“Elevado foste à
glória, ó Cristo nosso Deus, enchendo de alegria os discípulos com a promessa
do Espírito Paráclito” - Tropário da
festa [1]
40 dias após a Páscoa as igrejas do Oriente e do Ocidente
celebram a festa da Ascensão do Senhor (no Brasil, transferida para o domingo
seguinte). Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, vamos
refletir sobre a representação gráfica desta celebração.
Origem e conteúdo da
festa:
Até o século IV, a Ascensão era celebrada junto com o
Pentecostes, cinquenta dias após a Páscoa, como testemunha a peregrina Etéria
em seu Itinerarium. Descrevendo a Liturgia
da Jerusalém do século IV, ela menciona uma “estação” no Monte das Oliveiras em
honra da Ascensão na tarde do quinquagésimo dia após a Páscoa.
A partir do século V as duas festas começam a separar-se,
uma vez que já encontramos homilias dos Santos Padres (como Agostinho ou João
Crisóstomo) próprias para o dia da Ascensão.
No Rito Romano destaca-se ao longo da história a procissão
em honra de Cristo Rei neste dia, como no Domingo de Ramos, recordando a
caminhada dos Apóstolos até o Monte das Oliveiras e de volta a Jerusalém e a
entrada triunfal de Jesus no céu. Com o tempo, porém, foi substituída pelas
procissões penitenciais nos três dias anteriores (as chamadas Rogações) [2].
De toda forma, a festa da Ascensão conclui a celebração da
Ressurreição na tradição bizantina, marcando o coroamento da missão terrena de
Jesus. Ao mesmo tempo, serve de transição à festa de Pentecostes, celebrando o
início da missão da Igreja com o envio dos Apóstolos, precedido pelos dias que
estes passaram em oração junto com Maria. Todos estes elementos estão presentes
no ícone da festa, como veremos a seguir.
O ícone
O ambiente: O ambiente
do ícone é marcado pelas montanhas, em referência ao Monte das Oliveiras, local
da Ascensão nos Atos dos Apóstolos (At 1,12). Ao mesmo tempo, a montanha evoca
sempre o local da teofania, da manifestação de Deus, como retratado em diversos
ícones.
Geralmente encontramos neste ícone quatro cumes rochosos,
intercalados por quatro arbustos verdes. As quatro rochas representam “os quatro ângulos da terra ‘estéril’ e
escrava da idolatria”, ao passo que os quatro arbustos são o “anúncio da Boa Nova, idealmente simbolizada
pelos quatro evangelistas” [3].
Toda a cena da Ascensão se insere em uma “Liturgia cósmica”,
na qual céu e terra “concelebram” (cf.
Sacrosanctum Concilium, n. 08). Os
arbustos indicam a participação da natureza nesta Liturgia: Deus manifesta-se
ao mundo e o mundo vai ao seu encontro. Ao mesmo tempo, é exortação à Igreja a
testemunhar o Evangelho de Jesus Cristo “a todas as nações (Mt 28,19) “até os
confins da terra” (At 1,8).
Cristo: Na parte
superior do ícone, ao centro, temos a figura de Cristo. Ele é representado ao
mesmo tempo subindo aos céus e retornando “para
julgar os vivos e os mortos”, como atesta o livro do Apocalipse: “Eis que ele vem com as nuvens, e todos os
olhos o verão, até mesmo os que o transpassaram, e todas as tribos da terra”
(Ap 1,7).
A dimensão escatológica do ícone é simbolizada pelo gesto de
Cristo: está sentado no trono, em atitude de juiz, apontando para a terra com a
mão direita, indicando assim seu senhorio sobre todas as coisas, e segurando
com a esquerda o pergaminho, onde estão escritos os nossos pecados. Porém, seu
rosto não expressa severidade, mas sim bondade, misericórdia.
Além disso, suas vestes não são mais as brancas da
Ressurreição, mas sim as douradas da realeza: é o Rei-Pastor que veio ao
encontro da ovelha perdida para conduzi-la ao paraíso. Junto com as vestes
douradas possui a tradicional estola pendente do ombro direito, simbolizando
sua missão sacerdotal, fazendo a ponte entre Deus e os homens.
Além disso, Cristo está sentado dentro de uma grande
auréola, que indica o céu e, por seu formato circular, o eterno. Na Encarnação
o eterno havia entrado na história; agora, na Ascensão, Ele eleva a nossa
história, a nossa humanidade, à dimensão do eterno.
Maria: Na parte
inferior do ícone, ao centro, bem abaixo de Cristo, encontra-se a Virgem Maria.
O livro dos Atos dos Apóstolos atesta sua presença junto à primeira comunidade
reunida em oração, à espera do Espírito Santo (At 1,14).
Embora a Sagrada Escritura não mencione sua presença no
Monte das Oliveiras, sua presença aqui traça um paralelo com sua presença junto
à cruz: “(...) convinha de fato que
aquela que, como Mãe, tinha sofrido mais que qualquer outro na tua Paixão,
fosse cumulada de alegria acima de qualquer outra alegria na glorificação do teu
corpo” [4]. Se Maria é a Mãe das dores quando o corpo do Filho é elevado na
cruz, agora é a Mãe da alegria quando seu corpo é elevado ao céu!
Além disso, tanto após a Morte do Senhor quanto após sua
Ascensão, Maria se torna o “centro moral” da Igreja, ao redor da qual vão
reunir-se os Apóstolos. Sua autoridade é visível no ícone através da presença
da auréola sobre sua cabeça (sendo a única pessoa, além de Cristo e dos anjos a
possui-la), de um pequeno pedestal sob seus pés e do gesto das mãos elevadas,
tipicamente sacerdotal.
Com suas mãos elevadas, o gesto do orante na iconografia
cristã, Maria parece estar dirigindo aos Apóstolos e a todos que contemplam o
ícone o convite dirigido aos fiéis pelo sacerdote no início da Oração
Eucarística ou Anáfora nas várias tradições: “Corações ao alto!”.
Os Apóstolos:
Ladeando a Virgem Maria encontramos os Apóstolos, divididos em dois grupos de
seis, um presidido por Pedro e o outro por Paulo.
Embora a figura de Paulo seja aqui anacrônica, justifica-se
pela autoridade que possuía na Igreja primitiva junto com Pedro. Ambos são
chamados na tradição bizantina de “protocorifeus
do coro dos Apóstolos” [5]. Prova disso, em nosso ícone, é o fato de serem
os únicos a portar os rolos da Escritura nas mãos.
Todos os Doze Apóstolos estão olhando para cima, para
Cristo, com atitude surpresa, alguns com as mãos levantadas: encarnam o espanto
do homem diante do mistério. Ao mesmo tempo, porém, simbolizam a espera do cumprimento
da promessa de Jesus: o envio do Espírito Santo.
Passarelli chama a atenção para o fato de que geralmente
nenhum dos Apóstolos está vestido de verde, cor associada ao Espírito Santo na
tradição bizantina, pois ainda “vai começar neles a renovação” [6], no dia
de Pentecostes.
Os anjos: Por
fim, temos no ícone ao menos quatro anjos: dois (ou mais) que sustentam Cristo
em sua Ascensão e dois junto aos Apóstolos.
Primeiramente os anjos junto a Cristo cumprem aqui a função
das crianças no ícone da entrada em Jerusalém: são os arautos do rei, que
anunciam a sua chegada, como testemunha Romanos, o Melode:
“Os primeiros anjos
gritaram a todas as Potências celestes: abri as portas, abri as entradas
triunfais para o céu, porque já está para subir o Rei da glória (Sl 23,7-8). Estendei-vos, nuvens, sob Aquele que está
pronto para a Ascensão. Preparai-vos, ares, para acolher Aquele que está
próximo a cruzar-vos. Abri-vos, céus. Acolhei-o, céu dos céus, porque sobre até
ti Aquele que disse aos seus: Não me separarei de vós; Eu estou convosco”
[7].
Os anjos que acompanham Jesus, como atesta o relato apócrifo
do Apocalipse de Pedro, são de hierarquias inferiores, mais próximos a nós, que
sobem com Jesus para anunciá-lo aos anjos de hierarquias superiores (querubins,
serafins) e exortá-los a abrir as portas do céu.
Em contrapartida, o mesmo relato fala de dois anjos “cujos rostos não podíamos contemplar, porque
emitiam luz mais brilhante que a do sol” [8], que se dirigem aos Apóstolos,
exortando-os a não ficarem olhando para o céu.
Estes dois anjos aparecem no ícone na mesma linha dos
Apóstolos, ladeando a Virgem Maria. Possuem, como atesta o relato bíblico,
vestes muito brancas, além de cajados que indicam sua missão de mensageiros,
como o anjo Gabriel no ícone da Anunciação.
Em algumas versões do ícone um dos anjos segura um rolo
aberto com a citação dos Atos dos Apóstolos: “Homens da Galileia, por que estais aí a olhar para o céu? Este Jesus
que foi arrebatado dentre vós para o céu, assim virá do mesmo modo como o
vistes partir” (At 1,10-11).
“Tendo cumprido o plano salvífico sobre nós, e reunido as criaturas
terrestres às celestes, ascendeste ao céu em glória, Cristo nosso Deus, sem
contudo te afastares de nós, mas permanecendo conosco clamas aos que te amam:
Eu estou convosco e ninguém prevalecerá contra vós!”
Kontákion da festa [9]
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da Ascensão. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 47. Coleção: Iconostásio, 16.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, p. 64.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 71-75.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 850-856.
[3] PASSARELLI, op.
cit., p. 08.
[4] DONADEO, op. cit.,
p. 74.
[5] A palavra coriphé
em grego indica o “topo da cabeça”. No teatro grego era empregada para o
regente do coro. Proto-corifeus seriam então os primeiros dentre os que ocupam
o lugar mais alto, isto é, os primeiros dentre os Apóstolos.
[6] PASSARELLI, op.
cit., p. 36.
[7] ibid., p. 22.
[8] ibid., p. 28.
[9] DONADEO, op. cit.,
p. 72.
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