Em nossa postagem anterior buscamos responder a pergunta “Por que celebramos a Dedicação da Basílica do Latrão?”, apresentando brevemente o sentido eclesial dessa Festa, que nós, fiéis do Rito
Romano, celebramos no dia 09 de novembro. Nesta postagem gostaríamos de traçar um pouco da história
dessa celebração.
Antes de tudo é preciso recordar que, embora as Missas presididas pelo Papa geralmente tenham lugar atualmente na Basílica de São
Pedro no Vaticano, a Catedral de Roma é a Basílica do Latrão. Mas, o que é uma basílica?.
Arquibasílica do Latrão, Catedral de Roma |
O que é uma basílica?
A basílica (do grego βασιλική, pertencente ao rei) era
originalmente um edifício público romano que servia para diversas atividades
civis; por exemplo, como tribunal. O termo designava
antes de tudo seu formato arquitetônico: uma grande nave central que termina em
uma abside, geralmente semicircular, ladeada por naves laterais menores,
separadas por colunas.
Após o Edito de Milão do ano de 313, através do qual o
imperador Constantino proibiu a perseguição aos cristãos, as primeiras igrejas começaram a ser construídas seguindo o formato da basílica romana.
Na basílica cristã, a abside, na
qual estão o altar e a sede do sacerdote, geralmente está voltada para o
Oriente (ad Orientem). Assim, toda a comunidade reza na mesma direção: em direção a Cristo (versus Deum), o “sol nascente que nos veio visitar” (cf. Lc 1,78).
Nave da Basílica do Latrão, com as imagens dos Doze Apóstolos |
Com o tempo, porém, o termo “basílica” perdeu sua relação com a
arquitetura e passou a ser usado como título honorífico conferido pelo Papa a
igrejas de especial importância histórica e artística.
As basílicas dividem-se em “maiores” e “menores”. As maiores
são as quatro principais igrejas de Roma:
- Arquibasílica do Santíssimo Salvador e São João Batista e
Evangelista no Latrão;
- Basílica de São Pedro no Vaticano;
- Basílica de São Paulo fora-dos-muros na Via Ostiense;
- Basílica de Santa Maria Maior no Esquilino.
Todas as demais basílicas, em Roma ou no resto do mundo, são
“basílicas menores”.
As quatro basílicas maiores possuem uma Porta Santa, que só
é aberta durante os Jubileus, e
um Cardeal Arcipreste nomeado pelo Papa.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre os símbolos das basílicas: o umbráculo e o tintinábulo.
A Arquibasílica do
Latrão
Por ser a Catedral de Roma, “omnium urbis et orbis ecclesiarum mater et caput” (mãe e cabeça de
todas as igrejas da cidade [de Roma] e do mundo) a Basílica do Latrão é a única
que recebe o título de “Arquibasílica”.
É nesta igreja que se encontra a cátedra do Bispo de Roma,
da qual o Papa deve tomar posse após sua eleição. Do século IV até o século
XIV, com efeito, o Papa residia junto à Basílica, no chamado Palácio Lateranense.
A igreja leva esse nome por estar situada no terreno que
pertencia à família romana dos Lateranos, próximo ao monte Célio. Anteriormente
parte do local havia sido um quartel da cavalaria romana (Castra nova equitum singularium).
O Imperador Constantino (†337), segundo a tradição, teria
doado o terreno ao Papa Milcíades (ou Melquíades; †314), logo após a promulgação
do Edito de Milão. A primitiva basílica teria sido dedicada no ano de 324 pelo
Papa São Silvestre I (†335), em honra do Santíssimo Salvador.
O contemporâneo Eusébio de
Cesareia (†339), com efeito, no início do Livro X de sua História Eclesiástica (escrito entre 323 e 326), o qual descreve a
“paz de Constantino”, inicia proclamando: “abundantes graças sejam dadas ao Salvador e Redentor de nossas almas,
Jesus Cristo...” [1].
Ao longo dos anos a Basílica sofreu sucessivos saques,
terremotos, incêndios... mas também restaurações. Assim, o Papa Sérgio III (†911) a
dedicou-a novamente no início do século X, acrescentando São João Batista como
patrono, em alusão ao célebre batistério anexo à Basílica. O Papa Lúcio II
(†1145) acrescentou também São João Evangelista como patrono no século XII.
Portanto, o “nome completo” da igreja é Arquibasílica do
Santíssimo Salvador e dos Santos João Batista e João Evangelista do Latrão (Archibasilica Sanctissimi Salvatoris et
Sanctorum Iohannes Baptista et Evangelista in Laterano), apesar de ser
comumente chamada simplesmente de São João do Latrão (San
Giovanni in Laterano), embora o Santíssimo Salvador permaneça como patrono
principal ou titular da igreja [2].
O tintinábulo da Basílica com a imagem do seu titular: Jesus, o Santíssimo Salvador |
A atual Basílica é um verdadeiro “mosaico”, com “vestígios”
de diferentes épocas. As partes mais antigas são o já mencionado Batistério (San Giovanni in Fonte al Laterano), do
século IV, e a capela de São Lourenço, conhecida como Sancta Sanctorum (San Lorenzo
in Palatio ad Sancta Sanctorum), assim chamada pela grande quantidade de
relíquias que abrigava. Esta era a capela privada dos Papas e remonta ao século
VIII (embora tenha sido totalmente restaurada no século XIII).
Para saber mais sobre o Batistério do Latrão, no qual se celebrava as Vésperas pascais, clique aqui.
Para conhecer mais sobre o Oratório da Sancta Sanctorum, confira nossa postagem sobre o rito do "Ressurrexit" na manhã do domingo de Páscoa.
Durante o chamado “papado de Avignon”, período em que os
Papas passaram a residir nesta cidade francesa (1309-1377), a igreja ficou
relativamente abandonada. Assim, após o retorno de Avignon, uma vez que o
complexo do Latrão estava em mau estado de conservação, os Papas transferiram
sua residência para a Basílica de São Pedro no Vaticano.
Do período de Avignon, porém, é o “cibório” ou baldaquino
sobre o altar, realizado em 1367 pelo arquiteto Giovanni di Stefano (†1391).
O baldaquino ou "cibório" sobre o altar |
Nos séculos seguintes a Basílica do Latrão seria
paulatinamente restaurada. Por exemplo, no pontificado de Martinho V (†1431) o
pavimento foi refeito com mosaicos em estilo “cosmatesco” (com formas
geométricas), estilo usado também na cátedra.
Foi entre 1650 e 1660, porém, a maior reforma da Basílica,
coordenada pelo arquiteto Francesco Borromini (†1667), sob os Papas Inocêncio X
(†1655) e Alexandre VII (†1667). Após essa reforma foram colocadas as estátuas
dos Doze Apóstolos em nichos ao longo da nave.
Os mosaicos da abside, por sua vez, embora remontem ao
século XIII, foram totalmente restaurados no pontificado de Leão XIII (†1903),
entre 1876 e 1886, pelo arquiteto Francesco Vespignani (†1899).
Abside da Basílica do Latrão, com os mosaicos restaurados |
A parte mais recente da Basílica é a sua fachada, em estilo
barroco, que remonta a 1735, sob Clemente XII (†1740), realizada
pelo arquiteto Alessandro Galilei (†1737). Sobre ela estão as estátuas de
Cristo Salvador, de São João Batista, de São João Evangelista e de Santos
Doutores da Igreja do Oriente e do Ocidente.
A festa da Dedicação
no dia 09 de novembro
Não está claro o motivo da escolha do dia 09 de novembro
como data do aniversário da Dedicação da Basílica do Latrão. O Beato Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (†1954), em seu Liber Sacramentorum, indica que o Martirológio Jeronimiano (séc. V-VI) menciona vários aniversários
de dedicação, como Santa Maria Maior no dia 05 de agosto ou São Pedro in Vincoli no dia 01 de agosto, mas se
cala quanto à Basílica do Latrão.
Da mesma forma, os antigos Sacramentários não trazem nenhum
formulário de orações para essa festa. Até hoje, com efeito, tomam-se os textos
do Comum da dedicação de uma igreja para
a celebração [3].
O mesmo Cardeal Schuster indica que a festa remonta ao
século XII, inicialmente como uma celebração própria dos cônegos da Basílica e
posteriormente estendida apenas à Diocese de Roma. A festa só seria inscrita no
Calendário Geral no Missale Romanum promulgado
por São Pio V (†1572) em 1570.
O atual Martirológio assim sintetiza a festa em seu
“elogio”: “Festa da Dedicação da Basílica de Latrão em honra de Cristo
Salvador, construída pelo imperador Constantino como sede dos bispos de Roma,
cuja celebração anual em toda a Igreja Latina é um sinal de amor e unidade com
o Romano Pontífice” [4].
A cátedra do Papa, Bispo de Roma (Notem-se os mosaicos em estilo cosmatesco) |
Cabe recordar, por fim, que a Congregação do Santíssimo
Redentor (Redentoristas) recebe esse nome justamente por ter sido fundada por
Santo Afonso de Ligório no dia 09 de novembro de 1732, dia da Festa da Dedicação da Basílica do Latrão.
Os redentoristas celebram o Santíssimo Redentor, padroeiro
da congregação, porém, no terceiro domingo de julho (data associada ao fim de uma
peste na cidade de Veneza em 1576). Concluímos esta postagem com a
oração do dia dessa celebração:
“Ó Deus, que constituístes vosso Filho Unigênito como
Redentor do mundo e, por meio d’Ele, vencida a morte, misericordiosamente nos
regenerastes para a vida, fazei que, recordando estes benefícios, permaneçamos
sempre unidos a vós no amor e gozemos eternamente os frutos de vossa redenção.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém”
[5].
O Santíssimo Salvador ladeado pelos Santos João Batista, João Evangelista e os quatro grandes Doutores do Ocidente (os Doutores do Oriente estão nas extremidades da fachada) |
Para saber mais sobre os santos Doutores da Igreja, clique aqui.
Notas:
[1] EUSÉBIO DE CESAREIA, História
Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 465. Coleção: Patrística, vol. 15. No capítulo 3 do
Livro X Eusébio celebra a dedicação das novas igrejas (p. 468).
[2] Atualmente, como vimos em nossa postagem anterior, cada igreja deve ter apenas um titular, salvo
se forem Santos inscritos juntos no Calendário (cf. PONTIFICAL ROMANO, Ritual
da dedicação de igreja e de altar. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 431).
[3] Em 2019 a Santa Sé aprovou textos próprios para a festa,
a serem usados apenas na própria Basílica do Latrão; cf. Revista Notitiae, Nova Series: 4 (=596), vol. 55 (2019),
p. 74.
[4] Fonte: Secretariado Nacional de Liturgia - Portugal.
[5] Fonte: Messe
proprie della Congregazione del Santissimo Redentore. Roma, 2002, pp.
54-55. Tradução livre nossa.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 134-136.
LODI, Enzo. Os Santos
do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, pp. 507-509.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. IX: Le Feste dei Santi dalla Dedicazione di S.
Michele all'Avvento. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 126-134.
Para a história e a arquitetura da Basílica, utilizamos sobretudo sua seção no site da Santa Sé.
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