segunda-feira, 6 de abril de 2020

As Vésperas batismais no Domingo de Páscoa

Ao referir-se ao Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor, a Introdução Geral da Liturgia das Horas (n. 213) apresenta-nos um interessante rito:

Convém que as Vésperas sejam celebradas de modo particularmente solene, para festejar a tarde deste dia tão sagrado e comemorar as aparições do Senhor a seus discípulos. Conserve-se com o maior empenho, onde estiver vigorando, a tradição de celebrar no dia da Páscoa as Vésperas batismais, em que se caminha em procissão até a fonte batismal, ao canto de salmos” [1].

Embora o documento propõe as Vésperas batismais como tradição a ser conservada, não nos apresenta o seu rito próprio, indicando apenas a procissão à pia batismal ao cântico de salmos. Para conhecer melhor este sugestivo rito, é preciso recorrer à sua história, particularmente à sua celebração na Basílica do Latrão, a Catedral de Roma.

Batistério da Basílica do Latrão
Nesta postagem utilizamos de três fontes para falar das Vésperas batismais: a célebre “Historia de la Liturgia” de Mario Righetti, o “Liber sacramentorum” do Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster, e o artigo “Vésperas Pascais com procissão à fonte batismal”, de autoria do Padre Danilo César dos Santos Lima [2].

Como estas três fontes possuem pequenas divergências entre si, decorrentes das variações do rito ao longo da história (ora celebrado pelo Papa e a Cúria Romana, ora pelos Cônegos da Basílica do Latrão), apresentaremos aqui uma visão sintética dos principais elementos da sua celebração.

Primeiramente é preciso buscar as origens das Vésperas pascais com procissão ao batistério na Liturgia da Jerusalém do século IV. A peregrina Etéria, em seu Itinerarium, testemunha diversas procissões dentro da própria Basílica do Santo Sepulcro, entre as capelas sobre o Calvário (Martyrium) e as capelas junto ao sepulcro (Anástasis) ou entre as igrejas da cidade. Sobre a tarde da Páscoa ela atesta:

No domingo de Páscoa, após a despedida do lucernário, isto é, da Anástasis, todo o povo conduz o bispo com hinos a Sião. Ao chegar-se alim dizem-se hinos apropriados ao dia e ao lugar, faz-se uma oração e lê-se o passo do Evangelho em que naquele mesmo dia o Senhor, no mesmo lugar em que está agora aquela igreja do Sião, com as portas fechadas, entrou no meio dos discípulos (...). Depois desta leitura, faz-se de novo uma oração, abençoam-se os catecúmenos e os fiéis, e cada qual regressa à sua casa, já tarde, cerca da segunda hora da noite” [3].

Além desta procissão ao Cenáculo na tarde do domingo, Etéria testemunha procissões ao longo de toda a oitava pascal, das quais tomam parte, além dos já citados catecúmenos, os neófitos, isto é, os que foram batizados na Vigília Pascal. A presença dos neófitos será importante também nas Vésperas celebradas em Roma nos séculos seguintes.

Os primeiros testemunhos das Vésperas com procissão ao batistério em Roma são do século VII, tendo este costume perdurado até o final do século XIII. Do século XII temos um registro bastante completo da celebração no Ordo Officiorum Ecclesiae Lateranensis (Ritual dos ofícios da igreja do Latrão), elaborado para os cônegos da Basílica.

A celebração era antecipada para a hora nona (15h) e começava em uma capela lateral, junto à cruz. Ali se entoava o Kyrie eleison e a procissão partia em direção ao altar. Se entoavam então os três salmos das Vésperas: 109, 110 e 111. Entre o segundo e o terceiro salmos, as crianças entoavam alguns versículos do Salmo 92. Esta primeira parte da celebração concluía-se com o Magnificat e uma oração:

Concede, Deus onipotente, a nós que celebramos as festas do Domingo da Ressurreição, que pela invocação do teu Espírito, ressurjamos da morte da alma. Por Cristo, nosso Senhor. Amém” [4].

Após esta oração tinha início a procissão até o batistério, da qual participavam os neófitos com suas vestes brancas. Acompanhava esta procissão o canto da antífona inspirada em Sf 3,8 e Ez 36,25: “No dia da minha ressurreição, diz o Senhor, aleluia, congregarei os povos e reunirei as nações, e derramarei sobre vós uma água pura, aleluia” [5].

Junto à pia batismal entoava-se o Salmo 112 e alguns versos do Salmo 92 em grego, recordando as origens orientais deste rito. Esta estação concluía-se com um segundo Magnificat e uma oração:

Concedei, Deus onipotente, a nós que celebramos as festas do Domingo da Ressurreição, que mereçamos recompor a alegria que nos foi roubada. Pelo mesmo Cristo, nosso Senhor. Amém” [6].

Imagem histórica do Batistério do Latrão

Em algumas versões do rito, esta segunda estação junto ao batistério era estendida com um momento de oração na contígua capela de São João das Vestes, onde os neófitos recebiam a veste branca após o Batismo. Aqui se entoava o Salmo 94 e se recitava a oração, como acima no batistério.

A terceira e última estação era na capela de Santo André ad crucem (junto à Cruz), onde os neófitos haviam sido ungidos com o crisma. A procissão caminhava até esta capela ao canto da célebre antífona pascal Vidi aquam (Ez 47,1-2.9): “Vi água sair do templo pelo lado direito. Aleluia. E todos a que esta água chegou, foram salvos e diziam: Aleluia, aleluia” [7].

Ao chegar à capela entoava-se o Salmo 113, mais uma vez o Magnificat e a celebração se concluía com a oração final:

Concedei, Deus onipotente, que conhecendo a graça do Domingo da Ressurreição, pelo amor do mesmo Espírito ressurjamos da morte da alma. Por Cristo, nosso Senhor. Amém” [8].

Como afirmamos anteriormente, a celebração sofreu variações ao longo dos séculos, considerando também as mudanças arquitetônicas da Basílica, sobretudo as realizadas após um terremoto em 896. Em algum momento estas procissões foram estendidas durante toda a Oitava Pascal, à semelhança da Jerusalém do século IV, ou mesmo para outras celebrações do Ano Litúrgico.

De toda forma, fica claro o sentido cristológico da celebração, dado sobretudo pelos salmos e antífonas, e seu caráter batismal, refletido em seus sujeitos (os neófitos e os catecúmenos) e espaços (o batistério e as capelas a ele ligadas).

À luz do n. 213 da Introdução da Liturgia das Horas, com o qual começamos esta postagem, que conhecendo sua história este rito possa ser conservado onde já é realizado e mesmo introduzido onde até então não era conhecido, devidamente adaptado a cada realidade. A partir deste rito, podemos refletir que lugar o Mistério Pascal de Cristo eo Batismo ocupam em nossas comunidades.

Concluímos com a célebre inscrição sobre o batistério da Basílica do Latrão:

Aqui nasce para o céu, de uma semente pura, um povo sagrado, que o Espírito gera fecundando as águas.
A Mãe Igreja concebe por inspiração de Deus e dá à luz pela água, os que nasceram de semente virginal.
Esperai o Reino dos Céus, vós que renascestes nesta fonte: a vida feliz não é para aqueles nascidos uma só vez.
Esta é a fonte da vida, que purifica o mundo inteiro, brotando das chagas de Cristo.
Mergulha na água santa, ó pecador, e serás purificado: a água recebe-te velho e devolve-te renovado.
Se desejas ser puro, purifica-te neste banho, quer te aflija o pecado dos primeiros pais, quer o próprio pecado.
Para os que renasceram não existe discriminação nenhuma: são uma só coisa, graças a uma só fonte, um só Espírito, uma só fé.
A ninguém atemorize o número ou a natureza dos seus pecados: quem nasce desta água será santo” [9].

"Sicut cervus ad fontes" (Sl 41,2)

[1] Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas. Comentários de José Aldazábal. São Paulo: Paulinas, 2010, pp. 100-101. A mesma orientação aparece no n. 371 do Cerimonial dos Bispos.
[2] RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 840-841;
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. IV: La Sacra Liturgia durante il ciclo Pasquale. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 20-21;
LIMA, Danilo César dos Santos. Vésperas Pascais com procissão à fonte batismal: Celebrar a memória das aparições do Ressuscitado e a dignidade do Batismo. in: Perspectiva teológica, ano 43, n. 121, Set/Dez 2011, p. 389-409.
[3] ETÉRIA, Peregrinação, in: Antologia Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do primeiro milénio, Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 459.
[4] LIMA, op. cit., p. 398.
[5] ibid.
[6] ibid., p. 399.
[7] ibid.
[8] ibid.
[9] ibid., p. 407.

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