Ao referir-se ao Domingo de Páscoa da Ressurreição do
Senhor, a Introdução Geral da Liturgia das Horas (n. 213) apresenta-nos um
interessante rito:
“Convém que as
Vésperas sejam celebradas de modo particularmente solene, para festejar a tarde
deste dia tão sagrado e comemorar as aparições do Senhor a seus discípulos.
Conserve-se com o maior empenho, onde estiver vigorando, a tradição de celebrar
no dia da Páscoa as Vésperas batismais,
em que se caminha em procissão até a fonte batismal, ao canto de salmos”
[1].
Embora o documento propõe as Vésperas batismais como
tradição a ser conservada, não nos apresenta o seu rito próprio, indicando
apenas a procissão à pia batismal ao cântico de salmos. Para conhecer melhor este
sugestivo rito, é preciso recorrer à sua história, particularmente à sua
celebração na Basílica do Latrão, a Catedral de Roma.
Batistério da Basílica do Latrão |
Nesta postagem utilizamos de três fontes para falar
das Vésperas batismais: a célebre “Historia
de la Liturgia” de Mario Righetti, o “Liber
sacramentorum” do Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster, e o artigo “Vésperas Pascais com procissão à fonte
batismal”, de autoria do Padre Danilo César dos Santos Lima [2].
Como estas três fontes possuem pequenas divergências
entre si, decorrentes das variações do rito ao longo da história (ora celebrado
pelo Papa e a Cúria Romana, ora pelos Cônegos da Basílica do Latrão), apresentaremos
aqui uma visão sintética dos principais elementos da sua celebração.
Primeiramente é preciso buscar as origens das Vésperas
pascais com procissão ao batistério na Liturgia da Jerusalém do século IV. A
peregrina Etéria, em seu Itinerarium,
testemunha diversas procissões dentro da própria Basílica do Santo Sepulcro,
entre as capelas sobre o Calvário (Martyrium)
e as capelas junto ao sepulcro (Anástasis)
ou entre as igrejas da cidade. Sobre a tarde da Páscoa ela atesta:
“No domingo de
Páscoa, após a despedida do lucernário, isto é, da Anástasis, todo o povo
conduz o bispo com hinos a Sião. Ao chegar-se alim dizem-se hinos apropriados
ao dia e ao lugar, faz-se uma oração e lê-se o passo do Evangelho em que
naquele mesmo dia o Senhor, no mesmo lugar em que está agora aquela igreja do
Sião, com as portas fechadas, entrou no meio dos discípulos (...). Depois desta
leitura, faz-se de novo uma oração, abençoam-se os catecúmenos e os fiéis, e
cada qual regressa à sua casa, já tarde, cerca da segunda hora da noite”
[3].
Além desta procissão ao Cenáculo na tarde do domingo,
Etéria testemunha procissões ao longo de toda a oitava pascal, das quais tomam
parte, além dos já citados catecúmenos, os neófitos, isto é, os que foram
batizados na Vigília Pascal. A presença dos neófitos será importante também nas
Vésperas celebradas em Roma nos séculos seguintes.
Os primeiros testemunhos das Vésperas com procissão ao
batistério em Roma são do século VII, tendo este costume perdurado até o final
do século XIII. Do século XII temos um registro bastante completo da celebração
no Ordo Officiorum Ecclesiae Lateranensis
(Ritual dos ofícios da igreja do Latrão), elaborado para os cônegos da
Basílica.
A celebração era antecipada para a hora nona (15h) e
começava em uma capela lateral, junto à cruz. Ali se entoava o Kyrie eleison e a procissão partia em
direção ao altar. Se entoavam então os três salmos das Vésperas: 109, 110 e
111. Entre o segundo e o terceiro salmos, as crianças entoavam alguns
versículos do Salmo 92. Esta primeira parte da celebração concluía-se com o
Magnificat e uma oração:
“Concede, Deus
onipotente, a nós que celebramos as festas do Domingo da Ressurreição, que pela
invocação do teu Espírito, ressurjamos da morte da alma. Por Cristo, nosso
Senhor. Amém” [4].
Após esta oração tinha início a procissão até o
batistério, da qual participavam os neófitos com suas vestes brancas.
Acompanhava esta procissão o canto da antífona inspirada em Sf 3,8 e Ez 36,25:
“No dia da minha ressurreição, diz o
Senhor, aleluia, congregarei os povos e reunirei as nações, e derramarei sobre
vós uma água pura, aleluia” [5].
Junto à pia batismal entoava-se o Salmo 112 e alguns
versos do Salmo 92 em grego, recordando as origens orientais deste rito. Esta
estação concluía-se com um segundo Magnificat
e uma oração:
“Concedei, Deus
onipotente, a nós que celebramos as festas do Domingo da Ressurreição, que
mereçamos recompor a alegria que nos foi roubada. Pelo mesmo Cristo, nosso
Senhor. Amém” [6].
Imagem histórica do Batistério do Latrão |
Em algumas versões do rito, esta segunda estação junto
ao batistério era estendida com um momento de oração na contígua capela de São
João das Vestes, onde os neófitos recebiam a veste branca após o Batismo. Aqui se
entoava o Salmo 94 e se recitava a oração, como acima no batistério.
A terceira e última estação era na capela de Santo
André ad crucem (junto à Cruz), onde
os neófitos haviam sido ungidos com o crisma. A procissão caminhava até esta
capela ao canto da célebre antífona pascal Vidi
aquam (Ez 47,1-2.9): “Vi água sair do
templo pelo lado direito. Aleluia. E todos a que esta água chegou, foram salvos
e diziam: Aleluia, aleluia” [7].
Ao chegar à capela entoava-se o Salmo 113, mais uma
vez o Magnificat e a celebração se
concluía com a oração final:
“Concedei, Deus
onipotente, que conhecendo a graça do Domingo da Ressurreição, pelo amor do
mesmo Espírito ressurjamos da morte da alma. Por Cristo, nosso Senhor. Amém”
[8].
Como afirmamos anteriormente, a celebração sofreu
variações ao longo dos séculos, considerando também as mudanças arquitetônicas
da Basílica, sobretudo as realizadas após um terremoto em 896. Em algum momento
estas procissões foram estendidas durante toda a Oitava Pascal, à semelhança da
Jerusalém do século IV, ou mesmo para outras celebrações do Ano Litúrgico.
De toda forma, fica claro o sentido cristológico da
celebração, dado sobretudo pelos salmos e antífonas, e seu caráter batismal,
refletido em seus sujeitos (os neófitos e os catecúmenos) e espaços (o
batistério e as capelas a ele ligadas).
À luz do n. 213 da Introdução da Liturgia das Horas,
com o qual começamos esta postagem, que conhecendo sua história este rito possa
ser conservado onde já é realizado e mesmo introduzido onde até então não era
conhecido, devidamente adaptado a cada realidade. A partir deste rito, podemos
refletir que lugar o Mistério Pascal de Cristo eo Batismo ocupam em nossas
comunidades.
Concluímos com a célebre inscrição sobre o batistério
da Basílica do Latrão:
“Aqui nasce para o céu, de uma semente pura, um povo
sagrado, que o Espírito gera fecundando as águas.
A Mãe Igreja concebe por inspiração de Deus e dá à luz
pela água, os que nasceram de semente virginal.
Esperai o Reino dos Céus, vós que renascestes nesta
fonte: a vida feliz não é para aqueles nascidos uma só vez.
Esta é a fonte da vida, que purifica o mundo inteiro,
brotando das chagas de Cristo.
Mergulha na água santa, ó pecador, e serás purificado:
a água recebe-te velho e devolve-te renovado.
Se desejas ser puro, purifica-te neste banho, quer te
aflija o pecado dos primeiros pais, quer o próprio pecado.
Para os que renasceram não existe discriminação
nenhuma: são uma só coisa, graças a uma só fonte, um só Espírito, uma só fé.
A ninguém atemorize o número ou a natureza dos seus
pecados: quem nasce desta água será santo” [9].
"Sicut cervus ad fontes" (Sl 41,2) |
[1] Instrução
Geral sobre a Liturgia das Horas. Comentários de José Aldazábal. São Paulo:
Paulinas, 2010, pp. 100-101. A mesma orientação aparece no n. 371 do Cerimonial
dos Bispos.
[2] RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico;
El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 840-841;
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. IV: La Sacra
Liturgia durante il ciclo Pasquale. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 20-21;
LIMA, Danilo César dos Santos. Vésperas Pascais com procissão à fonte batismal: Celebrar a memória das
aparições do Ressuscitado e a dignidade do Batismo. in: Perspectiva
teológica, ano 43, n. 121, Set/Dez 2011, p. 389-409.
[3] ETÉRIA, Peregrinação,
in: Antologia Litúrgica: Textos litúrgicos, patrísticos e canónicos do
primeiro milénio, Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 459.
[4] LIMA, op.
cit., p. 398.
[5] ibid.
[6] ibid.,
p. 399.
[7] ibid.
[8] ibid.
[9] ibid.,
p. 407.
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