quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O ícone da Transfiguração do Senhor

“Hoje, no Tabor, transformou Cristo a escura natureza de Adão: revestindo-a de seu esplendor, divinizou-a”­ [1].

Retomando a lista das Doze Grandes Festas da tradição bizantina em nossa série de postagens sobre os ícones, meditaremos hoje sobre a Festa da Transfiguração do Senhor, celebrada tanto no Oriente como no Ocidente no dia 06 de agosto.

1. História e significado da festa

Embora no Rito Romano o Evangelho da Transfiguração do Senhor (Mt 17,1-8 e paralelos) seja sempre proclamado no II Domingo da Quaresma, este mistério é celebrado também com uma festa própria no dia 06 de agosto.

Essa festa surge entre as Igrejas Orientais no final do século V, provavelmente como uma comemoração da dedicação da igreja sobre o Monte Tabor. Com efeito, embora o Evangelho não mencione o nome da montanha da Transfiguração, desde o século III esta é identificada com o Monte Tabor. 

No Ocidente, a festa chega mais tarde, em torno ao século X, sendo finalmente instituída para toda a Igreja de Rito Romano pelo Papa Calisto III em 1457.

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Festa da Transfiguração do Senhor.

Essa celebração possui uma estreita relação com a próxima festa cristológica do calendário: a Exaltação da Santa Cruz, a 14 de setembro. O intervalo entre as duas é de cerca de 40 dias, indicando que a Transfiguração é uma prefiguração do Mistério Pascal da Morte e Ressurreição de Cristo. A presença dos três Apóstolos - Pedro, Tiago e João - no Monte Tabor e na agonia do Monte das Oliveiras corrobora para unir nossa festa ao mistério da Cruz.

Sobre o ícone da Transfiguração, há uma tradição entre os orientais de que seja o primeiro ícone a ser “escrito” pelo aprendiz de iconógrafo. Isto porque, nas palavras do grande teólogo Pavel Evdokimov, “o ícone pinta-se não tanto com as cores, mas com a luz do Tabor” [2].

Ícone da Transfiguração (séc. XV)

O tema da luz do Tabor é particularmente caro à tradição bizantina. A mente humana não tem a capacidade de atingir sozinha o alto deste monte, por isso o Filho em sua misericórdia vem ao nosso encontro, nos iluminando com a sua luz.

Cristo, de fato, assumiu a natureza de Adão, isto é, a nossa natureza humana, obscurecida pelo pecado, para iluminá-la com a sua luz: é o que se chama na teologia oriental de theosis, isto é, divinização.

Hoje, em tua divina transfiguração, a inteira natureza humana brilha de divino resplendor e exclama com júbilo: O Senhor transfigura-se salvando todos os homens”, canta o kontákion da vigília da festa [3].

2. O ícone da Transfiguração

a) O ambiente:

O ambiente do ícone é, naturalmente, a montanha, identificada pela tradição como o Monte Tabor. Já afirmamos reiteradas vezes nesta série de postagens sobre o simbolismo da montanha na Sagrada Escritura como o local da teofania, da manifestação de Deus.

O monte costuma estar dividido em três picos, sobre os quais encontramos os personagens da esfera celeste: Jesus, Moisés e Elias. O monte é alto e íngreme, indicando que a ascensão espiritual é difícil. O pico indica tanto o conhecimento de Deus quanto a perfeição da virtude, isto é, a inteligência e a vontade iluminadas pela graça de Deus. Para atingir este cume, precisamos nos despojar do “velho homem” e revestir-nos do “homem novo” (Ef 4,21-24).

Indicando este ascensão espiritual, em algumas versões do ícone encontramos duas grutas, na linha que separa os Apóstolos do alto da montanha. Geralmente dentro destas grutas encontramos Jesus e os Apóstolos de um lado subindo a montanha e do outro a descendo.

A imagem da gruta, presente no ícone da Natividade do Senhor, indica aqui a nossa humanidade, o mundo sensível em oposição ao mundo espiritual do alto da montanha. Vemos aqui a influência platônica, que utiliza a “alegoria da caverna” para falar do conhecimento. Saímos da gruta ou caverna para receber a iluminação divina e a ela retornamos para comunicar esta luz a nossos irmãos.

b) Cristo:

Na parte superior do ícone, bem no centro, encontramos a pessoa de Jesus. Está representado em pé, com as vestes brancas, as mesmas do ícone da Ressurreição, e iluminando toda a cena com a sua luz.


Observe-se o ícone por onde se quiser: os rostos das pessoas, as vestes, as rochas da paisagem, e ver-se-á como tudo está iluminado pela luz que irradia da pessoa de Jesus” [4]: do seu corpo saem efetivamente raios de luz que atingem a todos.

Em algumas versões do ícone os raios de luz formam uma estrela de seis pontas, isto é, uma estrela formada por dois triângulos, um apontando para cima e o outro para baixo, indicando o duplo movimento de Deus ao encontro do homem e do homem em busca de Deus.

Essa luz é o Senhor, que se manifesta em três raios - simbolizando a Trindade -, os quais se dirigem para o alto, isto é, para todas as criaturas angélicas e celestiais, e nos outros três que se dirigem para o mundo e suas criaturas (...). Cristo é o ponto de interseção entre a natureza divina e humana” [5].

Em outras versões, porém, os raios são quatro, indicando os quatro pontos cardeais, a totalidade da criação. Neste ícone podem ser encontrados ainda quatro arbustos ao longo da montanha, com o mesmo simbolismo: toda a criação iluminada pelo Senhor.

Cristo aparece no centro de uma grande auréola, na forma de círculos concêntricos. Em algumas versões a auréola é oval (mandorla), recordando o simbolismo do ovo como imagem da vida.

A auréola representa o céu, e os círculos concêntricos as etapas da ascensão da alma a Deus. Com efeito, tanto no Oriente quanto no Ocidente o itinerário espiritual passa por etapas de luz e de trevas, pela etapa “iluminativa” do cultivo das virtudes e pela etapa “purgativa” da purificação dos pecados, para então chegar à etapa “unitiva”, a theosis.

c) Moisés e Elias:

Nos dois picos das montanhas, ladeando Cristo, encontramos Moisés e Elias. Estes dois personagens do Antigo Testamento também tiveram um encontro com Deus na montanha e representam aqui respectivamente a Lei e os Profetas.


Moisés está à esquerda de Jesus (à direita de quem contempla o ícone), em uma atitude humilde, encurvada, com as mãos cobertas pelo manto e oferecendo a Cristo o livro da Lei, indicando que Cristo irá dar-lhe “pleno cumprimento” (Mt 5,17). Jesus, com efeito, segura na mão esquerda um rolo, que poderia representar aqui o Novo Testamento.

Este personagem é retratado como um jovem, indicando assim a eterna juventude da Lei e, por conseguinte, de toda Palavra de Deus, “a fim de que saibas que a Lei, os Profetas e o Evangelho convergem sempre para uma única unidade, e constituem uma só glória” [6].

À direita de Cristo (e à esquerda de quem contempla o ícone) encontramos Elias, representado como um ancião que aponta para Cristo, significando que Ele é o cumprimento de todas as profecias.

Em algumas versões do ícone há ainda outras duas figuras nesta linha: dois anjos que acompanham Moisés e Elias. Elias teria sido arrebatado para o céu em uma carruagem de fogo (cf. 2Rs 2), em alusão aos serafins, enquanto Moisés, segundo a tradição, teria vislumbrado o céu antes de sua morte, após a qual seu corpo teria sido recolhido pelos anjos (cf. Jd 9). Ambos, são, pois, prefigurações da Ascensão do Senhor.

d) Os Apóstolos:

Por fim, na parte inferior do ícone encontramos os Apóstolos Pedro, Tiago e João. Incapazes de suportar a luz da teofania, caem por terra, cobrindo o rosto com as mãos.

Tiago e João são representados com o rosto para baixo, sendo Pedro o único voltado para o alto, uma vez que é ele que toma a palavra: “Mestre, é bom estarmos aqui!” (Lc 9,33).

Sobre o monte te transfiguraste e os teus discípulos, à medida que o podiam, viram a tua glória, ó Cristo Deus, a fim de que quantos te vissem crucificado, compreendessem que a tua Paixão era voluntária e proclamassem ao mundo que tu és verdadeiramente o resplendor do Pai
Kontákion da festa [7]


Notas:
[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Transfiguração. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 17. Coleção: Iconostásio, 15.
[2] ibid., pp. 11-12.
[3] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 60.
[4] PASSARELLI, op. cit., p. 25.
[5] ibid., p. 27.
[6] ibid., p. 34.
[7] DONADEO, op. cit., p. 61.

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