Prosseguindo, na sequência da nossa publicação sobre as celebrações dos Santos Doutores da Igreja, com as meditações do Padre Raniero Cantalamessa sobre quatro Doutores do Oriente, proferidas durante a Quaresma do ano de 2012, tomamos São Basílio Magno como guia para meditarmos sobre a fé no Espírito Santo:
Pe. Raniero
Cantalamessa, OFMCap
III pregação de Quaresma
23 de março de 2012
São Basílio e a fé no Espírito Santo
1.
A fé termina nas coisas
O filósofo Edmund Husserl resumiu o programa da sua
fenomenologia no lema: “Zu den Sachen
selbst!”, “dirigir-se para as mesmas coisas”, para as coisas como elas
realmente são na realidade, antes da conceituação e formulação delas. Outro
filósofo, vindo depois dele, Sartre, diz que “as palavras e, com elas, o
significado das coisas e os modos do seu uso” são apenas “os sinais sutis de
reconhecimento que os homens têm traçado na superfície deles”: é necessário
superá-los para ter a súbita revelação, que tira o fôlego, da “existência” das
coisas [1].
Santo Tomás de Aquino tinha formulado muito antes um
princípio análogo em referência às coisas ou aos objetos da fé: “Fides non terminatur ad enunciabile, sed ad
rem”: “a fé não termina nos enunciados, mas na realidade” [2]. Os Padres da
Igreja são modelos insuperáveis desta fé que não para nas fórmulas, mas vai
até a realidade. Tendo passado esta “era de ouro” dos grandes Padres e Doutores,
vemos quase que imediatamente o que um estudioso do pensamento patrístico define
“o triunfo do formalismo” [3]. Conceitos e termos, como “substância”, “pessoa”,
“hipóstase”, são analisados e estudados por si mesmos, sem a constante
referência à realidade que com eles os criadores do dogma tinham tentado
expressar.
Atanásio é talvez o caso mais exemplar de uma fé que está
mais preocupada com o conteúdo do que com o seu enunciado. Por algum tempo,
depois do Concílio de Niceia, ele parece quase ignorar o termo homousios, consubstancial, embora
defendendo com a tenacidade que vimos na última vez o seu conteúdo, ou seja, a
plena divindade do Filho e a sua igualdade com o Pai. Também está pronto para
acolher termos equivalentes para ele, desde que ficasse claro que se pretendia
manter firme a fé de Niceia. Só mais tarde, quando ele percebeu que aquele
termo era o único que não deixava brechas para as heresias, fez cada vez mais
uso dele.
Destacamos isto porque conhecemos os danos que causados à
comunhão eclesial o fato de dar mais importância ao acordo dos termos do que ao
conteúdo da fé. Nos últimos anos tem sido possível restaurar a comunhão com
algumas igrejas orientais, as assim chamadas monofisitas, tendo reconhecido que
o contraste deles com a fé de Calcedônia estava no significado diferente
atribuído aos termos ousia e hipóstase, e não na substância da
doutrina. Também o acordo entre a Igreja Católica e a Federação Mundial das
Igrejas Luteranas sobre o tema da justificação pela fé, assinado em 1998,
mostrou que o conflito secular sobre este ponto estava mais nos termos do que
na realidade. As fórmulas, uma vez inventadas, tendem a fossilizar-se,
tornando-se bandeiras e sinais partidários, ao invés de expressões de fé
vivida.
2.
São Basílio e a divindade do Espírito Santo
Hoje “subimos nos ombros” de outro “gigante”, São Basílio Magno
(329-379), para analisar com ele outra realidade da nossa fé:, o Espírito
Santo. Veremos em breve como também ele é um modelo da fé que não para nas
fórmulas, mas vai até a realidade.
São Basílio Magno |
Sobre a divindade do Espírito Santo, Basílio não fala nem a
primeira e nem a última palavra, ou seja, não é aquele que abre o debate e nem
sequer aquele que o conclui. Quem abriu a discussão sobre o estatuto ontológico
do Espírito foi Santo Atanásio. Até ele, a doutrina sobre o Paráclito
permaneceu na sombra, e entendemos o motivo: não era possível definir a posição
do Espírito Santo na divindade antes de ter definido aquela do Filho. Somente
se limitava a dizer no Símbolo da fé: “e creio no Espírito Santo”, sem outros
acréscimos.
Atanásio, nas Cartas a
Serapião, inicia o debate que levará à definição da divindade do Espírito
Santo no Concílio de Constantinopla em 381. Ensina que o Espírito é plenamente
divino, consubstancial com o Pai e com o Filho, que não pertence ao mundo das
criaturas, mas ao do Criador, e a prova, também aqui, é que o seu contato nos
santifica, nos diviniza, coisa que não poderia fazer se não fosse ele mesmo
Deus.
Eu disse que Basílio não falou nem sequer a última palavra.
Ele se abstém de aplicar ao Paráclito o título de “Deus” e aquele de
“consubstancial”. Afirma claramente a fé na plena divindade do Espírito usando
expressões equivalentes, como a igualdade com o Pai e o Filho na adoração (a isotimia), a sua homogeneidade e não
heterogeneidade, no que diz respeito a eles. São os termos nos quais a
divindade do Espírito Santo foi definida no Concílio Ecumênico de
Constantinopla do ano 381 e que constroem o artigo de fé sobre o Espírito Santo
que professamos ainda hoje no Credo.
Essa atitude prudencial de Basílio, dirigida a não
distanciar ainda mais o partido adversário dos macedonianos, provocou-lhe a
crítica de Gregório Nazianzeno, que coloca o amigo entre aqueles que tiveram
bastante coragem para pensar que o Espírito Santo seja Deus, mas não o bastante
para proclamá-lo tal explicitamente. Quebrando todo atraso, ele escreve: “O
Espírito é portanto Deus? Certamente! É consubstancial? Sim, se é verdade que é
Deus” [4].
Se, portanto, Basílio não fala sobre a teologia do Espírito
Santo nem a primeira nem a última palavra, por que escolher justamente ele como
nosso mestre de fé no Paráclito? É que Basílio, como já Atanásio, está mais
preocupado pela “coisa” do que pela sua formulação, mais pela plena divindade
do Espírito do que pelos termos com os quais expressar essa fé. O que mais lhe
interessa, para colocá-lo nos termos de Tomás de Aquino, é a coisa e não a sua
enunciação. Ele nos transporta no coração da pessoa e da ação do Espírito
Santo.
Basílio tem uma pneumatologia concreta, vivida, não
escolástica, mas “funcional” no sentido mais positivo do termo, e é aquele que
a faz particularmente atual e útil para nós hoje. Por causa da conhecida
questão do Filioque, a pneumatologia
acabou restringindo-se nos séculos quase que exclusivamente ao problema do modo
da processão do Espírito Santo: se somente do Pai como dizem os orientais, ou
também do Filho, como professam os latinos. Algo da pneumatologia concreta dos
Padres foi passada nos tratados sobre os “Sete Dons do Espírito Santo”, mas
limitado ao âmbito da santificação pessoal e à vida contemplativa.
O Concílio Vaticano II iniciou uma renovação neste campo,
por exemplo, quando trouxe de volta os carismas para a hagiografia, ou seja, passou
da vida dos santos para a eclesiologia, ou seja, para a vida da Igreja, falando
deles na Lumen Gentium [5]. Mas foi
apenas um começo; ainda há muito a ser feito para destacar a ação do Espírito
Santo em toda a vivência do Povo de Deus. Na ocasião do XVI centenário do
Concílio Ecumênico de Constantinopla de 381, o Beato João Paulo II escreveu uma
Carta Apostólica na qual entre outras coisas dizia: “Todo o trabalho de
renovação da Igreja que o Concílio Vaticano II tão providencialmente propôs e
começou... não pode ser realizado a não ser no Espírito Santo, isto é, com a ajuda
da sua luz e da sua força” [6]. Basílio, veremos, será nosso guia neste
caminho.
3.
O Espírito Santo na história da salvação e na Igreja
É interessante conhecer a origem do seu tratado sobre o
Espírito Santo. Curiosamente está ligada à oração do Gloria Patri. Durante uma Liturgia, Basílio tinha pronunciado a
doxologia às vezes na forma: “Glória ao Pai, por meio do Filho, no Espírito
Santo”, às vezes sob a forma: “Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo”.
Esta segunda forma esclarecia mais que a primeira a igualdade das três pessoas,
coordenando-as, ao invés de subordiná-las, entre si. Na atmosfera superaquecida
das discussões sobre a natureza do Espírito Santo, a coisa provocou protestos e
Basílio escreveu a sua obra para justificar as suas ações; na prática, para
defender contra os hereges macedonianos a plena divindade do Espírito Santo.
Mas vamos direto ao ponto que faz a doutrina de Basílio
especialmente atual: a sua capacidade de destacar a ação do Espírito em cada
momento da história da salvação e em cada setor da vida da Igreja. Começa da
obra do Espírito na criação:
“Na criação dos seres a causa primeira de tudo o que existe
é o Pai, a causa instrumental o Filho, a causa aperfeiçoadora é o Espírito. É
pela vontade do Pai que os espíritos criados subsistem; é pela força operativa
do Filho que são conduzidos ao ser e pela presença do Espírito que chegam à
perfeição... Se tentas tirar o Espírito da criação, todas as coisas se
misturarão e a vida delas aparece sem lei, sem ordem, sem qualquer
determinação” [7].
Santo Ambrósio retomará de Basílio este pensamento tirando
dele uma conclusão sugestiva. Referindo-se aos primeiros dois versos do Gênesis (“a terra estava deserta e sem
forma e as trevas cobriam o abismo”), ele observa:
“Quando o Espírito começou a pairar sobre isso, o criado não
tinha ainda nenhuma beleza. Em vez disso, quando a criação recebeu a operação
do Espírito, obteve todo este esplendor de beleza que a fez brilhar como
‘mundo’” [8].
Em outras palavras, o Espírito Santo é aquele que faz o
criado passar do caos para o cosmos, que faz dele algo belo,
ordenado, limpo: um “mundo” (mundus)
precisamente, de acordo com o significado original desta palavra e da
palavra grega cosmos. Agora nós
sabemos que a ação criadora de Deus não se limita ao instante inicial, como se
acreditava na visão deísta ou mecanicista do universo. Deus não “foi” uma vez,
mas sempre “é” criador. Isso significa que Espírito Santo é aquele que faz
passar o universo, a Igreja e cada pessoa, do caos ao cosmos, ou seja:
da desordem à ordem, da confusão à harmonia, da deformidade à beleza, do velho
ao novo. Não, é claro, mecanicamente e abruptamente, mas no sentido de que está
trabalhando nela e guia a sua evolução para uma finalidade. Ele é aquele que
sempre “cria e renova a face da terra” (cf.
Sl 104,30).
Isso não significa, explicava Basílio naquele mesmo texto,
que o Pai tinha criado algo imperfeito e “caótico” que tinha necessidade de
correções; simplesmente, era o plano e a vontade do Pai de criar por meio do
Filho e conduzir os seres à perfeição por meio do Espírito.
Da criação o santo Doutor passa a ilustrar a presença do
Espírito na obra da redenção:
“No que diz respeito ao plano de salvação (oikonomia) para o homem por obra do
nosso grande Deus e salvador Jesus Cristo, estabelecido segundo a vontade de
Deus, quem poderia negar que se realiza por meio da graça do Espírito?” [9].
Chegando aqui, Basílio se abandona a uma contemplação da
presença do Espírito na vida de Jesus que está entre as passagens mais bonitas
da obra e abre à pneumatologia um campo de pesquisa que só recentemente começou
a ser reconsiderado [10]. O Espírito Santo está em ação já no anúncio dos
profetas e na preparação para a vinda do Salvador; é pelo seu poder que se
realiza a Encarnação no seio de Maria; é ele o crisma com o qual Jesus foi
ungido por Deus no batismo. Toda obra sua foi realizada com a presença do
Espírito. Este estava presente quando foi tentado pelo diabo, quando fazia
milagres, não o deixou quando ressuscitou dos mortos, e no dia da Páscoa o
derramou sobre os discípulos (cf. Jo
20,22s). O Paráclito foi “o companheiro inseparável” de Jesus ao longo da sua
vida.
Da vida de Jesus, São Basílio passa a ilustrar a presença do
Espírito na Igreja:
“E a organização da Igreja, não é claro e indiscutível que é
obra do Espírito? Ele próprio deu à Igreja, diz Paulo, ‘em primeiro lugar os Apóstolos,
depois os profetas, depois os mestres’... Esta ordem está organizada de acordo
com a diversidade dos dons do Espírito” [11].
Na Anáfora que leva o nome de São Basílio, que a nossa atual
Oração Eucarística IV tem seguido de perto, o Espírito Santo tem um lugar
central.
A última imagem retrata a presença do Paráclito na
escatologia: “Também no momento do evento da esperada manifestação do Senhor
aos céus - escreve Basílio - não está ausente o Espírito Santo”. Neste momento
haverá, para os salvos, a passagem das “primícias” para a posse plena do
Espírito e para os réprobos a separação definitiva, o corte claro, entre a alma
e o Espírito [12].
4.
A alma e o Espírito
São Basílio não fica, porém, com a ação do Espírito na
história da salvação e na Igreja. Como ascético e homem espiritual, o seu
principal interesse é pela ação do Espírito na vida de cada batizado. Embora
ainda sem estabelecer a distinção e a ordem das três vias que se tornarão
clássicas mais tarde, ele destaca maravilhosamente a ação do Espírito Santo na
purificação da alma do pecado, na sua iluminação e na divinização que ele chama
também “intimidade com Deus” [13].
Só podemos ler a página na qual, em referência constante com
as Escrituras, o santo descreve essa ação e deixar-nos conquistar pelo seu
entusiasmo:
“A relação de familiaridade do Espírito com a alma, não é
uma aproximação no espaço - de fato, como poderia aproximar-se o incorpóreo
corporalmente? - mas, em vez disso, consiste na exclusão das paixões, as
quais, como consequência da sua atração pela carne, chegam à alma e a separam
da união com Deus. Purificado da imundície da qual tinha se sujado por meio do
pecado e voltado para a beleza natural, como tendo restituído a uma imagem real
a antiga forma por meio da purificação, só assim é possível aproximar-se do
Paráclito. Ele, como um sol, reconhecendo o olho purificado, te mostrará em si
mesmo a imagem do invisível. Na beata contemplação da imagem, verás a inefável
beleza do arquétipo. Por meio dele se elevam os corações, os fracos são levados
pela mão, aqueles que progridem atingem a perfeição. Ele, iluminando aqueles
que foram purificados de toda mancha, torna-os espirituais através da comunhão
com ele. E como os corpos claros e transparentes, quando um raio os atinge, tornam-se
eles próprios brilhantes e refletem um outro raio, assim as almas portadoras do
Espírito são iluminadas pelo Espírito; elas mesmas se tornam plenamente
espirituais e transmitem aos outros a graça. Daqui vem a presciência das coisas
futuras; a compreensão dos mistérios; a percepção das coisas ocultas; as
distribuições dos carismas, a cidadania celeste; a dança com os anjos; a
alegria sem fim; a permanência em Deus; a semelhança com Deus; o cumprimento
dos desejos: tornar-se Deus” [14].
Não foi difícil para os estudiosos descobrir por detrás do
texto de Basílio imagens e conceitos derivados das Enéadas de Plotino e falar, a este respeito, de uma infiltração
estranha no corpo do cristianismo. Na verdade, trata-se de um tema puramente
bíblico e paulino que se expressa, como era correto, em termos familiares e
significativos para a cultura do tempo. Na base de tudo, Basílio não coloca a
ação do homem - a contemplação -, mas a ação de Deus e a imitação de Cristo.
Estamos na antítese da visão de Plotino e de toda filosofia. Tudo, para ele,
começa com o Batismo que é um novo nascimento. O ato decisivo não está no fim,
mas no início do caminho:
“Como na corrida dupla dos estados, uma parada e um descanso
separam os caminhos em sentidos opostos, assim também na mudança de vida é
necessário que uma morte se coloque no meio das duas vidas para colocar fim ao
que precede e para começar as coisas sucessivas. Como conseguir descer aos
infernos? Imitando a sepultura de Cristo por meio do Batismo” [15].
O esquema básico é o mesmo de Paulo. No capítulo sexto da Carta aos Romanos, o Apóstolo fala da
purificação radical do pecado que acontece no Batismo, e no capítulo oitavo
descreve a luta que, sustentado pelo Espírito, o cristão deve levar pelo resto
da sua existência, contra os desejos da carne, para avançar na vida nova:
“Os que vivem de acordo com a carne aspiram às coisas da
carne; mas os que vivem de acordo com o Espírito aspiram às coisas do Espírito.
De fato, a carne aspira ao que conduz à morte; mas o Espírito aspira ao que dá
vida e paz. É que a carne aspira à inimizade com Deus, uma vez que não se
submete à lei de Deus; aliás nem sequer é capaz disso. Os que vivem sob o
domínio da carne são incapazes de agradar a Deus (...). Portanto, irmãos, somos
devedores, mas não à carne, para vivermos de acordo com a carne. É que, se
viverdes de acordo com a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito fizerdes
morrer as obras do corpo, vivereis” (Rm
8,5-13).
Não devemos admirar-nos se para ilustrar a tarefa descrita
por São Paulo, Basílio tenha usado uma imagem de Plotino. Ela está na origem de
uma das metáforas mais universais da vida espiritual e hoje fala a nós o mesmo
que aos cristãos daquela época:
“Vamos, retornes a ti mesmo e olhes; e se ainda não te vês
bonito, imita o autor de uma estátua que tem que conseguir a sua beleza: em
parte bate com o cinzel, em parte aplaina; aqui engrossa, ali afina, até quando
tenha conseguido expressar um belo rosto na estátua. Igualmente também tu tires
o supérfluo, endireita o que está torto, e, por força de purificar o que é
escuro, faça que se torne brilhante e não deixe de atormentar a tua estátua até
que o divino esplendor da virtude brilhe diante de ti” [16].
Se a escultura, como dizia Leonardo da Vinci, é a arte de
remover, tem razão o filósofo quando compara a purificação e a santidade com a
escultura. Para o cristão não se trata, porém, de alcançar uma beleza abstrata,
de construir uma bonita estátua, mas de trazer à luz e tornar mais brilhante a
imagem de Deus que o pecado tende constantemente a cobrir.
Conta-se que um dia Michelangelo, passeando em um pátio de
Florença, viu um bloco de mármore bruto coberto de poeira e lama. Parou de
repente para contemplá-lo, depois, como iluminado por um súbito clarão, disse
aos presentes: “Nesta massa de pedra está escondido um anjo; quero tirá-lo
daí!” E começou a trabalhar com um cinzel para moldar o anjo que havia
vislumbrado. Assim é também conosco. Somos ainda massa de pedra bruta, tendo
acima muita “terra” e muitos pedaços inúteis. Deus Pai nos olha e diz: “Neste
pedaço de pedra se esconde a imagem do meu Filho; quero tirá-la daí, para que
brilhe eternamente do meu lado no céu!” E para fazer isso usa o cinzel da cruz,
nos poda (cf. Jo 15,2).
Os mais generosos não só suportam os golpes do cinzel que vêm
de fora, mas também colaboram, o quanto lhes seja concedido, impondo-se pequenas
ou grandes mortificações voluntárias e quebrando a vontade velha deles. Dizia
um Padre do deserto: “Se queremos ser completamente livres, aprendamos a
quebrar a nossa vontade, e assim, aos poucos, com a ajuda de Deus, avançaremos
e chegaremos à plena liberação das paixões. É possível quebrar de vez a própria
vontade em brevíssimo tempo e lhes digo como. Você está passeando e vê algo; o
seu pensamento lhe diz: ‘Olha lá’, mas ele responde ao seu pensamento: ‘Não,
não olho!’, e quebra a sua vontade” [17].
Este antigo Padre tem outros exemplos tirados da vida
monástica. Se se está falando mal de alguém, talvez do superior; o teu homem
velho diz: “Participes também tu; diga aquilo que sabes”. Mas tu respondes:
“Não”. E mortificas o homem velho... Mas não é difícil alongar a lista com
outros atos de renúncia, próprios do estado ao qual se vive e do trabalho que
se faz.
Enquanto se vive favorecendo os desejos da carne, nós nos
parecemos aos dois famosos “Bronzes de Riace”, quando foram encontrados no
fundo do mar, todo cobertos de crustáceos e quase irreconhecíveis como figuras
humanas. Se também nós queremos brilhar, como estas duas obras-primas após a
sua restauração, a Quaresma é o momento oportuno para colocar mãos à obra.
5.
Uma mortificação “espiritual”
Existe um ponto em que a transformação do ideal de Plotino
em ideal cristão permaneceu incompleta, ou pelo menos pouco explícita. São
Paulo, ouvimos, diz: “Se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo,
vivereis.” O Espírito não é, portanto, só o fruto da mortificação, mas também o
que a torna possível; não está só no final do caminho, mas também no início. Os
Apóstolos não receberam o Espírito em Pentecostes porque se tornaram
fervorosos; tornaram-se fervorosos porque receberam o Espírito.
Os três Padres Capadócios eram basicamente ascetas e monges;
Basílio, em particular, com as suas Regras monásticas (Asceticon), foi o fundador do monaquismo cenobítico. Isso os levou
a destacar fortemente a importância do esforço humano. O irmão e discípulo de
Basílio, Gregório de Nissa, vai escrever nesta linha: “Na medida em que
desenvolvas tuas lutas pela piedade, nesta mesma medida se desenvolve também a
grandeza da alma por meio destas lutas e destes esforços” [18].
Na geração seguinte, esta visão da ascese será retomada e
desenvolvida por autores espirituais, como João Cassiano, mas separada da
sólida base teológica que tinha em Basílio e em Gregório de Nissa. “É a partir
deste ponto - nota Bouyer - que o pelagianismo, colocando o esforço humano antes
da graça, terá o seu início” [19]. Mas este resultado negativo dificilmente
pode ser atribuído a Basílio e aos Capadócios.
Voltemos, para concluir, ao motivo que faz com que a
doutrina de Basílio sobre o Espírito Santo seja perenemente válida e hoje,
dizia, mais do que nunca atual e necessária: a sua praticidade e adesão à vida
da Igreja. Nós latinos temos um caminho privilegiado para fazer nossa e
transformar em oração este mesmo tipo de pneumatologia: o hino do Veni Creator.
Ele é do início ao fim uma contemplação orante daquilo que o
Espírito concretamente faz: em toda a terra e na humanidade como Espírito
Criador; na Igreja, como Espírito de santificação (dom de Deus, água viva,
fogo, amor e unção espiritual) e como Espírito carismático (multiforme nos seus
dons, dedo da mão direita de Deus, que coloca sobre os lábios a palavra); na
vida individual do fiel, como luz para a mente, amor para o coração, cura para
o corpo; como nosso aliado na luta contra o mal e guia no discernimento do bem.
Invoquemo-Lo com as palavras da primeira estrofe,
pedindo-lhe para fazer passar também o nosso mundo e a nossa alma do caos para o cosmos, da dispersão para a unidade, da feiura do pecado para a
beleza da graça.
Veni, Creator
Spiritus,
mentes tuorum visita,
imple superna gratia,
quae tu creasti
pectora,
Ó vinde Espírito criador;
visita os teus fiéis no profundo,
derrama a plenitude da graça,
nos corações que criastes somente para ti.
Notas:
[1] Jean-Paul Sartre, La Nausea, trad. it, Milano, 1984, pp.
193s. Tradução nossa.
[2] Tomás de Aquino, Suma teológica, II-IIae , q. 1,a.2,ad 2.
[3] cf. G. Prestige, God in
Patristic Thought, London, 1936, cap. XIII (trad. it.: Dio nei pensiero dei Padri, Bologna, il Mulino, 1969, pp. 273ss).
[4] Gregório Nazianzeno, Oratio 31, 5.10; cf. também Oratio 6: “Até quando esconderemos a
lâmpada debaixo do móvel e não proclamaremos em alta voz a plena divindade do
Espírito Santo?”.
[5] cf. Lumen Gentium, n. 12.
[6] João Paulo II. A Concilio Costantinopolitano I, in:
AAS 73, 1981, p. 521.
[7] Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 38 (PG 32, 137B); trad. it.: E.
Cavalcanti, L’esperienza di Dio nei Padri
Greci, Roma, 1984.
[8] Ambrósio, Sobre o Espírito Santo, II, 32.
[9] Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 39.
[10] J. D. G. Dunn, Jesus and the Spirit, London, 1988.
[11] Basílio, Sobre o Espírito Santo, XVI, 39.
[12] ibid., XVI, 40.
[13] ibid., XIX, 49.
[14] ibid., IX, 23.
[15] ibid., XV, 35.
[16] Plotino, Enneadi I, 9 (trad. it.: V. Cilento, v. I, Laterza, Bari, 1973, p.
108).
[17] Doroteu de Gaza, Insegnamenti 1,20 (SCh 92, p. 177).
[18] Gregório de Nissa, De instituto christiano (ed. W. Jaeger,
Two Rediscovered Works, Leida, 1954, p. 46).
[19] L. Bouyer, La spiritualità dei Padri, Edizioni
Dehoniane, Bologna, 1968, p. 295.
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