domingo, 31 de maio de 2020

O ícone de Pentecostes

“Celebremos Pentecostes: a vinda do Espírito. Cumpriu-se a promessa, completa está a esperança!”­ - [1]

Glorifiquemos a uma só voz o Espírito Altíssimo! Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, vamos refletir sobre o ícone de Pentecostes, festa celebrada 50 dias após a Páscoa e que conclui este tempo especial de graça.

Origem e conteúdo da festa:

O domingo de Pentecostes (do grego pentecosté, cinquenta), assim como a Páscoa, é anterior ao Novo Testamento: ambas eram originalmente festas da colheita na tradição judaica, que depois passaram a celebrar a saída do Egito (Páscoa) e a entrega da Lei no monte Sinai (Pentecostes).

Esta celebração da aliança também é conhecida como Festa das Semanas, pois é comemorada sete semanas após a Páscoa. Este duplo número sete indica a plenitude, o coroamento dos cinquenta dias pascais. Como indica Adolf Adam, o Pentecostes não é uma celebração isolada do Espírito Santo, mas sim uma celebração autenticamente pascal.

Com efeito, no início da Igreja o Tempo Pascal era visto como um único dia de festa. Somente a partir do século IV o último dia deste ciclo passa a ser celebrado com mais solenidade, recordando a entrega da nova lei do Espírito (At 2,1-11).

No Rito Romano este dia foi acrescido de uma vigília à semelhança da Vigília Pascal, com várias leituras e a celebração dos sacramentos da Iniciação Cristã, ao passo que na tradição bizantina foi enriquecido por uma série de sete orações proferidas de joelhos no final da Divina Liturgia [2].

Ainda na tradição bizantina, assim como na festa da Ascensão, o Pentecostes adquire o status de uma “Liturgia cósmica”, na qual céu e terra concelebram, unidos pelo Espírito Santo. Dado seu caráter litúrgico, que comporta uma dimensão escatológica, esta festa é mais do que a recordação do acontecimento histórico da vinda do Espírito Santo sobre os Apóstolos: é uma ação de graças pela presença do Espírito do Ressuscitado na Igreja. Por isso o ícone da festa, como veremos, está cheio de anacronismos.

Além disso, destaca-se o tema da unidade, feito o paralelo com o episódio da torre de Babel (Gn 11,1-9): se nesta ocasião, pelo orgulho dos homens houve a separação das línguas, agora, pela humildade de Deus, manifesta no mistério pascal de Cristo, todos compreendem a única linguagem do amor. Assim sintetiza o kontákion da festa:

Quando o Altíssimo desceu à Terra para confundir as línguas, dispersou os povos; mas, quando distribuiu as línguas de fogo, chamou-nos todos à unidade. Glorifiquemos a uma só voz o Espírito Santíssimo” [3].

O ícone


O ambiente: O ambiente é o Cenáculo, a “sala superior” onde Jesus celebrou a última Ceia com seus Apóstolos (Lc 22,7-13), onde estes encontraram pela primeira vez o Ressuscitado (Jo 20,19-23), onde permaneceram em oração com Maria (At 1,12-14) e onde agora recebem o Espírito Santo.

Ao fundo do ícone encontramos duas casas ou torres, que nos indicam que estamos na “sala superior”, além de traçar o paralelo entre Antigo e Novo Testamento: as duas torres costumam ser unidas por um véu, o mesmo do ícone da Anunciação, indicando a presença do amor de Deus em ambas as alianças.

No centro, às vezes encontramos um semicírculo azul, imagem do céu, do qual saem doze raios de luz, símbolo do Espírito Santo que desce sobre os Apóstolos. Em outras versões os raios estão ausentes e o Espírito é representado pelas línguas de fogo sobre a cabeça de cada Apóstolo. Em outras versões, sobretudo a partir de influências ocidentais, o Espírito aparece ao centro na forma de uma pomba, como apareceu no Batismo do Senhor.

O ancião: Na parte inferior do ícone, em um semicírculo, encontramos um ancião coroado como um rei. Em alguns ícones está escrito seu nome: ho kosmos, o mundo. Não se trata, porém, de uma imagem da criação, mas sim da humanidade (donde a coroa, que indica a dignidade de filhos de Deus dos homens).

O ancião está representado sob um lugar escuro, símbolo das trevas da ignorância e da idolatria, que estão agora para ser iluminadas pela luz do Espírito Santo, espalhada na terra através do anúncio do Evangelho. O ancião segura justamente um lençol com doze rolos, indicando a pregação dos Doze Apóstolos.

Outra interpretação para o ancião é o Antigo Testamento: sua caracterização lembra muito a do rei Davi nos ícones orientais. Assim, ele “estaria simbolizando os ‘muitos profetas e justos que desejaram ver o que veem vossos olhos e não o viram, e ouvir o que ouvem vossos ouvidos, e não o ouviram’, como diz o próprio Senhor Jesus” (Mt 13,17; Lc 10,23-24) [4].

A associação do ancião com o Antigo Testamento é reforçada pelos doze rolos, que indicam o anúncio do Evangelho às doze tribos de Israel (Mt 19,28). Porém, tal anúncio não é restrito a um povo, mas se destina a todos, como canta o tropário da festa:

Bendito és tu, Cristo, nosso Deus, que tornaste sábios a simples pescadores, enviando-lhes o Espírito Santo e, por eles, colheste na rede o universo inteiro. Glória a ti, Amigo dos homens” [5].

Maria e o assento vazio: Em algumas versões deste ícone encontramos no centro do grupo dos Apóstolos a figura de Maria; em outras, porém, ela está ausente, deixando um assento vazio. Ambas as versões possuem o seu simbolismo.

A presença de Maria evoca seu papel de “centro moral” da Igreja após a Ascensão (no ícone desta festa ela ocupa também uma posição de destaque). Além disso, evoca sua presença orante junto aos Apóstolos à espera da vinda do Espírito Santo (At 1,14).

Se Maria está presente, ela é a única personagem sem a língua de fogo sobre a cabeça: “tendo ela concebido por obra do Espírito Santo, sua pessoa já estava transformada pelo próprio Espírito” [6]. Por isso muitos iconógrafos defendem sua ausência, dando espaço para o simbolismo do assento vazio.

O trono vazio enfatiza o alcance escatológico da festa: “é o trono vacante da segunda vinda (hetimasia), como sinal da contínua espera do Esposo” [7]. Tal trono evoca a ausência física do Mestre e a expectativa da Igreja-Esposa que, congregada no Espírito Santo, grita a cada Liturgia: “Amém! Vem, Senhor Jesus” (Ap 22,20).

Os Apóstolos: Por fim, encontramos neste ícone os Doze Apóstolos, que estão sentados em dois grupos de seis sobre um banco ou estrado em forma de semicírculo ou “ferradura”. Mais do que recordar que estamos no Cenáculo (pois no ícone da última Ceia encontramos a mesma formação), o semicírculo nos coloca aqui em um contexto litúrgico.

As igrejas da tradição siríaca possuíam nos primeiros séculos um estrado no seu centro, composto por um ambão (bema) e assentos para os sacerdotes, de onde se celebrava a Liturgia da Palavra. Tal formação quer salientar aqui, pois, a centralidade da Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo, que impulsiona os missionários de ontem e de hoje a anunciá-la “até os confins da terra” (At 1,8).

Desde o momento em que receberam o Espírito, os Apóstolos anunciaram a Palavra, a Boa Nova, o Evangelho, o qual vem expressar-se no estarem juntos como numa reunião ou sínodo. É esta a razão pela qual os ícones que representam os Concílios Ecumênicos reproduzem o mesmo esquema iconográfico desta festa” [8]: a Igreja é o perene Pentecostes!

Dentre os Apóstolos vemos alguns anacronismos que nos recordam que este ícone transcende a história: presidindo os dois grupos de Apóstolos, ladeando a Virgem Maria ou o trono vazio, estão, como no ícone da Ascensão, Pedro e Paulo.

Além de Paulo, podemos encontrar aqui ainda outros dois “intrusos”: os evangelistas Marcos e Lucas. Ao lado de Pedro estão Mateus e Marcos e ao lado de Paulo, João e Lucas. Estes seis personagens são os únicos que seguram os rolos das Escrituras nas mãos, indicando a autoridade de Pedro e Paulo e os quatro Evangelhos, reforçando assim a centralidade da Palavra de Deus neste ícone, inspirada pelo Espírito Santo.

A ele nos dirigimos, concluindo esta análise, com as palavras que abrem praticamente todos os ofícios litúrgicos bizantinos:

Rei celeste, Consolador, Espírito da verdade, presente em toda a parte e ocupando todo lugar; tesouro de bens e dispensador da vida, vem e habita em nós; purifica-nos de toda a impureza e salva as nossas almas, tu que és bom” [9]

[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone de Pentecostes. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 43. Coleção: Iconostásio, 17.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 65-66.
DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 75-79.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 856-862.
[3] DONADEO, op. cit., p. 76.
[4] PASSARELLI, op. cit., p. 33.
[5] DONADEO, op. cit., p. 76.
[6] PASSARELLI, op. cit., p. 24.
[7] ibid., p. 35.
[8] ibid., p. 31.
[9] DONADEO, op. cit., p. 76.

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