“Isto diz o teu Filho:
Está na hora de minha Mãe estar comigo para sempre. Não temas, pois passarás
para a vida eterna” [1].
A Dormição da Mãe de Deus, celebrada no dia 15 de agosto, é
a última das Doze Grandes Festas do calendário litúrgico bizantino. No Rito Romano é celebrada nessa mesma data - ou transferida para o domingo seguinte - com o nome de Solenidade da Assunção de Nossa Senhora.
Nesta postagem da nossa série sobre os ícones das festas litúrgicas contemplaremos a representação gráfica desse mistério.
1. História e significado da festa
Como vimos em postagens anteriores dessa série, o Ano
Litúrgico Bizantino começa em setembro, com a Festa da Natividade da Mãe de Deus, e termina em agosto, com a sua Dormição. Assim, a vida de Maria serve de
“moldura” ao mistério de Cristo.
A Festa da Dormição surgiu no Oriente entre os séculos V-VI,
inicialmente como uma celebração “genérica” em honra da Mãe de Deus. A partir de
meados do século VI, porém, sobretudo a partir de Jerusalém, começa a centrar-se
no dies natalis de Maria, isto é, no
dia do seu nascimento para o céu.
A festa foi prescrita no Rito Bizantino pelo Imperador Maurício (†602), sendo precedida por duas semanas de jejum, desde o dia 01 de agosto (uma espécie de “pequena Quaresma”), e prolongando-se até o dia 23 (“pós-festa”).
Ícone da Dormição (séc. XV) |
Em Roma, por sua vez, foi popularizada no final do século
VII pelo Papa São Sérgio I (†701), de origem oriental, que prescreveu uma
solene procissão luminosa na noite entre os dias 14 e 15 de agosto. Na
sequência, o Papa São Leão IV (†855) enriqueceria a celebração com uma Vigília
e uma oitava.
Naturalmente a celebração ganhou grande destaque após a
proclamação do dogma da Assunção de Maria no dia 01 de novembro de 1950 pelo
Papa Pio XII (†1958), através da Constituição Apostólica Munificentissimus Deus.
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Solenidade da Assunção da Virgem Maria.
Sobre o nome da celebração, considerando o papel singular da
Virgem-Mãe na história da salvação, os cristãos orientais sempre utilizaram o
eufemismo “Dormição” (em grego, Κοίμησις, Koimésis)
para referir-se ao caráter pacífico da sua morte. Os cristãos ocidentais, por
sua vez, sempre enfatizaram a Assunção de Maria aos céus (unida à sua coroação
como Rainha dos céus e da terra).
Apesar de enfatizarem diferentes aspectos, Oriente e
Ocidente celebram o mesmo mistério: a realização do Mistério Pascal em Maria,
isto é, sua participação no mistério da Morte, Ressurreição e Ascensão aos céus
do seu Filho.
Além disso, ambas as tradições destacam que a relação de
Maria com a Igreja: desde sua entrada na glória, Maria não cessa de interceder
por nós, como canta o tropário da festa:
“Em tua Maternidade
conservaste a virgindade e em tua Dormição não abandonaste o mundo, ó Mãe de
Deus. Foste levada para a vida sendo a Mãe da Vida, e por tuas orações resgatas
nossas almas da morte” [2].
2. O ícone
O ícone da Dormição está inspirado nos relatos do “Transitus Mariae”, isto é, da “passagem”
da Virgem Maria da vida terrena para a vida eterna, uma série de textos
apócrifos que surgiram entre os séculos V e VI.
Os relatos começam narrando como o anjo Gabriel anuncia à
Virgem Maria sua morte, trazendo-lhe um ramo de palmeira, símbolo da
vitória dos justos (cf. Sl 91,13-16; Ap 7,9), o mesmo sinal usado na entrada messiânica de Jesus em Jerusalém.
Embora não apareça no ícone da Dormição, esse primeiro
acontecimento traça um paralelo com a Anunciação: em algumas representações
deste mistério, com efeito, o anjo porta um lírio, símbolo de pureza e de
eleição (cf., por exemplo, Ct 2,2).
Afresco na Abadia da Dormição, Jerusalém |
Na sequência, os Apóstolos são milagrosamente transportados para o local onde se encontra a Virgem Maria (exceto Tomé, em algumas versões). Os Apóstolos contam a Maria suas atividades missionárias e rezam juntos. Ela então manda oferecer incenso, pois Cristo se aproxima com os seus anjos. Este, com efeito, acolhe a alma da sua Mãe em seus braços e a leva para o paraíso.
Os Apóstolos então se preparam para sepultar o corpo de Maria, encontrando alguma resistência por parte dos judeus. Ao terceiro dia o túmulo é encontrado vazio. Em algumas versões é Tomé que, chegando “atrasado”, encontra o túmulo vazio; em outras versões, Tomé é testemunha da própria assunção do corpo da Virgem ao céu, a qual lhe dá seu cinto como sinal [3].
a) O ambiente
O ícone nos situa na cidade de Jerusalém, representada por
dois edifícios na parte superior, os quais nos remetem a dois montes da cidade:
o Monte Sião e o Monte das Oliveiras.
Segundo a tradição, Maria teria morrido no Cenáculo, junto
ao Monte Sião, o mesmo local onde ela permaneceu com os Apóstolos,
perseverantes na oração, entre a Ascensão e o Pentecostes (At 1,12-14). O Cenáculo é também o local da Última Ceia e do
encontro dos discípulos com o Ressuscitado.
A “tumba de Maria”, por sua vez, e, por conseguinte, o local
da sua Assunção aos céus, encontrava-se no Monte das Oliveiras, o mesmo local
da Ascensão do Senhor e onde Jesus costumava ir para rezar com os Apóstolos (Lc 22,39).
Os dois locais, pois, nos recordam a dupla relação de Maria,
com Cristo e com a Igreja, como o Concílio Vaticano II enfatizou através do
capítulo VIII da Constituição Dogmática Lumen
Gentium.
“Esta é a rocha das
igrejas. Este é o lugar de encontro dos Apóstolos. Esta é a mãe de todas as
igrejas espalhadas pelo mundo” [4]. De Jerusalém os Apóstolos foram
enviados em missão “até os confins da terra” (At 1,8); agora eles novamente se reúnem na Cidade Santa em torno da
Mãe de Deus. Trata-se de uma eloquente imagem da Igreja, contemplativa e
missionária ao mesmo tempo.
b) A Mãe de Deus
Na parte inferior do ícone encontramos a Virgem Maria
deitada sobre uma cama, o leito fúnebre. Ela aparece com as vestes tradicionais
que a caracterizam: a túnica azul, indicando que carregou no ventre o próprio
Céu e o manto vermelho, indicando sua humanidade. Sobre o manto, na cabeça e
nos ombros, encontramos três estrelas, sinal de que foi iluminada pela Trindade
e penhor de sua virgindade perpétua. Para saber mais, confira nossa postagem sobre os ícones da Mãe de Deus.
Ícone da Dormição do séc. XVI |
Sendo representada na horizontal, em contraste com o Cristo na vertical, Maria representa “a humanidade, a terra fértil preparada e pronta para receber a semente” [5]. Maria é a nova Eva que, “repleta de confiança, contempla a seu Senhor”, o novo Adão, “que lhe infunde a fé e a esperança” [6].
O ícone traça também a distinção entre a Ascensão do Senhor, na qual Cristo sobe aos céus de maneira ativa, por força da sua natureza divina, e a Assunção de Maria, na qual esta “é assunta”, “é elevada”, de maneira passiva, por graça de Deus.
O corpo de Maria evoca ainda a nave da Igreja, da qual ela é
Mãe e imagem, com os Apóstolos Pedro e Paulo à sua cabeceira e aos seus pés, como
a proa e a popa do navio.
Em algumas versões do ícone junto ao corpo da Virgem
encontra-se uma vela acesa, que pode nos remeter à vigilância: Maria é aquela “virgem
prudente” da parábola (Mt 25,1-13),
aquela que “escolheu a melhor parte” (Lc
10,42).
Também junto à Virgem Maria, em algumas versões do ícone,
encontra-se um homem que tenta tocar o seu corpo e tem suas mãos decepadas pela
espada de um anjo. Segundo os relatos do Transitus
Mariae, esse homem tentava impedir o sepultamento de Maria, evitando que
seu sepulcro se tornasse um local de culto cristão.
Ao tocar no corpo, um anjo, às vezes identificado como o
arcanjo Miguel, imediatamente decepa suas mãos com uma espada de fogo. Em
algumas versões, por sua vez, as mãos do homem ficam secas. O homem então se arrepende e pede perdão,
sendo curado após uma oração do Apóstolo Pedro.
Note-se como o relato nos remete ao
sucedido com o servo do Sumo Sacerdote na prisão de
Jesus (Mt 26,51 e paralelos), além de reforçar a associação de Maria com a arca da aliança, que não podia ser tocada por estranhos (cf. 2Sm 6,6-7). Maria, ao carregar em seu ventre o próprio Cristo, a Palavra que se fez carne (Jo 1,14), é com razão invocada como “arca” da nova e eterna aliança.
c) O Cristo
No centro do ícone encontramos Jesus Cristo, ora com as vestes “espelhando” as da Mãe (túnica vermelha sob manto azul), recordando sua dupla natureza (humana e divina), ora com as vestes douradas da realeza, como no ícone da Ascensão. Para saber mais sobre as vestes de Jesus, confira nossa postagem sobre o ícone do Salvador.
Ele está no centro de um grande círculo ou mandorla (halo em forma de “amêndoa”), rodeado de anjos, sobretudo querubins e serafins, que nos remetem à esfera celeste.
Tudo no ícone converge para Ele, síntese entre Criador e criatura: “De fato, o centro do ícone não é a Mãe de Deus, mas Cristo” [7]. Traçando um magnífico paralelo com os ícones de Maria, Jesus traz em seus braços a alma de sua Mãe, na forma de uma criança, indicando sua pureza.
Se antes era a criatura a levar nos braços o seu Criador, agora é Maria, também ela “filha no seu Filho”, que é levada nos braços por seu Senhor. Assim, exprime-se o mistério de amor que une ambos.
Além disso, evoca-se aqui a humildade de Maria: ela, que deveria
ser o centro da festa, cede o lugar ao seu Filho. Eis o motivo pelo qual recebe
o título de nossa Mãe, “não somente por
ter sido instrumento da Encarnação, mas sobretudo por ter sido o ponto de
encontro entre a humanidade e a divindade e a guia do homem para Deus” [8].
d) Os anjos
Desempenham um papel importante neste ícone os anjos, subdivididos
em três grupos. O primeiro grupo é o dos anjos que acompanham o Senhor que vem
buscar a sua Mãe, formando um halo à sua volta, como indicamos acima.
Costumam ser representadas aqui todas as “hierarquias
celestes”, desde os querubins e serafins, com suas tradicionais seis asas, até
os simples anjos, identificados pelo bastão de mensageiros que portam. Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história do culto aos anjos.
O segundo grupo de anjos aparece apenas em algumas versões
do ícone. Tratam-se dos anjos que levam a Virgem Maria para
o céu, que são geralmente os arcanjos Miguel e Gabriel. O grupo, representado dentro de um medalhão, remete-nos à transladação da arca da aliança (Ap 11,19): da Jerusalém terrena para a Jerusalém
celeste, “a arca espiritual viva e
espiritual é levada pelos anjos a seu descanso, no seio de Abraão” [9].
Por fim, um terceiro grupo de anjos também é encontrado apenas em algumas versões do ícone. Trata-se de doze anjos que trazem os Apóstolos dos quatro cantos da terra em pequenas nuvens no céu. Tanto os anjos quanto os Apóstolos convergem para Cristo, no centro do ícone.
Ícone da Dormição (séc. XV) Com os Apóstolos nas nuvens e a Virgem ao centro |
Canta uma das composições para a festa, colocada nos lábios de Maria: “Apóstolos, vindos de todas as latitudes da terra ao lugar do Getsêmani, tomai sob vossos cuidados meu corpo. E tu, meu Filho e meu Deus, recebe meu espírito” [10].
A confluência dos Doze Apóstolos em Jerusalém, guiados pelos anjos, tem um alcance escatológico: expressa a reunião das doze tribos do novo Israel, a Igreja, na expectativa da segunda vinda do seu Senhor.
As nuvens que trazem os Apóstolos, com efeito, indicam uma particular manifestação divina: na Sagrada Escritura, a nuvem é sempre sinal da teofania, da manifestação de Deus. Algumas versões dos textos apócrifos remetem aqui ao ocorrido com o diácono Filipe após o batismo do etíope (At 8,39) para fundamentar o extraordinário evento.
e) Os Apóstolos, os
Bispos e as mulheres
Por fim, completam o ícone os Apóstolos, como vimos acima,
os Bispos e as santas mulheres que pranteiam o corpo da Virgem Maria.
Em destaque, primeiramente, os proto-corifeus do coro dos
Apóstolos, Pedro e Paulo, como já referimos, à cabeceira e aos pés de Maria.
Pedro costuma ter nas mãos um turíbulo, que indica não tanto a homenagem
fúnebre à Mãe, mas a adoração do Filho, como narrado no De Transitu Mariae: “A Mãe do Senhor disse aos Apóstolos: ‘Atirai
incenso, pois Cristo já está vindo com um exército de anjos’”.
Dentre os Apóstolos, em algumas versões nota-se a ausência
de Tomé. Fazendo um paralelo com o primeiro encontro com o Ressuscitado na
tarde da Páscoa, alguns dos relatos apócrifos testemunham sua ausência.
Vemos também junto aos Apóstolos seus sucessores, os Bispos,
identificados pelo omophorion, uma faixa
de lã com cruzes bordadas utilizada no Rito Bizantino (equivalente ao pálio do
Rito Romano).
Completam a cena um grupo de santas mulheres, expressando
assim o pleroma, isto é, a totalidade da Igreja visível na
expectativa de tomar parte com Maria na Jerusalém celeste.
“Nem o túmulo nem a
morte prevaleceram sobre a Mãe de Deus, que, sem cessar, reza por nós e
permanece firme esperança de intercessão. Com efeito, Aquele que habitou um
seio sempre virgem assumiu para a vida aquela que é a Mãe da Vida”
(Kontákion da festa) [11].
Notas:
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Dormição da Mãe de Deus. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 18.
Coleção: Iconostásio, 19.
[2] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 65.
[3] cf. PROENÇA,
Eduardo de [org.]. Apócrifos e
pseudo-epígrafos da Bíblia, v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp.
759-776.
[4] PASSARELLI, op.
cit., p. 23.
[5] ibid., p. 21.
[6] ibid., p. 29.
[7] ibid., p. 20.
[8] ibid., p. 34.
[9] ibid., p. 32.
[10] ibid., p. 15.
[11] DONADEO, op. cit.,
p. 65.
Postagem publicada originalmente em 15 de agosto de 2020. Revista e ampliada em 13 de agosto de 2022.
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