“À mística mesa
reverentes vamos todos e, com alma pura, o pão divino recebamos” [1]
Entrando no sagrado Tríduo do Senhor Crucificado, Sepultado
e Ressuscitado, o Tríduo Pascal, chegamos hoje, em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, ao ícone da última Ceia, também chamada
de “Ceia mística”.
Origem e conteúdo da
festa:
Segundo um autor ortodoxo russo, os três dias do Tríduo
Pascal são a “resposta de amor da
Igreja-Esposa ao amor sacrifical e redentor do Cristo, seu Esposo, a recepção
solene da cruz, do Evangelho, do cálice eucarístico e da glória da Ressurreição
que ilumina” [2].
Do pôr-do-sol da Quinta-feira até o pôr-do-sol da
Sexta-feira estamos no primeiro dia do Tríduo: o dia do Senhor Crucificado.
Assim, no Oriente e no Ocidente se celebra na noite desta Quinta-feira a
memória da última Ceia, antecipação ritual do sacrifício oferecido sobre a
cruz.
Segundo um dos textos das Matinas (Rito Bizantino), nesse dia os fiéis
orientais celebram quatro mistérios: “o
sagrado Lava-pés, a Ceia mística, isto é, a entrega dos tremendos Mistérios, a
oração divina no Horto, a traição de Judas” [3]. Os textos deste dia farão
referência aos quatro mistérios [4], centrando-se na instituição da Eucaristia,
ou dos Sagrados Mistérios, como este sacramento era chamado no início da
Igreja.
São do século V os primeiros registros das celebrações da
Quinta-feira Santa: no Rito Romano as referências centrais desta
Missa eram a instituição da Eucaristia e a traição de Judas (os quais, como veremos, são também os dois elementos
centrais do ícone deste dia). Mais tarde foi acrescentado o rito
do Lava-pés, que na tradição bizantina é
reservado à Liturgia presidida pelo Bispo [5].
A Ceia é, dentro do mistério da Paixão, um “oásis e regozijo espiritual pela nova e
eterna aliança selada entre Deus e o homem” [6]. Esta aliança é celebrada
através da recordação dos dois sacramentos fundamentais: o Batismo, simbolizado
no rito do Lava-pés, e a Eucaristia, instituída no contexto da “Ceia mística”.
Não obstante, também está presente já o anúncio da Paixão,
como veremos no ícone com o tema da traição de Judas. De fato, os quatro
mistérios celebrados nesta noite “entrecruzam-se
e constituem como que um único motivo de fundo na celebração da grande
misericórdia do Senhor para com suas criaturas” [7].
Para acessar nossa postagem sobre a história da Missa da Ceia do Senhor, clique aqui.
O ícone
Cumpre dizer, antes de tudo, que este ícone ocupa uma posição central na iconostase das igrejas bizantinas, situado logo acima das portas centrais (ou “portas reais”), na linha dos ícones das
grandes festas.
O ambiente: O
ambiente do ícone é, naturalmente, a casa onde Jesus celebrou a Ceia com seus
Apóstolos (Mt 26,17-19 e paralelos). Ao fundo estão retratados dois ou três
domos de construções, unidos por um véu vermelho.
Este véu, presente também no ícone da Anunciação, une o
Antigo e o Novo Testamentos, recordando a Ceia pascal judaica e a Eucaristia
unidas pelo mistério do amor de Deus, manifestado tanto no êxodo quanto na
Páscoa de Cristo (cf. Ex 2,24-25; Jo
3,16).
No centro do ambiente encontramos a mesa, na forma
semicircular, como uma “ferradura de cavalo”, a mesma estrutura adotada no ícone de Pentecostes, evento que se passa no mesmo ambiente, isto é, o
Cenáculo (lugar da Ceia).
Tanto em nosso ícone quanto no de Pentecostes os Doze
Apóstolos retratados desta forma representam o “pleroma”, isto é, a plenitude da Igreja nascente. A Igreja, de
certa forma, “nasce” tanto do lado aberto de Cristo na Cruz quanto do Cenáculo, lugar da instituição da Eucaristia, do encontro
com o Ressuscitado e do dom do Espírito Santo.
A mesa costuma ser revestida de uma toalha branca, a mesma
usada no ícone da Trindade, que recorda a veste branca do sacerdócio de Cristo,
a “túnica sem costura” usada pelo sumo-sacerdote no Antigo Testamento e por
Cristo em sua Paixão (Jo 19,23-14; Ap 1,13).
Porém, para salientar a novidade do culto inaugurado por
Cristo, a toalha da mesa costuma ser pontilhada de pequenas cruzes, em alusão à Páscoa
da “nova e eterna aliança”.
Cristo: Cristo
está no centro da mesa, representado com sua indumentária tradicional: a túnica
vermelha da Encarnação (cor do sangue e, portanto, da humanidade) sob o manto
azul da sua divindade (cor do céu). Destaque aqui para a estola dourada que
pende do ombro, símbolo de sua dignidade sacerdotal e régia.
Além disso, Cristo é o único personagem com o nimbo ou halo
da santidade em volta da cabeça (os Apóstolos não possuem o halo em
prefiguração do seu abandono do Mestre). Seu halo é cruciforme, isto é, com o
desenho de uma cruz, além de possuir a inscrição em grego “ὁ ὢν” (Aquele que é), em
alusão à epifania do Sinai (Ex 3,14).
Diferentemente, porém, de outros ícones do Senhor, Ele aqui
não costuma aparecer abençoando, mas sim com a mão direita levantada (às vezes
com apenas um dedo em riste), gesto de um orador que chama a atenção às suas
palavras. Neste caso, Cristo anuncia a traição de Judas: “Um de vós, que come
comigo, vai me trair” (Mt 26,20-25 e paralelos).
Os Apóstolos: Se
Jesus é retratado no momento em que anuncia a traição, os Apóstolos o são em
sua reação ante esta notícia: “entreolhavam-se, sem saber de quem falava” (Jo
13,22). Dez dos discípulos entreolham-se, espantados pela afirmação do Mestre.
Alguns, como Pedro (à direita de Jesus), têm inclusive as mãos levantadas, em um
gesto de espanto.
Apenas dois Apóstolos não parecem espantados com a afirmação
de Jesus, por motivos bem diversos: Judas e João.
Judas é o personagem mais
destoante nesta cena, aparecendo debruçado sobre a mesa, no esforço de alcançar
um cálice ou um prato. Esta é a representação gráfica do anúncio do Mestre: “É
aquele que comigo põe a mão no prato” (Mt 26,23).
Em algumas versões do ícone,
no prato que Judas tenta alcançar está uma fruta, em alusão ao pecado dos
primeiros pais, que estenderam a mão para tomar o fruto da árvore. Cristo
redimirá este gesto estendendo livremente as mãos na árvore da cruz, não para
tomar algo para si, mas para doar-se inteiramente.
Por fim, temos a figura de João, perdido na contemplação,
com a cabeça reclinada junto ao coração de Jesus (Jo 13,23-25). Ele tem a mão
estendida para o Senhor, como que recebendo d’Ele o dom da contemplação dos
divinos mistérios.
“Ó Filho de Deus, recebe-me neste dia na tua mística ceia: eu não te
darei um beijo como Judas, mas como o ladrão arrependido, eu te peço: Lembra-te
de mim, Senhor, quando entrares no teu Reino”
Oração antes da Comunhão na Liturgia Bizantina
[8]
Notas:
[1] PASSARELLI, Gaetano. O
ícone da última Ceia. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 44. Coleção: Iconostásio, 13.
[2] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 96.
[3] PASSARELLI, op.
cit., p. 11.
[4] Há um versículo para cada um dos quatro mistérios:
“À tarde, lava os pés
dos seus discípulos o Deus, cujos passos, outrora, na hora da brisa, faziam-se
ouvir no Éden.
A Ceia é dúplice, a
saber: a que representa a Páscoa da Lei e a que dá origem à nova Páscoa, que é
a do Corpo e do Sangue do Senhor.
Oração, temor, suor
como que de gotas de sangue que corre por seu rosto, Senhor! Pede uma e outra vez
que a morte se afaste d’Ele, referindo-se, assim, ao inimigo.
Que necessidade há,
sedutores do povo, de espadas e paus para quem está prestes a morrer pela
salvação do mundo?”.
Por fim, os quatro mistérios são lidos, junto, à luz da
misericórdia divina:
“Por tua inefável
misericórdia, tem piedade de nós, Cristo Senhor e Deus nosso” (ibid., pp. 11-12).
[5] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 44-48.
DONADEO, op. cit.,
pp. 96-97.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 785-802.
[6] PASSARELLI, op.
cit., p. 12.
[7] ibid., p. 14.
[8] DONADEO, op. cit.,
p. 97. Na Divina Liturgia da Quinta-feira Santa esta oração substitui o “Hino
dos Querubins” na Grande Entrada e a antífona da Comunhão.
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