O capítulo 28 do Livro
do Êxodo descreve, dentre as insígnias dos sacerdotes da primeira aliança, o
efod (Ex 28,6-14) e o peitoral ou hoshen (Ex 28,15-30). O primeiro era uma
espécie de colete de linho bordado com duas pedras de ônix nos ombros com o
nome das tribos de Israel, enquanto o segundo era uma placa que o sacerdote
usava sobre o peito, com doze pedras simbolizando as tribos de Israel (sobre o simbolismo destas doze pedras em um Evangeliário do Vaticano, clique aqui).
Na Idade Média surgiu o costume de endossar uma insígnia
que, recordando as do sumo sacerdote do Antigo Testamento, fosse um equivalente
do pálio para os Bispos que não tinham direito a ele (desde os séculos VII-VIII
o pálio era restrito ao Papa e aos Arcebispos Metropolitanos). Trata-se do racional ou superhumeral.
Racional de Cracóvia na Sacristia da Catedral de Wawel |
A palavra racional deriva da usada por São Jerônimo na
Vulgata para traduzir o termo hoshen:
rationale, enquanto superhumeral
(sobre os ombros) é termo que traduz efod.
Segundo a Historia de
la Liturgia de Mario Righetti, as primeiras menções do racional são do
século X. Este se popularizou nas dioceses pertencentes ao Sacro Império Romano-Germânico ou em territórios vizinhos: Alemanha, França, Bélgica,
República Checa, Polônia e norte da Itália.
Poucos exemplares do racional sobreviveram. A maior parte
das evidências deriva de estátuas dos Bispos, uma vez que esta insígnia cairia
em desuso na maioria dos lugares a partir dos séculos XIII e XIV.
Estátua de São Mansuy, Bispo de Toul (França) |
Dessas estátuas podemos aferir seu formato tradicional: uma
tela retangular de tecido com franjas nas quatro pontas e uma abertura central
para a cabeça, que o Bispo endossava sobre a casula para a celebração das
Missas mais solenes.
Estátua de São Willibald, Bispo de Eichstätt (Alemanha) |
No racional geralmente estavam inscritas virtudes que o
Bispo deveria possuir para “governar” bem o seu povo. Segundo Righetti, o
racional é “símbolo da ciência e da verdade”.
Atualmente, o uso do racional é preservado em quatro
dioceses: Eichstätt e Paderborn na Alemanha, Nancy-Toul na França e Cracóvia na Polônia. Paderborn e
Cracóvia foram posteriormente elevadas a Arquidioceses: portanto, seus Bispos têm
direito tanto ao racional quanto ao pálio.
Diocese de Eichstätt
A Diocese de Eichstätt foi criada em meados do século VIII. Seu primeiro Bispo, São Wilibaldo (741-787), costuma ser representado com o racional, ainda que anacrônico (cf. a imagem acima).
O racional de Eichstätt é
conforme ao modelo tradicional, de corte retangular, com presilhas redondas nos
ombros (em referência às pedras do efod).
Traz inscritas em latim as sete virtudes fundamentais:
- as três virtudes
teologais no centro: Fides - Spes - Caritas (Fé - Esperança - Caridade);
- as quatro virtudes
cardeais nas franjas: Iustitia - Fortitudo - Prudentia - Temperantia
(Justiça - Fortaleza - Prudência - Temperança).
Racional de Eichstätt |
Em fotos divulgadas pela
Diocese conseguimos identificar quatro modelos de racional: três conforme a
descrição acima e um quarto com cenas do Evangelho e os símbolos dos quatro
Evangelistas nas presilhas dos ombros.
O Bispo de Eichstätt desde 2006 é Dom Gregor Maria Hanke, O.S.B.
Arquidiocese de Paderborn
A Diocese de Paderborn foi criada em 799 e elevada a Arquidiocese em 1930. O seu racional é do mesmo formato do anterior, porém com inscrições distintas: na parte anterior lemos Doctrina e Veritas (Doutrina e Verdade). Infelizmente não encontramos nenhuma imagem ou informação sobre as inscrições da parte posterior.
Racional de Paderborn |
O Arcebispo de Paderborn de 2003 a 2022 foi Dom Hans-Josef Becker, retratado nas imagens acima. Após um período de sede vacante, no dia 09 de dezembro de 2023 foi sucedido por Dom Udo Markus Bentz.
Diocese de Nancy-Toul
A Diocese de Toul foi criada no século IV, sendo suprimida em 1790, durante a Revolução Francesa. Em 1824, foi restaurada e unida à Diocese de Nancy (criada em 1777). O Bispo de Nancy-Toul, portanto, herdou o uso do racional do Bispo de Toul.
Diferentemente do modelo alemão, o racional de Toul tem um
formato redondo. Na estátua de São Mansuy (Mansueto), seu primeiro Bispo, este
é anacronicamente retratado com o racional, no qual estão inscritas as três
Pessoas da Trindade: Pater - Filius - Spirictus Sanctus (Pai - Filho - Espírito Santo) (cf. a imagem acima).
O modelo usado atualmente, porém, parece não conter nenhuma inscrição, sendo dourado e ornado com pedras
preciosas.
Racional de Nancy-Toul |
O Bispo de Nancy-Toul de 1999 a 2003 foi Dom Jean-Louis Papin, retratado nas imagens acima. No dia 06 de abril de 2023 foi sucedido por Dom Pierre-Yves Michel.
Arquidiocese de
Cracóvia
A Diocese de Cracóvia foi criada pouco antes do ano 1000, sendo elevada a Arquidiocese em 1925.
O seu racional, cujo modelo difere dos demais, foi entregue
pela rainha da Polônia, Santa Edwiges (Święta Jadwiga) [1] ao então Bispo de
Cracóvia, Jan Radlica, em 1384. Segundo a tradição, a própria rainha o teria
bordado.
O racional da rainha Jadwiga é formado por duas fitas que se
cruzam no peito e nas costas. Na intersecção das fitas há um medalhão com a
imagem do Cordeiro pascal, no centro de quatro círculos concêntricos.
Racional de Cracóvia (parte anterior) |
Nas partes inferiores das fitas é possível ler a inscrição: Regina Hedvigis, filia Regis Lodovici,
ou seja, “Rainha Edwiges, filha do Rei Luís (ou Ludovico)” [2], além dos
brasões da Polônia e da Casa de Anjou, à qual pertencia a rainha.
Nas partes superiores das fitas temos, como de costume, a
inscrição de virtudes: Doctrina - Simplicitas - Veritas - Prudentia (Doutrina
- Simplicidade - Verdade - Prudência).
Racioanl de Cracóvia (parte posterior) |
Devido a ser uma peça histórica e o único racional de
Cracóvia, só é usado dentro da Catedral de Wawel e apenas nas celebrações
litúrgicas mais solenes.
O atual Arcebispo de Cracóvia é Dom Marek Jędraszewski, que
foi nomeado em 2016 e tomou posse, recebendo o racional, em janeiro de 2017.
Por fim, vale lembrar que o fecho do pluvial, sobretudo
quando na forma de um grande broche, também costuma ser chamado de racional (ou, às
vezes, formal). Seu uso, porém, costuma ser restrito aos Bispos. Quando o fecho tem a forma de um gancho simples com corrente é
chamado de alamar.
Notas:
[1] Não confundir com Santa Edwiges da Silésia (1174-1243),
que foi uma duquesa e depois religiosa, canonizada em 1267 e celebrada a 16 de
outubro. A rainha Edwiges (1373/1374-1399), por sua vez, foi a primeira mulher
a governar a Polônia, canonizada em 1997 e celebrada a 17 de julho.
[2] Ludwik I, rei da Hungria (1342-1382) e rei da Polônia (1370-1382).
Fontes:
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, pp. 575-576.
Postagem publicada em 27 de agosto de 2020. Última atualização: 09 de dezembro de 2023 (Nomeação do novo Arcebispo de Paderborn).
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