vates aetérni iúdicis
apostolíque Dómini,
supplíciter expóscimus
salvári vestris précibus.
Mártyres Dei íncliti
confessorésque lúcidi,
vestris oratiónibus
nos ferte in caeléstibus.
Chori sanctárum vírginum
monachorúmque ómnium,
simul cum sanctis ómnibus
consórtes Christi fácite.
Sit Trinitáti glória,
vestrásque voces iúngite
ut illi laudes débitas
persolvámus alácriter. Amen [3].
A intercessão de Cristo e da Virgem Maria (Atribuída a Lorenzo Monaco - séc. XIV-XV) |
I e II Vésperas: Redentor de todos, Cristo
Redentor de todos, Cristo,
vossos servos conservais,
abrandado pela Virgem
com suas preces maternais.
Multidões celestiais
dos espíritos amigos,
ontem, hoje e no futuro
defendei-nos do inimigo.
Do eternal Juiz profetas
e apóstolos do Senhor,
nos salvai com vossos rogos,
escutai nosso clamor.
Santos mártires de Deus,
confessores luminosos,
vossas preces nos conduzam
para o céu, vitoriosos.
Santos monges e eremitas,
santos coros virginais,
dai-nos sermos os convivas
do Senhor, com quem reinais.
Nossa voz à vossa unimos,
dando graças ao Senhor.
E paguemos, na alegria,
nossa dívida em louvor [4].
Comentário
O hino entoado nas I e II Vésperas (oração da tarde) da
Solenidade de Todos os Santos é uma composição do século IX, que anteriormente atribuída
a Rabano Mauro. Hoje, porém, considera-se como seu autor Helisacar,
chanceler do Reino dos Francos durante o reinado de Luís I, o Piedoso, e posteriormente abade de alguns mosteiros nas atuais França e Alemanha.
Além das seis estrofes de quatro versos presentes na LH,
Félix Arocena testemunha a existência de uma sétima estrofe, invocando a
intercessão dos santos contra as invasões dos povos inimigos (“Auférte gentem pérfidam”), que foi
suprimida por seu caráter deprecativo [5].
Além disso, antes da reforma litúrgica entoava-se nas
Vésperas e nas Matinas de Todos os Santos uma versão distinta do hino, alterada
pelo Papa Urbano VIII (†1644): “Placáre,
Christe, sérvulis” [6].
A reforma do Concílio Vaticano II recuperou o texto original
do poema, uma “ladainha dos santos”, na qual se intercalam invocações e
súplicas, como veremos a seguir.
Coro dos Santos Apóstolos (Les Grandes Heures d'Anne de Bretagne, fol. 169 - séc. XVI) |
a) 1ª estrofe:
A 1ª estrofe compõe, naturalmente, a introdução do hino,
invocando Cristo, “coroa de todos os santos”, e a Virgem Maria, “rainha de
todos os santos”.
A Cristo, invocado como “redentor de todos” (redémptor ómnium) pede-se que se digne “conservar”
ou “defender” seus servos (consérva tuos
fámulos), pelas “santas preces” (sanctis
précibus), ou “preces maternais”, na tradução brasileira, da “bem-aventurada
e sempre Virgem” (beátae semper Vírginis).
A estrofe remete-nos a um tema recorrente na arte sacra: a
“dupla intercessão” (ver a imagem atribuída a Lorenzo Monaco acima): Cristo, representado como o “homem das dores” (vir dolorum), sacerdote e vítima em sua
Paixão, e a Virgem Maria, Mãe da Igreja, que acolhe sob seu manto um grupo de
fiéis, intercedem pela humanidade junto ao Pai.
Cristo e Maria são aqui o “novo Adão” e a “nova Eva”, a
humanidade reconciliada, que apresentam ao Pai a humanidade ainda necessitada
de purificação.
Cada um dos dois, porém, intercede a seu modo: Cristo intercede
(cf. Rm 8,34; Hb 7,25; 1Jo 2,1-2) como
único mediador, verdadeiro Deus e verdadeiro homem (1Tm 2,5), enquanto a Virgem Maria intercede como “serva do Senhor”
(Lc 1,38) e como Mãe, a quem o próprio
Jesus confiou seus discípulos (Jo
19,25-27). A intercessão de Maria, portanto, está totalmente a serviço da única
mediação exercida por Cristo (cf. Lumen
Gentium, n. 60): “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2,5).
O Pai, por sua vez, não deve ser visto como um juiz severo
que condena, mas sim como o Deus “cheio de misericórdia e bondade” (cf. Ex 34,6-7) que acolhe as preces do
Filho enviando o Espírito Santo de amor.
b) 2ª estrofe:
Após a Mãe e o Filho, o hino invoca primeiramente a
“bem-aventurada multidão dos espíritos celestes” (Beáta ágmina caeléstium spirítuum), isto é, os Anjos, aos quais
pedimos que “afastem os males” (mala
péllite) “passados, presentes e futuros” (praetérita, praeséntia, futura), ou seja, sempre.
Na versão do hino adaptada por Urbano VIII, por sua vez,
invocam-se aqui os “nove coros dos anjos” (“per
novem distíncta gyros”), hierarquia sistematizada pelo Pseudo-Dionísio
Areopagita (séc. VI) e posteriormente retomada por Santo Tomás de Aquino (séc.
XIII) e por Dante Alighieri no canto XXVIII do Paraíso. Para saber mais sobre a hierarquia angélica, clique aqui.
Confira também nossas postagens sobre os
hinos da Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael (29 de setembro) e da Memória dos Anjos da Guarda (02 de outubro).
c) 3ª estrofe:
A partir desta estrofe começam a ser invocados os vários
“coros” dos santos. Uma vez que, como afirma São Paulo, “há diversidade de dons
e ministérios” (cf. 1Cor 12), assim a
Igreja venera santos que viveram as mais diversas vocações.
Nos primeiros séculos, além dos santos mencionados na
Escritura, isto é, os Patriarcas e Profetas do Antigo Testamento e os Apóstolos
do Novo Testamento, eram venerados apenas os Mártires (“testemunhas”), isto é, que
haviam morrido defendendo a fé.
Para saber mais sobre o culto aos Santos do Antigo Testamento, clique aqui.
Posteriormente a veneração foi estendida aos Confessores, isto
é, aqueles que professaram a fé mas não foram martirizados, e àqueles que
viveram de maneira mais radical sua consagração a Cristo: os Ascetas, os Monges
e as Virgens [7].
A 3ª estrofe, com efeito, começa o elenco dos “coros”
invocando os “Profetas do Eterno Juiz” e os “Apóstolos do Senhor” (Vates aetérni iúdicis apostolíque Dómini). Unindo-nos às
preces dos santos do Antigo e do Novo Testamento, portanto, suplicamos alcançar
a salvação (supplíciter expóscimus salvári
vestris précibus).
d) 4ª estrofe:
A 4ª estrofe prossegue invocando outros dois “coros”: os
“ilustres Mártires de Deus” e os “luminosos Confessores da fé” (Mártyres Dei íncliti confessorésque lúcidi).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, a fim de evitar
ambiguidades, abandonou o termo “Confessores”, preferindo usar “Pastores” para
os santos sacerdotes (presbíteros e Bispos), e invocando os demais apenas como
“Santos” (diáconos, religiosos e leigos).
A eles pedimos que suas preces nos conduzam ao céu (vestris oratiónibus nos ferte in caeléstibus).
Ou, para usar a versão de Urbano VIII, que eles “chamem-nos à pátria” (“Vocáte nos in pátriam”; cf. Hb 13,14).
A tradução espanhola, por sua vez, recorre aqui à metáfora
vegetal, usando o verbo “transplantar”: “trasplantadnos
al Cielo, por medio de vuestras preces” [8].
Da versão de Urbano VIII cumpre destacar a referência aos “mártires
vestidos de púrpura” (“purpuráti Mártyres”),
recordando sua fidelidade usque ad
sanguinis effusionem, até a efusão do sangue (cf. Ap 7,13-14).
e) 5ª estrofe:
A 5ª estrofe conclui a “ladainha” com “os coros das santas
Virgens e de todos os Monges”, unidos a “todos os Santos” (Chori sanctárum vírginum monachorúmque ómnium, simul cum sanctis ómnibus).
A tradução brasileira utiliza aqui dois termos para monges:
“Santos monges e eremitas”. Com efeito, enquanto os “eremitas” ou “anacoretas”
vivem isolados, os “cenobitas” são os monges que vivem em uma comunidade
religiosa ou mosteiro.
De toda forma, às Virgens, aos Monges e a todos os Santos
pedimos que “nos façam co-herdeiros de Cristo” (consórtes Christi fácite). Ou seja, pedimos participar na “comunhão
dos santos” que reinam com Cristo no céu.
f) 6ª estrofe:
Como de costume nos hinos da LH, a última estrofe ou
conclusão é uma doxologia (breve fórmula de louvor) em honra da Santíssima
Trindade.
“Sit Trinitáti glória,
vestrásque voces iúngite” - “Seja dada glória à Trindade, unidos às vossas
vozes”, isto é, às vozes dos santos, com os quais “pagamos” com fervor (ou “com
alegria”, como bem traduz a edição brasileira) os “louvores devidos” a essa
mesma Trindade: “ut illi laudes débitas
persolvámus alácriter”.
O tema do louvor “devido” a Deus, com efeito, remete-nos à
introdução do Prefácio da Oração Eucarística: “Na verdade é justo e necessário,
é nosso dever e salvação dar-vos graças, sempre e em todo o lugar, Senhor Pai
santo, Deus eterno e todo-poderoso, por Cristo Senhor nosso...”.
Notas:
[1] cf. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas,
nn. 173-178; in: ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas -
Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, pp. 92-94.
[2] Não confundir com o hino “Christe, redémptor ómnium, ex Patre”, composição anônima do século
VI indicada para as Vésperas do Tempo do Natal.
[3] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus Liturgiae: Inni della
«Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis & Communia.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1411-1412.
[5] AROCENA, Félix. Los
himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, p.
311.
[7] Para um breve histórico do culto aos santos, confira,
por exemplo:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 147ss.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 304-312.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 480-484.
MORA, Afonso. Os
santos no Ano Litúrgico. in: CONSELHO
EPISCOPAL LATINO-AMERICANO (CELAM). Manual
de Liturgia, vol. IV: A celebração do Mistério Pascal: Outras expressões
celebrativas do Mistério Pascal e a Liturgia na vida da Igreja. São Paulo:
Paulus, 2007, pp. 82-88.
[8] AROCENA, op. cit.,
p. 312.
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