“Derramarei sobre vós
uma água pura, e sereis purificados” (Ez 36,25)
Em nossas postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura já falamos sobre quatro dos “profetas menores”: Joel, Miqueias, Amós e Oseias. Porém, até então não havíamos
estudado nenhum dos “profetas maiores” (assim chamados pela maior extensão dos
livros).
Portanto, nesta postagem começaremos a analisar a leitura do Livro de Ezequiel (Ez) nas celebrações litúrgicas do Rito Romano.
1. Breve introdução ao Livro de Ezequiel
O Livro de Ezequiel é fruto de um período de grandes mudanças na história de Israel: o exílio da Babilônia. Inicia “no quinto ano do exílio do rei Joaquim” ou Jeconias (Ez 1,1), isto é, em 593 a. C., uma vez que esse rei e parte da nobreza são levados para a Babilônia em 598, onze anos antes da queda definitiva do reino de Judá (587).
A atuação do profeta teria se estendido até o ano de 571, o vigésimo sétimo ano após o exílio de Joaquim (Ez 29,17). Porém, a redação do livro foi feita provavelmente por seus discípulos, após o fim do exílio (séc. V-IV a. C.).
"Profeta Ezequiel" - Michelângelo (Capela Sistina) |
Sobre a vida do profeta, porém, sabemos muito pouco. Era de
classe sacerdotal (Ez 1,3), o que justifica o papel importante que Templo ocupa
em sua obra, escrita em primeira pessoa: “quando
me encontrava entre os exilados...” (1,1), “Eu olhei” (1,4)...
A obra é singular dentro da tradição profética: os
tradicionais “oráculos”, isto é, as “palavras do Senhor”, vêm muitas vezes na
forma de alegorias, enigmas, parábolas, ou gestos simbólicos que o profeta
realiza e Deus explica. Seus diversos gêneros literários refletem, pois, a
“mudança de época” que significou o exílio.
Ezequiel, embora
tenha afinidades com Jeremias e com o
Código da Santidade de Levítico
17–26, aproxima-se também da literatura apocalíptica, sobretudo os capítulos
38–39, mas também as visões simbólicas da glória divina no capítulo 1.
Referimo-nos aqui à célebre visão do “carro” de Deus e do
“tetramorfo”, isto é, dos querubins com quatro asas e quatro faces (homem,
leão, touro e águia), imagem retomada no Apocalipse
de João.
O Livro pode ser estruturado em duas grandes partes: o julgamento (cap. 1–32) e a restauração (cap. 33–48). Estas, por sua vez, podem ser subdivididas em:
a) Ez 1–24: Oráculos contra Jerusalém;
b) Ez 25–32: Oráculos contra as nações;
c) Ez 33–39: Restauração do povo e da terra, com a promessa de um “novo êxodo”;
d) Ez 40–48: “Torá” de Ezequiel, com a promessa da restauração do Templo.
A primeira parte do Livro, com seus oráculos de julgamento, situa-nos antes da destruição de Jerusalém e serve como uma espécie de “exame de consciência” para o povo, a fim de não repetir os erros do passado. A “restauração”, por sua vez, descrita após a destruição da cidade, é uma mensagem de esperança na sua reconstrução.
A restauração de Israel adquire nesta obra um caráter “universal”, uma vez que, após a queda de Babilônia sob os persas em 539, nem todos os judeus retornam para sua terra. Assim, os judeus da “diáspora” (dispersão) assumem a missão de proclamar a santidade do “nome do Senhor” às nações, que serão reunidas em um só povo no fim dos tempos (dimensão escatológica).
As duas partes do Livro estão diretamente relacionadas, com vários paralelos. Por exemplo, se a glória de Deus abandona o Templo no cap. 10, retorna ao novo Templo no cap. 43; à lamentação pela queda da dinastia davídica no cap. 19 contrapõem-se as profecias messiânicas dos cap. 34 e 37.
Podemos sintetizar, por fim, os cinco grandes temas da teologia de Ezequiel: o senhorio de Iahweh sobre todas as nações; a santidade (transcendência) de Iahweh; a exortação à integridade na vida (moral) e no culto; a responsabilidade de cada geração por suas ações; e a convicção de que Deus pretende restaurar Israel por sua graça.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.
Vale recordar, por fim, como vimos em nossas postagens sobre o culto aos santos do Antigo Testamento, que o profeta Ezequiel é comemorado pelo Martirológio Romano no dia 23 de julho.
2. Leitura litúrgica do
Livro de Ezequiel: Composição harmônica
Para analisar as ocorrências do Livro de Ezequiel nas celebrações litúrgicas, consideraremos aqui
os dois critérios de escolha dos textos propostos no Elenco das Leituras da Missa, n. 66: a composição harmônica e a
leitura semicontínua [1].
Começamos pela composição harmônica: a escolha do texto em
sintonia com a espiritualidade do tempo ou da festa litúrgica.
a) Celebração
Eucarística
Deixando-nos guiar pelo ciclo do Ano Litúrgico, encontramos
primeiramente a profecia de Ezequiel no Tempo
da Quaresma, durante o qual nos são propostos quatro textos.
Primeiramente, no V
Domingo da Quaresma do ano A lemos Ez 37,12-14 [2]. As leituras do Antigo
Testamento nos domingos desse tempo “referem-se à história da salvação (...).
Cada ano há uma série de textos que apresentam os principais elementos dessa
história, desde o princípio até a promessa da nova aliança” [3].
Visão de Ezequiel da "ressurreição" dos mortos (Crispin van der Broeck - séc. XVI) |
A leitura de Ezequiel, pois, encerra o ciclo do ano A e, ao mesmo tempo, ao profetizar a restauração de Israel através da imagem da ressurreição dos mortos, está em harmonia com o Evangelho da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-45) e com a leitura de Rm 8,8-11.
Cabe recordar que os textos desse domingo se interpretam também em chave batismal, uma vez que nesse dia se celebra o III Escrutínio dos catecúmenos em preparação à recepção dos sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal [4].
Nos dias de semana da Quaresma, por sua vez, quando as
leituras “tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” [5],
encontramos outros textos do nosso livro:
- na sexta-feira da I
semana da Quaresma: Ez 18,21-28 [6]. A perícope escolhida exorta-nos ao
arrependimento dos pecados - “Se o ímpio
se arrepender de todos os pecados cometidos... viverá” - e, ao mesmo tempo,
adverte o “justo” que, se pecar, será julgado por seu pecado. No Evangelho
desse dia, por sua vez, Jesus exorta a arrepender-se dos pecados cometidos contra
o irmão (Mt 5,20-26).
Cumpre destacar que o capítulo 18 de Ezequiel dá um importante passo em relação à moral do Antigo
Testamento, enfatizando a responsabilidade pessoal pelos pecados. Os vv. 1-20
reforçam que o homem não carrega a culpa dos seus antepassados, mas é
responsável pelas próprias ações, boas ou más (ver também Jr 31,29-30).
- na terça-feira da
IV semana da Quaresma: Ez 47,1-9.12 [7]. Aqui o profeta tem a visão de uma
fonte de água que corre do Templo e devolve a vida à terra, uma imagem da
renovação espiritual como fonte da restauração de Israel. No Evangelho, o
“poder curativo” das águas é simbolizado pela cura do paralítico junto à
piscina de Betesda (Jo 5,1-16).
- no sábado da V
semana da Quaresma: Ez 37,21-28 [8]. A conclusão do capítulo 37 anuncia a
reunião dos “dispersos de Israel” em um só povo, governado por um único pastor,
o Messias davídico, e estabelecendo com Deus uma aliança eterna. Esta profecia
é interpretada no Evangelho como tendo se realizado na morte de Cristo para a
salvação de todos (Jo 11,45-56).
Passando ao Tempo
Pascal, nosso profeta é proposto nas duas vigílias que formam a “moldura”
deste tempo: a Vigília Pascal e a Vigília de Pentecostes.
"Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados" (Ez 36,25) (Aspersão com água benta na Missa do Domingo de Páscoa) |
Na Vigília Pascal, coração do Ano Litúrgico, o texto de Ez 36,16-17a.18-28 é indicado como 7ª leitura [9], podendo também ser proferido à escolha quando, por razões pastorais, se reduz o número de leituras.
O texto é especialmente indicado quando há Batismos na Vigília, dado o simbolismo da água presente no texto como imagem da restauração de Israel: “Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados” (v. 25).
Vale recordar que esse mesmo texto é indicado como antífona
para a Aspersão com água benta que pode ser realizada no Ato Penitencial dos
domingos: “Derramarei sobre vós uma água
pura, sereis purificados de todas as faltas, e vos darei um coração novo, diz o
Senhor” (Ez 36,25-26) [10].
O texto acima, porém, é indicado para os domingos fora do
Tempo Pascal, uma vez que a antífona para o Tempo da Páscoa é tomada de outra
passagem de Ezequiel: “Vi a água saindo do lado direito do templo,
Aleluia! Todos a quem chega esta água recebem a salvação e proclamam: Aleluia!
Aleluia!” (Ez 47,1-2.9) [11]. A perícope remete à água que brota do lado
aberto de Cristo na cruz (cf. Jo
19,34).
Na Vigília de
Pentecostes, por sua vez, a perícope de Ez 37,1-14 é a 3ª leitura quando se
celebra a forma longa ou a 1ª leitura à escolha quando se celebra a forma breve
[12]. A restauração de Israel é expressa aqui através da imagem dos “ossos
secos” que, pelo sopro de Deus, recobram a vida, símbolo do Espírito Santo,
“Senhor que dá a vida”.
Nos domingos do Tempo
Comum, quando as leituras do Antigo Testamento são escolhidas em “relação
às perícopes evangélicas” [13], encontramos quatro ocorrências do nosso livro, sendo
duas no ano A e duas no ano B:
- no XXIII Domingo do
Tempo Comum do ano A: Ez 33,7-9 [14]. Aqui Deus dá ao profeta a missão de
ser “vigia para a casa de Israel”, advertindo o ímpio contra sua conduta. No
Evangelho, esta responsabilidade é estendida a todos, com a exortação de Jesus
à “correção fraterna” (Mt 18,15-20).
O profeta Ezequiel, "vigia da casa de Israel" (séc. XII) |
- no XXVI Domingo do
Tempo Comum do ano A: Ez 18,25-28 [15], sobre a responsabilidade pessoal
pelas ações, como vimos anteriormente, que ilumina a parábola dos “dois filhos”
(Mt 21,28-32): um representa o “justo” que peca, e portanto será julgado, e o
outro o “ímpio” que se arrepende, e por isso “viverá”.
- no XI Domingo do
Tempo Comum do ano B: Ez 17,22-24 [16], alegoria da restauração de Israel
na forma de um ramo de cedro, árvore nobre e durável, que é transplantado. A
imagem vegetal é usada também por Jesus para falar do Reino de Deus em duas
parábolas: a semente que cresce por si só e o grão de mostarda (Mc 4,26-34).
- no XIV Domingo do
Tempo Comum do ano B: Ez 2,2-5 [17], parte do relato da vocação do profeta,
enviado a pregar “quer te escutem, quer
não” (v. 5), que ilustra a rejeição de Jesus em Nazaré, sua terra (Mc
6,1-6).
Por fim, em duas Solenidades do Senhor no Tempo Comum lemos
uma passagem do capítulo 34 do Livro de Ezequiel, com a imagem de Deus como
pastor:
- na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus
do ano C (sexta-feira da II semana após o Pentecostes): Ez 34,11-16
[13], em harmonia com o Evangelho, que expressa o mistério do amor de Deus através
da parábola da “ovelha perdida” (Lc 15,3-7);
- na Solenidade de Jesus
Cristo Rei do universo do ano A
(último domingo do Ano Litúrgico): Ez 34,11-12.15-17 [19], expressando a realeza
de Cristo através da imagem do pastor: “Eu
mesmo vou apascentar as minhas ovelhas e fazê-las repousar” (v. 15).
Imagem de Cristo, o Bom Pastor (Mausoléu de Gala Placídia, Ravenna - séc. V) |
Concluímos aqui a primeira parte do nosso estudo sobre a
leitura litúrgica do Livro de Ezequiel.
Na próxima postagem continuaremos analisando sua leitura em composição
harmônica em outras celebrações do Rito Romano.
[Atualização: Para acessar a segunda parte dessa pesquisa, publicada no dia 13 de outubro, clique aqui]
[Atualização: Para acessar a terceira parte dessa pesquisa, publicada no dia 20 de outubro, clique aqui]
Breve bibliografia
sobre o Livro de Ezequiel usada para
esta postagem:
ABREGO DE LACY, José Maria. O profeta Ezequiel e a sua obra. in: Os livros proféticos. 2ª ed.
São Paulo: Ave Maria, pp. 199-212. Coleção: Introdução
ao Estudo da Bíblia, v. 4.
BOADT, Lawrence. Ezequiel.
in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER,
Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo
Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia
Cristã; Paulus, 2007, pp. 615-659.
MÍGUEZ, Julio Lamelas. Ezequiel.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento II. São Paulo: Ave Maria, 2004, pp. 179-236.
NIHAN, Christophe. Ezequiel.
in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 435-458.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[3] ALDAZÁBAL, op. cit.,
p. 97.
[4] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 226.
[5] ALDAZÁBAL, op. cit.,
p. 97.
[6] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] ibid., p. x.
[9] LECIONÁRIO I, p. x.
[10] MISSAL ROMANO, Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p.
1003.
[11] ibid., p.
1004.
[12] LECIONÁRIO I, p. x.
[13] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 103.
[14] LECIONÁRIO I, p. x.
[15] ibid., p. x.
[16] ibid., p. x.
[17] ibid., p. x.
[18] ibid., p. x.
[19] ibid., p. x.
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