Na
série das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, chegamos às Vésperas da quinta-feira da I semana do
Saltério. O Papa refletiu sobre os textos desse dia nas Catequeses de 12 de
maio (Sl 29), 19 de maio (Sl 31) e 26 de maio de 2004 (Ap 11,17-18;
12,10b-12a).
106. Ação de graças pela
libertação: Sl 29(30),2-13
12 de maio de 2004
1. Eleva-se a Deus, do
coração do orante, uma ação de graças intensa e suave depois de se ter
dissolvido nele o pesadelo da morte. Eis o sentimento que sobressai com vigor
no Salmo 29, que agora ressoou não só aos nossos ouvidos, mas sem dúvida também
aos nossos corações.
Este hino de gratidão possui
uma notável delicadeza literária e fundamenta-se sobre uma série de contrastes
que expressam de maneira simbólica a libertação obtida pelo Senhor. Assim, o
“descer ao túmulo” opõe-se ao “livrar a alma dos abismos” (v. 4); à “ira de um
instante”, por parte de Deus, substitui-se a “bondade que permanece a vida
inteira” (v. 6); o “pranto” noturno é substituído pela “alegria” da manhã (ibid.); ao “pranto” sucede a “festa”, às
“vestes fúnebres”, os “adornos de alegria” (v. 12).
Por conseguinte, tendo
passado a noite da morte, desperta o alvorecer do novo dia. A tradição cristã
leu, pois, este Salmo como um cântico pascal. Confirma isto a citação de
abertura que a edição do texto litúrgico das Vésperas deduz
de um grande escritor monástico do século IV, João Cassiano: “Cristo, após
sua gloriosa Ressurreição, dá graças ao Pai”.
"Se à tarde vem o pranto visitar-nos, de manhã nos vem saudar a alegria" (Sl 29,6) Encontro do Ressuscitado com Maria Madalena na manhã do domingo (Alexander Ivanov) |
2. O orante dirige-se com
insistência ao “Senhor” - não menos de oito vezes - tanto para anunciar que o
louvará (vv. 2.13), como para recordar o grito que a Ele foi elevado no tempo
da prova (vv. 3.9) e a sua intervenção libertadora (vv. 2-4.8.12), como para
invocar novamente a sua misericórdia (v. 11). Em outro trecho, o orante convida
os fiéis a cantar hinos ao Senhor para dar-lhe graças (v. 5).
As sensações oscilam
constantemente entre a recordação terrível do pesadelo vivido e a alegria da
libertação. Sem dúvida, o perigo superado é grave e ainda consegue fazer
arrepiar; a memória do sofrimento passado é ainda nítida e viva; há pouco que
as lágrimas dos olhos se enxugaram. Mas já surgiu a aurora de um novo dia; a
morte foi substituída pela perspectiva da vida que continua.
3. O Salmo demonstra assim
que nunca nos devemos deixar seduzir pelo enredo obscuro do desespero, quando
parece que tudo já se perdeu. Sem dúvida, é preciso evitar cair na ilusão de
salvar-se sozinho, com os próprios recursos. De fato, o salmista é tentado pela
soberba e pela autossuficiência: “Nos momentos mais felizes eu dizia: ‘Jamais
hei de sofrer qualquer desgraça!’” (v. 7).
Também os Padres da Igreja
refletiram sobre esta tentação que se insinua no tempo da prosperidade, e viram
na prova uma chamada divina à humildade. Assim faz, por exemplo, São Fulgêncio,
Bispo de Ruspe (467-532), na sua Epístola
3, dirigida à religiosa Proba, na qual comenta o trecho do Salmo com estas
palavras: “O salmista confessava que por vezes se tinha envaidecido de ser
sadio, como se fosse sua virtude, e que nisto tinha visto o perigo de uma
gravíssima enfermidade. De fato, diz: ‘Eu dizia na minha felicidade: Jamais
serei abalado!’. E visto que, dizendo isto, tinha sido abandonado do apoio da
graça divina e, perturbado, precipitou na sua enfermidade, continua
dizendo: ‘Senhor, foste bom para mim e deste-me segurança; mas, se
escondes a tua face, logo fico perturbado’. Além disso, para mostrar que a ajuda
da graça divina, mesmo quando já a possuímos, deve ser contudo invocada
humildemente sem ininterrupção, ele acrescenta ainda: ‘A ti grito, Senhor,
peço a ajuda ao meu Deus’. Aliás, ninguém eleva a oração nem faz pedidos sem
reconhecer as suas faltas, nem considera poder conservar aquilo que possui
confiando unicamente na própria virtude” (Fulgêncio de Ruspe, Cartas, Roma, 1999, p. 113).
4. Depois de ter confessado
a tentação de soberba que teve no tempo da prosperidade, o salmista recorda a
prova que a ela se seguiu, dizendo ao Senhor: “Escondestes vossa face e
perturbei-me” (v. 8).
Então, o orante recorda de
que maneira implorou o Senhor (vv. 9-11): gritou, pediu ajuda, suplicando
que fosse salvo da morte, apresentando como razão o fato de que a morte não
traz vantagem alguma para Deus, dado que os mortos já não estão em condições de
louvar a Deus, nem têm motivos para proclamar a fidelidade de Deus, tendo sido
abandonados por Ele.
Encontramos os mesmos
argumentos no Salmo 87, no qual o orante, próximo da morte, pede a
Deus: “Poderá a tua bondade ser exaltada no sepulcro ou a tua fidelidade,
na mansão dos mortos?” (Sl 87,12).
De modo semelhante, o rei Ezequias, que estava gravemente doente, depois se
curou, dizia a Deus: “O abismo dos mortos não te louvará, nem a morte te
celebrará... apenas os vivos te podem louvar” (Is 38,18-19).
O Antigo Testamento exprimia
assim o intenso desejo humano de uma vitória de Deus sobre a morte e referia
diversos casos em que esta vitória tinha sido obtida: pessoas ameaçadas de morrer
de fome no deserto, presos que se livraram da pena de morte, doentes que se
curaram, marinheiros salvos do naufrágio (cf. Sl 106,4-32). Tratavam-se, contudo, de
vitórias não definitivas. Cedo ou tarde, a morte conseguia prevalecer sempre.
Todavia, a aspiração pela
vitória manteve-se sempre e tornou-se, no final, uma esperança de ressurreição.
A satisfação desta poderosa aspiração foi plenamente garantida com a Ressurreição
de Cristo, pela qual o nosso agradecimento nunca será demasiado.
107. Feliz o homem que foi
perdoado: Sl 31(32),1-11
19 de maio de 2004
1. “Feliz o homem que foi
perdoado e cuja falta já foi encoberta!”. Esta bem-aventurança, que abre o
Salmo 31 há pouco proclamado, faz-nos compreender imediatamente o motivo pelo
qual ele foi acolhido pela tradição cristã na série dos sete Salmos
Penitenciais. Depois da dupla bem-aventurança inicial (vv. 1-2), encontramos
não uma reflexão genérica sobre o pecado e o perdão, mas o testemunho pessoal
de um convertido.
A composição do Salmo é
bastante complexa: depois do testemunho (vv. 3-5) vêm dois versículos que falam
de perigo, de oração e de salvação (vv. 6-7); depois uma promessa divina de
conselho (v. 8) e uma admoestação (v. 9); e, por fim, um ditado sapiencial
antitético (cf. v. 10) e um convite a rejubilar no Senhor (cf. v. 11).
2. Retomamos agora apenas
alguns elementos desta composição. Antes de tudo o orante descreve a sua
penosíssima situação de consciência quando “se calava” (v. 3): tendo
cometido graves culpas, ele não tinha a coragem de confessar a Deus os seus
pecados. Era um tormento interior terrível, descrito com imagens
impressionantes. Os seus ossos quase definhavam sob uma febre abaladora, o
calor consumia o seu vigor dissolvendo-o, o seu gemido era contínuo. O pecador
sentia pesar sobre si a mão de Deus, consciente de que Deus não é indiferente
ao mal perpetrado pela sua criatura, porque Ele é o guardião da justiça e da
verdade.
3. Não podendo resistir
mais, o pecador decidiu confessar a sua culpa com uma declaração corajosa, que parece
antecipar a do filho pródigo da parábola de Jesus (cf. Lc 15,18).
De fato, disse com sinceridade de coração: “Eu irei confessar meu pecado!”.
São poucas palavras, mas surgem da consciência; Deus responde-lhe
imediatamente com um generoso perdão (v. 5).
O profeta Jeremias referia
este apelo de Deus: “Volta, rebelde Israel, não mais te mostrarei um semblante
enfurecido, oráculo do Senhor; porque sou misericordioso. A minha ira não é
eterna, oráculo do Senhor. Reconhece somente a tua falta, pois foste infiel ao
Senhor, teu Deus” (Jr 3,12-13).
Abre-se assim diante de
“todo fiel” arrependido e perdoado um horizonte de segurança, de confiança, de
paz, apesar das provas da vida (vv. 6-7). Ainda pode vir o tempo da angústia,
mas a maré progressiva do receio não prevalecerá, porque o Senhor guiará o seu
fiel para um lugar seguro: “Sois para mim proteção e refúgio; na minha angústia
me haveis de salvar, e envolvereis a minha alma no gozo da salvação que me vem
só de vós” (v. 7).
4. Neste ponto, o Senhor
toma a palavra e promete guiar o pecador já convertido. Com efeito, não é
suficiente ter sido purificado; é necessário depois caminhar pela via reta. Por
isso, como no Livro de Isaías (Is 30,21), o Senhor promete: “Indicarei o caminho que deves
seguir” (Sl 31,8) e
convida à docilidade. O apelo faz-se solícito, eivado de um pouco de ironia com
a vivaz comparação do jumento e do cavalo, símbolos de obstinação (v. 9). Com
efeito, a verdadeira sabedoria induz à conversão, deixando para trás o vício e
o seu obscuro poder de atração. Mas sobretudo conduz ao gozo daquela paz que
brota do fato de sermos libertados e perdoados.
São Paulo na Carta aos Romanos refere-se explicitamente ao início
do nosso Salmo para celebrar a graça libertadora de Cristo (cf. Rm 4,6-8).
Nós poderíamos aplicá-lo ao Sacramento da Reconciliação. Nele, à luz do Salmo,
experimenta-se a consciência do pecado, com frequência obscurecida nos nossos
dias, e ao mesmo tempo a alegria do perdão. O binômio “delito-castigo” é
substituído pelo binômio “delito-perdão”, porque o Senhor é um Deus “que perdoa
as culpas, as transgressões e os pecados” (Ex 34,7).
5. São Cirilo de Jerusalém
(séc. IV) usa o Salmo 31 para ensinar aos catecúmenos a renovação profunda do
Batismo, radical purificação de qualquer pecado (Pro-Catequese, n. 15). Também ele exaltará, através
das palavras do salmista, a misericórdia divina. Concluímos com as suas
palavras a nossa Catequese: “Deus é misericordioso e não poupa o seu perdão...
Não superará a grandeza da misericórdia de Deus o acúmulo dos teus pecados: não
superará a maestria do sumo Médico a gravidade das tuas feridas, desde que a Ele
te abandones com confiança. Manifesta ao Médico o teu mal, e ao expô-lo com as
palavras que Davi disse: ‘Eis que confessarei sempre ao Senhor a minha
iniquidade’. Assim obterás que se realizem as outras: ‘Tu perdoaste as
infidelidades do meu coração’” (Catequeses, Roma, 1993, pp. 52-53).
108. O julgamento de Deus: Ap
11,17-18; 12,10-12
26 de maio de 2004
1. O cântico que agora
elevamos ao “Senhor Deus onipotente”, e que é proposto na Liturgia
das Vésperas, é fruto da
seleção de alguns versículos dos capítulos 11 e 12 do Apocalipse. Já ressoou o toque da última das
sete trombetas que se ouve neste livro de luta e de esperança. Eis que os vinte
e quatro anciãos da corte celeste, que representam todos os justos da Antiga e
da Nova Aliança (cf. Ap 4,4; 11,16), entoam um hino que talvez
já fosse usado nas assembleias litúrgicas da Igreja primitiva. Eles adoram a Deus,
soberano do mundo e da história, que já está pronto para instaurar o seu reino
de justiça, de amor e de verdade.
Sente-se pulsar, nesta
oração, o coração dos justos que aguardam na esperança a vinda do Senhor para
tornar mais luminosa a vicissitude da humanidade, com frequência envolvida
pelas trevas do pecado, da injustiça, da mentira e da violência.
2. O cântico entoado pelos
vinte e quatro anciãos faz referência a dois salmos: o Salmo 2, que é uma
espécie de elegia messiânica (Sl
2,1-5), e o Salmo 98, que celebra a realeza divina (Sl 98,1). Desta forma, alcança a finalidade de exaltar o julgamento
justo e decisivo que o Senhor está para executar sobre toda a história humana.
São dois os aspectos desta
intervenção benéfica, como duas são também as características que definem o
rosto de Deus. Ele é juiz, mas é também salvador; condena o mal, mas recompensa
a fidelidade; é justiça, mas sobretudo amor.
É significativa a identidade
dos justos, agora salvos no Reino de Deus. Eles estão distribuídos em três
categorias de “servos” do Senhor, isto é, os profetas, os santos, e todos
aqueles que temem o seu nome (Ap 11,18).
Trata-se de uma espécie de retrato espiritual do povo de Deus, segundo os dons
recebidos no Batismo e feitos florescer na vida de fé e de amor. Um perfil que
se realiza tanto nos pequenos como nos grandes (Ap 19,5).
3. O nosso hino, como se
disse, é elaborado também com o uso de outros versículos do capítulo 12, que se
referem a um cenário grandioso e glorioso do Apocalipse. Nele confrontam-se a mulher que deu à luz o Messias e o
dragão da maldade e da violência. Neste duelo entre o bem e o mal, entre a
Igreja e Satanás, improvisamente ressoa uma voz celeste que anuncia a derrota
do “Acusador” (Ap 12,10). Este nome é
a tradução do nome hebraico Satán,
dado a uma personagem que, segundo o Livro
de Jó, é membro da corte celeste de Deus, onde desempenha a função do
“Ministério Público” (cf. Jó
1,9-11; 2,4-5; Zc 3,1).
Ele “acusava os nossos
irmãos, dia e noite, junto a Deus”, isto é, punha em questão a sinceridade da
fé dos justos. Agora o dragão satânico é obrigado ao silêncio e na origem da
sua derrota encontra-se “o sangue do Cordeiro” (Ap 12,11), a Paixão e a Morte de Cristo
redentor.
Com a sua vitória está
associado o testemunho do martírio dos cristãos. Existe uma participação íntima
na obra redentora do Cordeiro por parte dos fiéis que não hesitaram em “desprezar
a sua vida até à morte” (ibid.). O pensamento corre para as palavras de
Cristo: “Quem ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste
mundo, assegura para si a vida eterna” (Jo 12,25).
4. O solista celeste que
entoou o cântico, o conclui convidando todo o coro angélico a unir-se ao hino
de alegria pela salvação obtida (Ap 12,12).
Nós associamo-nos àquela voz na nossa ação de graças alegre e cheia de
esperança, mesmo no meio de provas que marcam o nosso caminho
rumo à glória.
Fazemo-lo ouvindo as
palavras que o mártir São Policarpo dirigia ao “Senhor Deus onipotente” quando
já estava amarrado e pronto para a fogueira: “Senhor Deus onipotente, Pai
do teu amado e bendito Filho Jesus Cristo, (...) que tu sejas bendito por me
teres julgado digno deste dia e, nesta hora, de ocupar um lugar na categoria
dos mártires, no cálice do teu Cristo, para a ressurreição à vida eterna de
alma e corpo na incorruptibilidade do Espírito Santo. Que eu seja admitido
hoje, entre eles, à tua presença, como abundante e agradável sacrifício, assim
como tu, o Deus verdadeiro que não conhece a mentira, precedentemente
dispuseste, manifestaste e realizaste. Por isso, acima de tudo, eu louvo-te, bendigo-te,
e glorifico-te através do teu eterno e celeste Sumo Sacerdote e dileto Filho,
Jesus Cristo, mediante o qual seja dada glória a Ti, com Ele e com o Espírito
Santo, agora e pelos séculos vindouros. Amém” (Atos e paixões dos mártires, Milão, 1987, p. 23).
"Eu confessei, afinal, meu pecado... E perdoastes, Senhor, minha falta" (Sl 31,5) ("A volta do filho pródigo" - Bartolomé Esteban Murillo) |
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