Na série de Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, iniciamos suas meditações sobre as Vésperas da II semana do Saltério com os textos das I Vésperas
desse domingo: 21 de julho (Sl 118,105-112), 28 de julho (Sl 15) e 04 de agosto
de 2004 (Fl 2,6-11).
112. Meditação sobre a Palavra de Deus na Lei: Sl 118(119),105-112
21 de julho de 2004
1. Retomamos agora, nesta Audiência Geral, o nosso itinerário ao longo dos salmos propostos pela Liturgia das Vésperas.
Hoje encontramos a décima
quarta das vinte e duas estrofes que compõem o Salmo 118, grandioso hino à Lei
de Deus, expressão da sua vontade. O número das estrofes corresponde às letras
do alfabeto hebraico e indica plenitude; cada uma delas está composta por oito
versículos e por palavras que começam com a letra correspondente do alfabeto em
sucessão.
No nosso caso é a letra hebraica nun que abre as palavras iniciais dos versículos que agora escutamos. Esta estrofe resplandece com a imagem luminosa do seu primeiro versículo: “Vossa palavra é uma luz para os meus passos, é uma lâmpada luzente em meu caminho.” (v. 105). O homem avança no percurso muitas vezes obscuro da vida, mas improvisamente as trevas são rasgadas pelo esplendor da Palavra de Deus.
Também o Salmo 18 aproxima a Lei de Deus ao sol, quando afirma que “os mandamentos do Senhor são retos, alegria ao coração” (Sl 18,9). Depois, no Livro dos Provérbios, recorda-se que “o preceito é uma lâmpada, o ensinamento é uma luz” (Pr 6,23). O próprio Cristo apresentará a sua pessoa como revelação definitiva precisamente com a mesma imagem: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12).
"Vossa palavra é uma luz para os meus passos, é uma lâmpada luzente em meu caminho" (Sl 118,105) |
2. O salmista continua depois a sua oração recordando os sofrimentos e os perigos da vida que deve levar e que precisa ser iluminada e sustentada: “Senhor, estou cansado de sofrer; vossa palavra me devolva a minha vida! (...) Constantemente está em perigo a minha vida, mas não esqueço, ó Senhor, a vossa lei” (vv. 107.109).
Toda a estrofe está permeada por um fio tenebroso: “Os pecadores contra mim armaram laços” (v. 110), confessa o orante, recorrendo a uma imagem de caça muito conhecida no Saltério. O fiel sabe que progride pelos caminhos do mundo no meio de perigos, preocupações e perseguições; sabe que as provas armam sempre ciladas. O cristão, por sua vez, sabe que todos os dias deve carregar a cruz ao longo da subida do seu Calvário (cf. Lc 9,23).
3. Contudo, o justo conserva intacta a sua fidelidade: “Eu fiz um juramento e vou cumpri-lo: 'Hei de guardar os vossos justos julgamentos!’ (...) não esqueço, ó Senhor, a vossa lei (...) não reneguei vossos preceitos” (vv. 106.109.110). A paz da consciência é a força do crente; a sua constância na obediência aos mandamentos divinos é a fonte da serenidade.
Portanto, a declaração final é coerente: “Vossa palavra é minha herança para sempre, porque ela é que me alegra o coração!” (v. 111). Eis a realidade mais preciosa, a “herança”, a “recompensa” que o salmista conserva com solicitude vigilante e amor fervoroso: os ensinamentos e os mandamentos do Senhor. Ele deseja ser totalmente fiel à vontade do seu Deus. Por este caminho encontrará a paz da alma e conseguirá atravessar o enredo obscuro das provas, alcançando a alegria verdadeira.
São iluminadoras, a respeito, as palavras de Santo Agostinho, que, iniciando o comentário próprio do Salmo 118, desenvolve o tema da alegria que brota do cumprimento da Lei do Senhor: “Este longuíssimo Salmo convida-nos desde o início à felicidade que, como sabemos, está presente na esperança de cada homem. De fato, poderá existir alguém (ou existiu ou existirá) que não deseje ser feliz? Mas neste estado de coisas, que necessidade há de convites para uma meta para a qual o espírito humano tende espontaneamente? (...) Não será talvez porque, mesmo se todos aspiram à felicidade, é contudo desconhecido a muitos o modo como alcançá-la? Sim, é precisamente este o ensinamento daquele que exclama: ‘Felizes os íntegros nos seus caminhos, os que andam na lei do Senhor’.
Parece querer dizer: Sei o que desejas; sei que procuras a felicidade; pois bem, se queres ser feliz, mantém-te limpo de qualquer mancha. A primeira coisa todos procuram, e poucos, ao contrário, se preocupam da outra: mas sem ela não se pode obter aquilo que é desejo comum. Onde é que devemos estar sem mancha, a não ser no caminho? Este é unicamente a lei do Senhor. Por conseguinte, felizes os que são íntegros nos seus caminhos, os que andam na lei do Senhor! Exortação que não é supérflua, mas necessária para o nosso espírito” (Exposições sobre os Salmos, III, Roma, 1976, p. 1113).
Façamos nossa a conclusão do grande Bispo de Hipona, que recorda a atualidade permanente da felicidade prometida a quem se esforça em por cumprir fielmente a vontade de Deus.
113. O Senhor é a minha herança: Sl 15(16),1-11
28 de julho de 2004
1. Temos a oportunidade de meditar sobre um Salmo de forte tensão espiritual, depois de tê-lo ouvido e tornado oração. Não obstante as dificuldades textuais, que o original hebraico revela sobretudo nos primeiros versículos, o Salmo 15 é um cântico luminoso de inspiração mística, como sugere já a profissão de fé colocada na abertura: “Somente vós sois meu Senhor: nenhum bem eu posso achar fora de vós!” (v. 2). Portanto, Deus é visto como o único bem e por isso o orante escolhe colocar-se no âmbito da comunidade de todos aqueles que são fiéis ao Senhor: “Deus me inspirou uma admirável afeição pelos santos que habitam sua terra” (v. 3). Por essa razão o salmista rejeita radicalmente a tentação da idolatria, com os seus ritos sanguinários e com as suas invocações blasfemas (v. 4).
Trata-se de uma escolha categórica e decisiva, que parece refletir a do Salmo 72, outro canto de confiança em Deus, conquistada através de uma opção moral forte e difícil: “Quem teria eu no céu? Contigo, nada mais me agrada na terra... Quanto a mim, estar junto de Deus é o meu bem! Em Deus coloquei o meu abrigo” (Sl 72,25.28).
2. O nosso Salmo desenvolve dois temas que são expressos através de três símbolos: antes de tudo, o símbolo da “herança”, termo que sustenta os versículos 5-6: de fato, fala-se de “herança, taça, destino”. Estes vocábulos eram usados para descrever o dom da terra prometida ao povo de Israel. Nós sabemos agora que a única tribo que não tinha recebido uma porção de terra era a dos levitas, porque o próprio Senhor constituía a sua herança. O salmista declara justamente: “Senhor, sois minha herança... eu exulto de alegria em minha herança” (vv. 5.6). Ele suscita, portanto, a impressão de ser um sacerdote, que proclama a alegria de ser totalmente dedicado ao serviço de Deus.
Santo Agostinho comenta: “O salmista não diz: Ó Deus, dai-me uma herança! O que me dareis como herança? Ao contrário, diz: tudo o que me podeis dar fora de vós é insignificante. Sede vós mesmo a minha herança. Sois vós que amo... Esperar Deus de Deus, ser pleno de Deus por Deus. Ele te basta, fora d’Ele nada te pode bastar” (cf. Sermão 334, 3: PL 38, 1469).
3. O segundo tema é o da comunhão perfeita e contínua com o Senhor. O salmista exprime a firme esperança de ser preservado da morte para poder permanecer na intimidade de Deus, que não é mais possível na morte (cf. Sl 6,6; 87,6). Todavia, as suas expressões não impõem nenhum limite esta preservação; aliás, podem ser entendidas como uma vitória sobre a morte que assegura a intimidade eterna com Deus.
Os símbolos usados pelo orante são dois. Antes de tudo é o corpo a ser evocado (vv. 7-10): os exegetas dizem-nos que no original hebraico se fala de “rins”, símbolo das paixões e da interioridade mais escondida; de “direita”, sinal de força; de “coração”, sede da consciência; até de “fígado”, que exprime a emotividade; de “carne”, que indica a existência frágil do homem; e, enfim, de “sopro de vida”.
É, portanto, a representação do “ser inteiro” da pessoa, que não é absorvido e aniquilado na corrupção do sepulcro (v. 10), mas mantido na vida plena e feliz com Deus.
4. Eis, então, o segundo símbolo do Salmo 15, o do “caminho”: “Vós me ensinais vosso caminho para a vida” (v. 11). É a estrada que conduz à “felicidade sem limites” na presença divina, à “delícia eterna e alegria” ao lado do Senhor. Estas palavras se adaptam perfeitamente a uma interpretação que alarga a perspectiva à esperança da comunhão com Deus além da morte, na vida eterna.
Neste ponto é fácil intuir como o Salmo foi acolhido pelo Novo Testamento em vista da Ressurreição de Cristo. São Pedro, no seu discurso de Pentecostes, cita precisamente a segunda parte do hino com uma aplicação pascal e cristológica luminosa: “Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte” (At 2,24).
São Paulo refere-se ao Salmo 15 no anúncio da Páscoa de Cristo, durante o seu discurso na sinagoga de Antioquia da Pisídia. Sob esta luz, também nós o proclamamos: “Não deixarás o teu Santo ver a corrupção. Ora Davi, depois de servir na sua vida os desígnios de Deus, morreu; foi reunir-se aos seus pais e viu a corrupção. Mas aquele que Deus ressuscitou - ou seja, Jesus Cristo - não viu a corrupção” (At 13,35-37).
114. Cristo, o Servo de Deus: Fl 2,6-11
04 de agosto de 2004
1. No nosso itinerário através dos salmos e dos cânticos que constituem a Liturgia das Horas, encontramo-nos com o cântico de Fl 2,6-11, que se recita nas I Vésperas dos quatro domingos em que se articula a Liturgia.
É a segunda vez que o meditamos (cf. Catequese n. 92), continuando a penetrar a sua riqueza teológica. Nestes versículos brilha a fé cristã das origens, centralizada na figura de Jesus, reconhecido e proclamado como nosso irmão em humanidade, mas também Senhor do universo. Por conseguinte, é uma verdadeira e própria profissão de fé cristológica, que bem reflete o pensamento de São Paulo, mas que pode também fazer ecoar a voz da comunidade judaico-cristã anterior ao Apóstolo.
2. O cântico move-se a partir da divindade, própria de Jesus Cristo. Efetivamente, a Ele compete a “natureza” e a condição divina, a morphé como se diz em grego, ou seja, a mesma realidade íntima e transcendente de Deus (v. 6). Todavia, Ele não considera esta sua identidade suprema e gloriosa como um privilégio orgulhoso a ostentar, um sinal de poder e de mera superioridade.
O movimento do hino orienta-se claramente para baixo, isto é, para a humanidade. “Despojando-se”, “esvaziando-se” daquela glória, para assumir a morphé, ou seja, a realidade e a condição do servo, o Verbo entra deste modo no horizonte da história humana. Aliás, Ele torna-se semelhante aos seres humanos (v. 7) e chega mesmo a assumir aquele sinal do limite e da finitude que é a morte. Trata-se de uma humilhação extrema, porque a morte aceita é a da cruz, considerada como a mais aviltante da sociedade dessa época (v. 8).
3. Cristo escolhe abaixar-se da glória até a morte de cruz: este é o primeiro movimento do cântico, sobre o qual teremos ocasião de voltar a refletir para revelar outros matizes.
O segundo movimento procede em sentido oposto: partindo de baixo, eleva-se para o alto, da humilhação para a exaltação. Agora é o Pai que glorifica o Filho, tirando-o da morte e entronizando-o como Senhor do universo (v. 9). Também São Pedro, no discurso de Pentecostes, declara que “Deus constituiu Senhor e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes” (At 2,36). Por conseguinte, a Páscoa é a epifania solene da divindade de Cristo, antes escondida pela condição de servo e de homem mortal.
4. Diante da grandiosa figura de Cristo glorificado e entronizado, todos se prostram em adoração. Não apenas de todo o horizonte da história humana, mas também dos céus e da mansão dos mortos (v. 10), eleva-se uma poderosa profissão de fé: “Jesus Cristo é o Senhor!” (v. 11). “Aquele Jesus, que por um pouco de tempo foi feito um pouco inferior aos anjos, nós vemo-lo agora coroado de glória e de honra, por causa da morte que padeceu. Deste modo, pela graça de Deus, Ele experimentou a morte em favor de todos” (Hb 2,9).
Concluamos esta nossa breve análise do cântico de Filipenses, sobre a qual devemos voltar a refletir, passando a palavra a Santo Agostinho que, no seu Comentário do Evangelho de São João, remete ao hino paulino para celebrar o poder vivificador de Cristo, que realiza a nossa ressurreição, tirando-nos do nosso limite mortal.
5. Eis as palavras do grande Padre da Igreja:
“Cristo, ‘de natureza divina, não conservou para si mesmo, ciosamente, o fato de ser igual a Deus’. O que seria de nós, aqui embaixo no abismo, frágeis e apegados à terra, e por isso na impossibilidade de alcançar a Deus? Podíamos ser abandonados a nós mesmos? Absolutamente não. Ele ‘aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo’, sem contudo abandonar a condição de Deus. Portanto, aquele que era Deus fez-se homem, assumindo aquilo que não era, sem perder o que era; assim, Deus fez-se homem.
Por um lado, é aqui que encontras o socorro à tua debilidade; por outro, aqui encontras quanto te é necessário para alcançar a perfeição. Que Cristo te eleve, em virtude da sua humanidade, que te guie em virtude da sua divindade humana e que te oriente para a sua divindade. Ó, irmãos, toda a pregação cristã e a economia da salvação centralizada em Cristo se resumem nisto, e não em outra coisa: na ressurreição das almas e na ressurreição dos corpos. Ambos estavam mortos: o corpo, por causa da debilidade e a alma por causa da iniquidade; ambos estavam mortos e era necessário que ambos, a alma e o corpo, ressuscitassem. Em virtude de quem é que a alma ressuscita, senão em virtude de Cristo Deus? Em virtude de quem é que o corpo ressuscita, senão em virtude de Cristo homem? (...) Que a tua alma ressuscite da iniquidade em virtude da sua divindade, e que o teu corpo ressuscite em virtude da sua humanidade” (Comentário do Evangelho de São João, 23, 6, Roma, 1968, p. 451).
Jesus Cristo, o Servo do Senhor (Escultura na igreja de São Pedro in Gallicantu - Jerusalém) |
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