Concluindo
as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos das Vésperas da
I semana do Saltério, propomos suas meditações sobre os textos da sexta-feira
dessa semana, proferidas nos dias 02 de junho (Sl 40), 16 de junho (Sl 45) e 23
de junho de 2004 (Ap 15,3-4).
109. Prece de um enfermo: Sl
40(41),2-14
02 de junho de 2004
1. Um motivo que nos leva a
compreender e amar o Salmo 40, que agora ouvimos, é o fato do próprio Jesus tê-lo
citado: “Não me refiro a todos vós. Eu bem sei quem escolhi, e há de
cumprir-se a Escritura: ‘Aquele que come do meu pão levantou contra mim o
calcanhar’” (Jo 13,18; cf. Sl 40,10).
É a última noite da sua vida
terrestre e Jesus, no Cenáculo, está prestes a oferecer o pedaço de pão
ensopado a Judas, o traidor. O seu pensamento vai a esta frase do Salmo que, na
realidade, é a súplica de um homem enfermo abandonado pelos seus amigos.
Naquela antiga oração Cristo encontra sentimentos e palavras para expressar a
sua profunda tristeza.
Agora nós procuraremos
seguir e iluminar todo o enredo deste Salmo, que surgiu dos lábios de uma
pessoa que sofre, sem dúvida devido à sua enfermidade, mas sobretudo
devido à cruel ironia dos seus “inimigos” (vv. 6-9) e até pela traição de um
“amigo” (v. 10).
2. O Salmo 40 começa com uma
bem-aventurança. Ela tem como destinatário o amigo verdadeiro, aquele que “pensa
no pobre”: ele será recompensado pelo Senhor no dia do seu sofrimento, quando
estiver, por sua vez, “em seu leito de dor” (vv. 2-4).
Mas o coração da súplica
encontra-se na parte seguinte, onde o doente toma a palavra (vv. 5-10). Ele
começa o seu discurso pedindo perdão a Deus, segundo a tradicional concepção
veterotestamentária de que a cada sofrimento correspondia a uma culpa: “Meu
Deus, tende pena de mim, curai-me, Senhor, pois pequei contra vós!” (v. 5; cf. Sl 37). Para o antigo hebreu, a doença
era um apelo à consciência para dar início à conversão.
Mesmo se se trata de uma
visão superada por Cristo, Revelador definitivo (cf. Jo 9,1-3),
o sofrimento em si mesmo pode esconder um valor secreto e tornar-se um caminho
de purificação, de libertação interior, de enriquecimento da alma. Ele convida
a vencer a superficialidade, a vaidade, o egoísmo, o pecado e a confiar-se mais
intensamente a Deus e à sua vontade salvífica.
"Meu Deus, tende pena de mim; curai-me, Senhor, pois pequei contra vós!" (Sl 40,5) ("Jó" de Gerard Seghers) |
3. Mas eis que entram em cena os maldosos, aqueles que vieram visitar o doente não para confortá-lo, mas para atacá-lo (vv. 6-9). As suas palavras são ásperas e atingem o coração do orante, que experimenta uma maldade que não conhece piedade. Farão a mesma experiência muitos pobres humilhados, condenados a estar sozinhos e a sentir-se um peso para os seus familiares. E se por vezes lhes são destinadas algumas palavras de conforto, sentem imediatamente o tom falso e hipócrita.
Aliás, como se dizia, o orante experimenta a indiferença e a dureza até por parte dos amigos (v. 10), que se transformam em figuras hostis e odiosas. O salmista usa com eles a expressão de “levantar o calcanhar”, o ato ameaçador de quem está para ofender um vencido ou o impulso do cavaleiro que excita o seu cavalo com o calcanhar para fazer com que vença o adversário.
A amargura é profunda quando quem nos ofende é o “amigo” no qual se tinha confiança, chamado literalmente em hebraico “o homem da paz”. O pensamento dirige-se para os amigos de Jó, que de companheiros de vida se transformam em presenças indiferentes e hostis (cf. Jó 19,1-6). Ressoa no nosso orante a voz de uma multidão de pessoas esquecidas e humilhadas na sua enfermidade e debilidade, também da parte daqueles que deveriam tê-las amparado.
4. Contudo, a oração do Salmo 40 não termina com este quadro sombrio. O orante tem a certeza de que Deus se apresentará no seu horizonte, revelando mais uma vez o seu amor (vv. 11-14). Será Ele quem oferecerá o apoio e tomará nos seus braços o doente, o qual voltará para a sua “presença” (v. 13), isto é - segundo a linguagem bíblica -, reviverá a experiência da Liturgia no templo.
O Salmo, marcado pelo sofrimento, termina contudo em um raio de luz e de esperança. Nesta perspectiva consegue-se compreender como Santo Ambrósio, ao comentar a bem-aventurança inicial (v. 2), tenha visto profeticamente nela um convite a meditar sobre a Paixão salvífica de Cristo que conduz à Ressurreição. De fato, o Padre da Igreja sugere que nos introduzamos da seguinte maneira na leitura do Salmo: “Bem-aventurados aqueles que pensam na miséria e na pobreza de Cristo, o qual, sendo rico, se fez pobre por nós. Rico no seu Reino, pobre na carne, porque assumiu sobre si esta carne de pobres... Portanto, não sofreu na sua riqueza, mas na nossa pobreza. Não foi então a plenitude da divindade que sofreu... mas a carne... Procura, pois, penetrar o sentido da pobreza de Cristo, se queres ser rico! Procura penetrar o sentido da sua debilidade, se desejas obter a saúde! Procura penetrar o sentido da sua cruz, se não te queres envergonhar dela; o sentido da sua ferida, se queres curar as tuas; o sentido da sua morte, se desejas alcançar a vida eterna; o sentido da sua sepultura, se desejas encontrar a ressurreição” (Comentário a doze salmos: Saemo, VIII, Milão-Roma, 1980, pp. 39-41).
110. O Senhor é refúgio e vigor: Sl 45(46),2-12
16 de junho de 2004
1. Acabamos de ouvir o primeiro dos seis cânticos de Sião que estão contidos no Saltério (cf. Sl 47; 75; 83; 86; 121). O Salmo 45, como as demais composições análogas, celebra a cidade santa de Jerusalém, “a Cidade de Deus, a morada do Altíssimo” (v. 5), mas expressa sobretudo uma confiança inabalável em Deus, que é “para nós refúgio e vigor, sempre pronto, mostrou-se um socorro na angústia” (v. 2; cf. vv. 8.12). O Salmo recorda as perturbações mais terríveis para afirmar com maior vigor a intervenção vitoriosa de Deus, que dá segurança total. Devido à presença de Deus nela, Jerusalém “não pode vacilar” (v. 6).
O pensamento corre ao oráculo do profeta Sofonias, que se dirige a Jerusalém e lhe diz: “Rejubila, filha de Sião, solta gritos de alegria, povo de Israel! Alegra-te e exulta com todo o coração, filha de Jerusalém... O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa, como nos dias de festa” (Sf 3,14.17-18).
2. O Salmo 45 está dividido em duas grandes partes por uma espécie de antífona, que ressoa nos versículos 8 e 12: “Conosco está o Senhor do universo! O nosso refúgio é o Deus de Jacó!”. O título “Senhor do universo” no original é “Senhor dos exércitos”, típico do culto hebraico no templo de Sião e, apesar do aspecto marcial, relacionado com a arca da aliança, remete para o senhorio de Deus sobre todo o universo e sobre a história.
Por conseguinte, este título é fonte de confiança, porque todo o mundo e todas as suas vicissitudes estão sob o governo supremo do Senhor. Portanto, este Senhor está “conosco”, como diz ainda a antífona, com uma referência implícita ao Emanuel, o “Deus-conosco” (cf. Is 7,14; Mt 1,23).
3. A primeira parte do cântico (vv. 2-7) está centrada no símbolo da água e apresenta um duplo significado contrastante. Com efeito, por um lado, desencadeiam-se as águas tenebrosas que, na linguagem bíblica, são símbolo das devastações, da confusão e do mal. Elas fazem tremer as estruturas do ser e do universo, simbolizadas nos montes, abalados por uma espécie de dilúvio destruidor (vv. 3-4). Mas, por outro lado, eis as águas que saciam a sede a Sião, uma cidade situada sobre os montes áridos, mas que “os braços de um rio” (v. 5) alegram. O salmista - mesmo fazendo alusão às fontes de Jerusalém, como a de Siloé (cf. Is 8,6-7) - entrevê neles um sinal da vida que prospera na cidade santa, da sua fecundidade espiritual, da sua força regeneradora.
Por isso, apesar das perturbações da história, que fazem murmurar os povos e agitar os reinos (v. 7), o fiel encontra em Sião a paz e a serenidade que brotam da comunhão com Deus.
4. A segunda parte do Salmo (vv. 9-11) pode delinear assim um modelo transfigurado. O Senhor do seu trono, em Sião, intervém com extremo vigor contra as guerras e estabelece a paz que todos imploramos. Quando se leem os vv. 9-10 do nosso cântico: “Reprime as guerras na face da terra, Ele quebra os arcos, as lanças destrói, e queima no fogo os escudos e as armas”, o pensamento corre espontaneamente para Isaías.
Também o profeta cantou o fim da recorrência às armas e a transformação dos instrumentos bélicos de morte em meios para o desenvolvimento dos povos: “Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra” (Is 2,4).
5. Com este Salmo, a tradição cristã dirigiu hinos a Cristo, “nossa paz” (cf. Ef 2,14) e nosso libertador do mal através da sua Morte e Ressurreição. É sugestivo o comentário cristológico desenvolvido por Santo Ambrósio sobre o v. 6 do Salmo 45, que descreve o “socorro” oferecido à cidade pelo Senhor “antes do amanhecer”. O célebre Padre da Igreja vê nele uma alusão profética à Ressurreição.
De fato, explica: “a Ressurreição matutina obtém-nos o sustento da ajuda celeste, ela que afastou a noite, trouxe-nos o dia, como dizem as Escrituras: ‘Acorda e levanta-te, eleva-te dos mortos! E resplandecerá para ti a luz de Cristo’. Observa o sentido místico! Ao anoitecer cumpriu-se a Paixão de Cristo... Ao alvorecer a Ressurreição... Ao anoitecer do mundo é morto, quando a luz já esmorece, porque este mundo jazia totalmente nas trevas e teria sido imerso no horror de trevas ainda mais escuras, se Cristo, luz de eternidade, não tivesse vindo do céu para trazer a idade da inocência ao gênero humano. Por conseguinte, o Senhor Jesus sofreu e com o seu sangue perdoou os nossos pecados, fez resplandecer a luz de uma consciência mais límpida e brilhou o dia de uma graça espiritual” (Comentário a doze salmos: Saemo, VIII, Milão-Roma, 1980, p. 213).
111. Hino de adoração: Ap 15,3-4
23 de junho de 2004
1. A Liturgia das Vésperas, além dos salmos, inclui uma série de cânticos tirados do Novo Testamento. Alguns, como o que agora ouvimos, estão repletos de trechos do Apocalipse, o livro colocado como coroamento de toda a Bíblia, muitas vezes marcado por cânticos e coros, por vozes solistas e hinos da assembleia dos eleitos, por sons e trombetas, harpas e cítaras.
O nosso cântico, muito breve, provém do capítulo 15 daquela obra. Está para ter início uma nova e grandiosa cena: as sete trombetas, que introduziram igual número de flagelos divinos, são agora substituídas por sete taças também cheias de flagelos, em grego pleghé, uma palavra com que se indica um golpe tão violento que provoca feridas e, por vezes, até a morte. É evidente neste caso uma referência à narração das pragas do Egito (cf. Ex 7,14–11,10).
No Apocalipse, o “flagelo-chaga” é símbolo de um julgamento sobre o mal, sobre a opressão e a violência do mundo. Por isso é também sinal de esperança para os justos. Os sete flagelos - como se sabe, na Bíblia o número sete é símbolo de plenitude - são definidos como “últimos” (Ap 15,1), porque neles a intervenção divina que combate o mal alcança o seu cumprimento.
2. O hino é entoado pelos que foram salvos, pelos justos da terra, que estão “em pé”, a mesma atitude do Cordeiro Ressuscitado (v. 2). Assim como os hebreus no êxodo depois da travessia do mar cantavam o hino de Moisés (cf. Ex 15,1-18.21), também os eleitos elevam a Deus o seu “cântico de Moisés e do Cordeiro” (Ap 15,3), depois de ter vencido a Besta, inimiga de Deus (v. 2).
Este hino reflete a Liturgia das igrejas joaninas e é constituído por uma antologia de citações do Antigo Testamento, em particular dos Salmos. A comunidade cristã das origens considerava a Bíblia não só como a alma da sua fé e da sua vida, mas também da sua oração e da sua Liturgia, como acontece precisamente nas Vésperas que estamos comentando.
É também significativo que o cântico seja acompanhado pelos instrumentos musicais: os justos têm nas mãos as cítaras (ibid.), testemunho de uma Liturgia envolvida pelo esplendor da música sacra.
3. Com o seu hino, os salvos, mais do que celebrar a sua constância e o seu sacrifício, exaltam as “grandes e admiráveis” obras do “Senhor e nosso Deus onipotente”, isto é, os seus gestos salvíficos no governo do mundo e na história. De fato, a verdadeira oração, além de ser um pedido, é também louvor, ação de graças, bênção, celebração, profissão de fé no Senhor que salva.
Depois, é significativa neste cântico a dimensão universal, expressa com as palavras do Salmo 85: “Todas as nações que criaste virão adorar-te, Senhor, e darão glória ao teu nome” (Sl 85,9). Desta forma, o olhar se estende por todo o horizonte e entreveem-se multidões de povos que convergem para o Senhor para reconhecer as suas “justas decisões” (Ap 15,4), isto é, as intervenções na história para vencer o mal e enaltecer o bem. A expectativa de justiça presente em todas as culturas, a necessidade de verdade e de amor sentida por todas as espiritualidades, contêm uma tendência para o Senhor, que é satisfeita unicamente quando o alcança.
É bonito pensar neste alcance universal da religiosidade e da esperança, assumido e interpretado pelas palavras dos profetas: “Do nascente ao poente, o meu nome é grande entre as nações, e em todos os lugares é oferecido ao meu nome um sacrifício de incenso e uma oferenda pura. Na verdade, é grande entre as nações o meu nome, diz o Senhor do universo” (Ml 1,11).
4. Concluímos associando a nossa voz à universal. Fazemo-lo através das palavras de uma elegia de São Gregório Nazianzeno, grande Padre da Igreja do século IV: “Glória ao Pai e ao Filho, Rei do universo, glória ao Espírito Santíssimo, ao qual sejam prestados todos os louvores. A Trindade é um só Deus: Ele criou e preencheu todas as coisas, o céu com os seres celestes, a terra com os terrestres. Encheu o mar, os rios e as nascentes de seres aquáticos, vivificando tudo com o próprio Espírito, para que toda a criação entoasse hinos ao sábio Criador: o viver e o permanecer na vida têm por causa somente Ele. Que a natureza racional cante para sempre o seu louvor como Rei poderoso e Pai bondoso. Em espírito, com a alma, com os lábios, com o pensamento, faz com que também eu em pureza te glorifique, ó Pai” (Poesias, 1, Coleção de textos patrísticos 115, Roma, 1994, pp. 66-67).
"Os braços de um rio vêm trazer alegria à Cidade de Deus" (Sl 45,5) (Visão da Jerusalém celeste - John Martin) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário