“Eu vos darei um
coração novo e porei um espírito novo dentro de vós” (Ez 36,26)
Em nossa postagem anterior, no contexto da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, iniciamos um estudo sobre a
leitura do Livro de Ezequiel (Ez) nas
celebrações litúrgicas do Rito Romano.
Após uma breve introdução, analisamos sua leitura sob o critério da composição harmônica (sintonia com o tempo ou a festa
litúrgica) no ciclo do Ano Litúrgico [1]. Aqui prosseguiremos com as Missas dos Santos, para diversas necessidades e votivas,
além dos demais sacramentos e sacramentais e da Liturgia das Horas.
"Profeta Ezequiel" - Aleijadinho (Santuário do Bom Jesus de Matosinhos - MG) |
2. Leitura litúrgica do Livro de Ezequiel: Composição harmônica
a) Celebração Eucarística
Começamos essa segunda parte da nossa pesquisa pelos Comuns dos Santos, formulários com várias opções de leituras que podem ser proferidas ad libitum (à escolha) segundo as várias "categorias" de santos.
Primeiramente encontramos nosso Livro no Comum da dedicação de igreja,
formulário utilizado no aniversário da dedicação da própria igreja, no
aniversário da dedicação da Catedral da diocese e na Festa da Dedicação da
Basílica do Latrão, Catedral de Roma (09 de novembro).
Aqui são propostos dois textos de Ezequiel à escolha:
- Ez 43,1-2.4-7a, a glória do Senhor que preenche o Templo
na forma de uma nuvem;
- Ez 47,1-2.8-9.12, a fonte de água que jorra do Templo e
vivifica toda a terra [2].
No Comum dos Pastores
também encontramos duas leituras de Ezequiel:
- Ez 3,16-21: a vocação do profeta, enviado como “vigia da
casa de Israel”;
- Ez 34,11-16: a imagem de Deus como pastor do seu povo [3].
Passando às Missas
para diversas necessidades, encontramos cinco perícopes da profecia de
Ezequiel, igualmente propostas ad libitum:
- na Missa pela santa
Igreja: Ez 34,11-16 [4], a promessa de Deus de apascentar o seu povo, como
vimos acima;
- na Missa pelos
leigos: Ez 36,24-28 [5], trecho no qual se anuncia a reunião de todos os
povos, sobre os quais Deus derramará uma “água
pura” e aos quais dará “um coração
novo”: “Sereis o meu povo e Eu serei
o vosso Deus” (v. 28). A água remete aqui à vocação batismal própria dos
cristãos leigos;
- na Missa pela
unidade dos cristãos se propõem dois textos: além de Ez 36,24-28, sobre o
qual falamos acima, também Ez 37,15-19.21b-22.26-28 [6], outra promessa sobre a
união dos povos;
O profeta Ezequiel contempla a "ressurreição" do povo (Francisco Collantes - séc. XVII) |
- nas Missas pela pátria,
pelos governantes, por um encontro de chefes de Estado, pelo chefe de Estado e
pelo progresso dos povos (que compartilham as mesmas opções de leituras):
Ez 3,16-21 [7], a missão do profeta como “vigia da casa de Israel”, lida neste contexto como a missão do bom governante;
- na Missa pelo
perdão dos pecados: Ez 18,21-23.30-32 [8], a promessa do perdão para o
pecador que se arrepende: “Convertei-vos
e vivereis” (v. 32).
Por fim, nas Missas
votivas, temos dois textos do nosso profeta:
- na Missa
votiva do Sagrado Coração de Jesus, quando se sugere Ez 34,11-16 [9], a
imagem de Deus como pastor que, como vimos na postagem anterior, é a 1ª leitura
da respectiva Solenidade no ano C. As mesmas leituras dessa Missa votiva são indicadas
para o Culto Eucarístico fora da Missa
[10].
- na Coletânea de Missas
de Nossa Senhora, por sua vez, na Missa
de Maria, fonte da salvação, um dos formulários para o Tempo Comum, lê-se
Ez 47,1-2.8-9.12 [11]. Maria é aqui imagem do Templo do qual brota a fonte de
água viva, que é Cristo. A leitura cristológica é corroborada pelo Evangelho,
no qual do lado aberto de Cristo brotam sangue e água (Jo 19,25-37).
Ainda sobre a relação entre a Virgem Maria e a profecia de Ezequiel, vale a pena recordar aqui o
simbolismo da porta oriental do templo de Jerusalém, que permaneceria fechada
até a vinda do Senhor: “Esta porta ficará
fechada. Não se abrirá e ninguém entrará por ela, porque por ela entrará o
Senhor, Deus de Israel” (Ez 44,2).
Esta profecia é tradicionalmente associada ao mistério da
virgindade perpétua de Maria: seu ventre abriu-se apenas para acolher o Verbo
Encarnado. No hino Akathistos da
tradição bizantina, com efeito, a Virgem é celebrada como “porta do augusto
mistério” (estrofe n. 15) e “porta de quem quer salvar-se” (estrofe n. 19)
[12].
Para saber mais sobre o hino Akathistos, confira nossa postagem sobre o ícone a ele associado.
Imagem do profeta Ezequiel com a porta oriental do Templo |
b) Sacramentos e
sacramentais
Além da Celebração Eucarística, a Igreja nos propõe textos ad libitum de Ezequiel nos outros dois sacramentos da Iniciação Cristã (Batismo e Confirmação) e no sacramento da Reconcilição.
Primeiramente, para a celebração do Batismo são indicados dois textos:
- Ez 36,24-28 (para o Batismo de adultos e de crianças) [13].
Trata-se, como vimos na postagem anterior, da 7ª leitura da Vigília Pascal, com
a imagem da água que purifica todos os povos, renovando seu espírito e seu
coração.
- Ez 47,1-9.12 (apenas para o Batismo de crianças) [14], a
imagem da água que jorra do Templo e vivifica tudo o que toca.
A mesma leitura da Vigília Pascal é proposta à escolha também
para o sacramento da Confirmação: Ez
36,24-28 [15], demonstrando a unidade entre os sacramentos da Iniciação Cristã e
destacando a imagem do Espírito Santo como “fonte viva”.
Para o sacramento da
Reconciliação, por sua vez, dada a importância do arrependimento dos
pecados em sua obra, são propostas quatro perícopes de Ezequiel.
Em primeiro lugar temos Ez 11,19-20: estes dois
versículos, com a promessa de um coração novo, são indicados como leitura
facultativa para a confissão individual [16].
Os outros três textos, mais longos, são indicados para a
celebração comunitária da Reconciliação com confissões individuais, ou para
celebrações penitenciais em preparação ao sacramento:
- Ez 11,14-21: a promessa de Deus ao povo de dar-lhe um
coração novo se este abandonar sua idolatria, para que “observem e pratiquem seus preceitos”;
- Ez 18,20-32: a promessa de perdão ao ímpio que se
arrepende de seus pecados;
- Ez 36,23-28: nova promessa de um coração novo e o anúncio
da água que purificará o povo dos seus pecados, como vimos acima [17].
Quanto aos sacramentais,
para a Bênção de um confessionário
são indicados os mesmos textos do Ritual
da Penitência. Portanto, pode ser proferida ad libitum qualquer das três leituras acima, embora o Ritual de Bênçãos destaque Ez 18,20-32
[18].
c) Liturgia das Horas
Por fim, o último “locus
liturgicus” (lugar litúrgico) da leitura em composição harmônica de Ezequiel no Rito Romano é a Liturgia das
Horas.
Primeiramente temos uma leitura
longa do nosso escrito no Ofício das
Leituras do Domingo de Páscoa, o qual só é rezado por aqueles que não
participam da Vigília Pascal. Por isso, este Ofício traz quatro leituras da
Vigília, incluindo, como 2ª leitura, Ez 36,16-28 [19], sobre a qual já falamos anteriormente.
As leituras breves
de Ezequiel, por sua vez, são mais
abundantes, nas Laudes e na Hora Média dos tempos do Advento, Natal e Quaresma.
Primeiramente temos uma leitura na Hora Média (15h) das terças-feiras do Advento até a III semana e do dia 20 de dezembro: Ez 34,15-16 [20], com a promessa de Deus de
apascentar o seu povo, a qual se realiza na vinda do Messias.
No Tempo do Natal,
por sua vez, temos outros dois textos do nosso livro, ambos na Hora Média do dia 05 de janeiro e do sábado
após a Epifania:
- 9h: Ez
20,41-42a;
- 12h: Ez
34,11-12 [21].
Em ambos os textos Deus promete reunir todas as nações em um
só povo, antevendo a Epifania, isto é, a manifestação do Senhor às nações,
representadas pelos magos.
Passando ao Tempo da
Quaresma, encontramos três leituras de Ezequiel:
- na Hora Média (9h)
das quartas-feiras da Quaresma até a IV semana: Ez 18,30b-32 [22], uma
exortação a arrepender-se de seus pecados;
- na Hora Média (12h)
das segundas-feiras da Quaresma até a IV semana: Ez 18,23 [23], um oráculo
no qual Deus afirma que não deseja a morte do pecador, mas que se converta e
viva;
- na Hora Média (9h)
das segundas-feiras da V semana da Quaresma e da Semana Santa: Ez
33,10b.11a [24], uma versão mais elaborada do texto anterior, como um diálogo
entre o povo, que suplica sob o peso do seu pecado, e Deus, que responde através
do chamado à conversão.
O profeta Ezequiel exorta o povo de Israel à conversão (Gustave Doré - séc. XIX) |
Encerramos aqui a segunda parte do nosso estudo sobre a
leitura litúrgica do Livro de Ezequiel.
A extensão e a importância deste escrito demandam ainda uma terceira parte, na
qual estudaremos sua leitura semicontínua e um texto entoado como cântico na
Liturgia das Horas.
[Atualização: Para acessar a terceira parte dessa pesquisa, publicada no dia 20 de outubro, clique aqui]
Notas:
[1] cf. ALDAZÁBAL,
José. A Mesa da Palavra I: Elenco das
Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[3] ibid., p. x.
[4] ibid., p. x.
[5] ibid., p. x.
[6] ibid., p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] ibid., p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] SAGRADA COMUNHÃO e
o culto do Mistério Eucarístico fora da Missa. Edição típica em tradução
portuguesa para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 98.
[11] LECIONÁRIO para
Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 125.
[12] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.].
Ofícios Litúrgicos Bizantinos:
Akathistos, Paraklesis e outros. Teresina: Editora da Universidade Federal
do Piauí, 2015, pp. 19.21.
[13] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 243; RITUAL DO BATISMO DE CRIANÇAS. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda
edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, p. 127.
[14] RITUAL DO BATISMO DE CRIANÇAS, p. 127.
[15] LECIONÁRIO IV: Lecionário
do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil.
São Paulo: Paulus, 2000, p. 10.
[16] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São
Paulo: Paulus: 1999, p. 30.
[17] ibid., pp.
108-111.
[18] RITUAL DE
BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 338.
[19] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, p. 461.
[20] ibid., v. I,
pp. 134.187.244.313.
[21] ibid., v. I,
pp. 476-477.564. O sábado após a Epifania equivale ao dia 12 de janeiro nos
lugares onde essa Solenidade é celebrada no dia 06.
[22] ibid., v. II,
pp. 46.102.159.216.275. A V semana da Quaresma tem textos próprios, já entrando
no mistério da Paixão.
[23] ibid., v. II,
p. 86.144.200.259.
[24] ibid., v. II,
pp. 317.379.
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