Dando continuidade à nossa série com as meditações do Padre Raniero Cantalamessa ao Papa e à Cúria Romana durante a Quaresma de 2014, dedicadas a quatro Doutores da Igreja do Ocidente, propomos hoje sua reflexão sobre São Leão Magno e a fé em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.
Vale lembrar que, diferentemente dos outros três Padres abordados neste ciclo, São Leão Magno não figura entre os "Quatro Grandes Doutores do Ocidente" (para conhecer a lista completa dos atuais 36 Doutores da Igreja e suas celebrações, clique aqui).
Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap
IV
pregação de Quaresma
04
de abril de 2014
São
Leão Magno e a fé em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem
1.
Oriente e Ocidente unânimes sobre Cristo
Existem vários
caminhos, ou métodos, para aproximar-se à pessoa de Jesus. Pode-se, por
exemplo, partir diretamente da Bíblia e, também neste caso, é possível seguir
várias vias: a via tipológica, seguida na mais antiga catequese da Igreja, que
explica Jesus à luz das profecias e das figuras do Antigo Testamento; a via
histórica, que reconstrói o desenvolvimento da fé em Cristo a partir das várias
tradições, autores e títulos cristológicos, ou dos diversos ambientes culturais
do Novo Testamento. Pode-se, pelo contrário, partir das perguntas e dos
problemas do homem de hoje, ou até mesmo da própria experiência de Cristo, e,
de tudo isso, chegar à Bíblia. Todos esses são caminhos amplamente explorados.
A Tradição da
Igreja elaborou, bem rápido, uma via de acesso ao mistério de Cristo, um modo
seu de recolher e organizar os dados bíblicos relativos a Ele, e esta via se
chama o dogma cristológico, a via dogmática. Por dogma cristológico compreendo
as verdades fundamentais sobre Cristo, definidas nos primeiros Concílios Ecumênicos,
especialmente no de Calcedônia, que, em substância, se resumem nesses três
pilares: Jesus Cristo é verdadeiro homem, é verdadeiro Deus, é uma só pessoa.
São Leão Magno é o
Padre que eu escolhi para introduzir-nos nas profundidades deste mistério. Por
um motivo bem específico. Na teologia latina estava pronta por dois séculos e
meio a fórmula da fé em Cristo que se tornara o dogma de Calcedônia. Tertuliano
tinha escrito: “Vemos duas naturezas, não confusas, mas unidas em uma pessoa,
Jesus Cristo, Deus e homem” [1]. Depois de muita pesquisa, os autores gregos
chegam, por conta própria, a uma formulação idêntica em substância; mas não
porque eles tenham se atrasado ou perdido tempo, e sim porque só agora era
possível dar àquela fórmula o seu verdadeiro significado, tendo eles
evidenciado, enquanto isso, todas as implicações e resolvido as dificuldades.
O Papa São Leão
Magno é aquele que gerenciou o momento em que as duas correntes do rio - aquela
latina e aquela grega - se uniram, e com a sua autoridade de Bispo de Roma
favoreceu o acolhimento universal. Ele não se contenta em simplesmente
transmitir a fórmula herdada por Tertuliano e retomada por Agostinho, mas a
adapta aos problemas que apareceram nesse ínterim, entre o Concílio de Éfeso de
431 e aquele de Calcedônia de 451. Eis, em grandes linhas, o seu pensamento
cristológico, como foi exposto no famoso Tomus ad Flavianum [2]:
Primeiro
ponto: A pessoa do
Deus-homem é idêntica à do Verbo eterno: “Aquele que se fez homem, sob a forma
de servo, é o mesmo que na forma de Deus criou o homem”.
Segundo ponto: A natureza divina e a humana coexistem
nesta única pessoa que é Cristo, sem mistura ou confusão, mas cada uma mantendo
suas propriedades naturais (salva proprietate utriusque naturae). Ele
começa a ser o que não era, sem cessar de ser o que era [3]. A obra da redenção
exigia que “o único e mesmo mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus
Cristo, tivesse que ser capaz de morrer em relação à natureza humana e não
morrer com respeito à natureza divina”.
Terceiro ponto: A unidade da pessoa justifica o uso da
comunicação dos idiomas, pela qual podemos afirmar que o Filho de Deus foi
crucificado e enterrado, e também que o Filho do homem veio do céu.
Foi uma tentativa,
em grande parte bem sucedida, de finalmente encontrar um acordo entre as duas
grandes “escolas” de teologia grega, a de Alexandria e a de Antioquia, evitando
os respectivos erros que eram o monofisismo e o nestorianismo. Os antioquenos
tinham o reconhecimento - para eles vital - das duas naturezas de Cristo, e
portanto, da plena humanidade de Cristo; os alexandrinos, apesar de algumas
reservas e resistências, podiam encontrar na formulação de Leão o
reconhecimento da identidade da pessoa do Verbo encarnado e aquela do Verbo
eterno, que estava nos seus corações por acima de tudo.
Basta recordar o
cerne da definição de Calcedônia para dar-se conta do quanto esteja presente
nela o pensamento do Papa Leão:
“Ensinamos por
unanimidade que se deve reconhecer o único e mesmo Filho Senhor nosso Jesus
Cristo, perfeito na divindade e sempre o mesmo perfeito na humanidade, verdadeiro
Deus e verdadeiro homem (...), gerado antes dos séculos pelo Pai segundo a
divindade e nos últimos tempos, por nós homens e para a nossa salvação, gerado
por Maria Virgem segundo a humanidade; subsistente nas duas naturezas de modo
inconfuso, imutável, indivisível, inseparável, não sendo de forma alguma
suprimida a diferença das naturezas por causa da união, pelo contrário,
permanecendo preservada a propriedade tanto de uma quanto da outra natureza,
elas combinam para formar uma só pessoa e hipóstase” [4].
Poderia parecer uma
fórmula tecnicamente perfeita, mas árida e abstrata, porém, nela se baseia toda
a doutrina cristã da salvação. Só se Cristo é homem como nós, o que ele faz,
nos representa e nos pertence, e somente se Ele também é Deus, aquilo que faz
tem um valor infinito e universal, a tal ponto que, como se canta no Adoro
te devote, “uma única gota de sangue derramado salva o mundo todo do
pecado” (“Cuius una stilla salvum facere totum mundum qui ab omni scelere”).
Sobre este ponto, Oriente
e Ocidente são unânimes. Esta era a situação da humanidade antes de Cristo,
escrevem, com poucas diferenças entre eles, Santo Anselmo entre os latinos e o
Cabasilas entre os ortodoxos. De um lado estava o homem que tinha contraído a
dívida pecando e que tinha que lutar contra Satanás para livrar-se, mas não
podia fazê-lo, sendo a dívida infinita e sendo ele escravo daquele que deveria
ter vencido; por outro lado está Deus que podia expiar o pecado e vencer o
demônio, mas não deveria fazê-lo, não sendo ele o devedor. Era preciso que se
encontrassem unidos na mesma pessoa aquele que devia lutar e aquele
que podia vencer, e é aquilo que aconteceu com Jesus,
“verdadeiro Deus e verdadeiro homem, em uma pessoa” [5].
2.
Jesus da história e o Cristo do dogma novamente unidos
Estas tranquilas
certezas sobre Cristo, nos últimos dois séculos, foram atingidas por um ciclone
crítico que tendia a tirar-lhes toda a consistência e a qualificá-las como
puras invenções dos teólogos. A partir de Strauss, tornou-se uma espécie de
grito de guerra entre os estudiosos do Novo Testamento libertar a figura de
Cristo dos grilhões do dogma, para reencontrar o Jesus histórico, o único real.
“A ilusão de que Jesus possa ter sido homem no sentido pleno e que como única pessoa
seja superior a toda a humanidade é a cadeia que ainda fecha a porta da
teologia cristã ao mar aberto da ciência racional” [6]. E eis a conclusão à
qual o estudioso chega: “A ideia do Cristo do dogma por um lado e o Jesus de
Nazaré da história por outro estão separados para sempre”.
Declara-se sem
hesitação o pressuposto racionalista desta tese. O Cristo do dogma não satisfaz
as exigências da ciência racional. O ataque continuou, com soluções
alternativas, quase até os nossos dias. Tornou-se ele mesmo, a seu modo, um
dogma: para conhecer o verdadeiro Jesus da história é preciso prescindir da fé
nele posterior à Páscoa. Neste clima proliferaram reconstruções fantasiosas da
figura de Jesus a benefício do espetáculo, algumas com pretensões de historicidade,
mas que na verdade se baseavam em hipóteses de hipóteses, todas respondendo a
gostos ou reivindicações do momento.
Mas agora, eu acho,
chegamos ao fim da parábola. É hora de tomar nota da mudança que aconteceu
neste setor, a fim de sair de certa atitude defensiva e de vergonha que tem
caracterizado os estudiosos crentes nos últimos anos, e ainda mais para fazer
chegar uma mensagem a todos aqueles que nestes anos divulgaram profusamente
imagens de Jesus ditadas por aquele anti-dogma. E a mensagem é que não é
possível mais escrever na boa-fé “investigações sobre Jesus” que fingem ser
“históricas”, mas prescindem, ou melhor, excluem desde o início, a fé nele.
Quem personaliza de
modo mais claro a mudança em ato é um dos maiores estudiosos vivos do Novo Testamento,
o inglês James D. G. Dunn. Ele resumiu em um pequeno livro, intitulado “A
New Perspective on Jesus” (Uma nova perspectiva sobre Jesus), os resultados da sua monumental pesquisa
sobre as origens do cristianismo [7]. O autor pôs a descoberto as raízes dos
dois pressupostos em que se baseiam a contraposição entre Jesus histórico e o
Cristo da fé: primeiro, que para conhecer o Jesus da história é necessário
prescindir da fé pós-pascal; segundo, que para conhecer o que realmente disse e
fez o Jesus histórico é preciso libertar a tradição das camadas e das adições
posteriores e voltar para a camada original, ou à primeira “redação”, de uma
determinada perícope evangélica.
Contra o primeiro
pressuposto, Dunn demonstra que a fé começou antes da Páscoa; se alguns o
seguiram e se tornaram seus discípulos é porque tinham acreditado nele.
Trata-se de uma fé ainda imperfeita, mas de fé. Nesta fé, o evento pascal
marcará certamente um salto de qualidade, mas saltos de qualidade, embora menos
importantes, já tinham acontecido antes da Páscoa, em momentos particulares,
como a Transfiguração, certos milagres sensacionais, o diálogo de Cesareia de
Filipe. A Páscoa não é um início absoluto.
Contra o outro
assunto, Dunn demonstra como, embora admitindo que as tradições evangélicas
circularam por um certo tempo de forma oral, os estudiosos aplicavam sempre a
tal tradição o modelo literário, como se faz hoje quando se quer voltar, de
edição em edição, ao texto original de uma obra. Se levarmos em conta as leis
que regularizam - até no presente, em certas culturas -, a transmissão oral das
tradições de uma comunidade, veremos que não há necessidade de enxugar um dito
evangélico, em busca de um hipotético núcleo originário, uma operação que abriu
as portas a todo tipo de manipulação dos textos evangélicos, acabando por
repetir aquilo que acontece quando se descasca uma cebola em busca do seu
núcleo sólido que não existe. Algumas destas conclusões são aquelas que os
estudiosos católicos desde sempre sustentaram [8], mas Dunn tem o mérito de
tê-las defendido com argumentos dificilmente refutáveis a partir da mesma
pesquisa histórico-crítica e com as suas próprias armas.
O rabino americano
J. Neusner, com o qual Bento XVI estabelece um diálogo em seu primeiro livro
sobre Jesus de Nazaré, dá por suposto este resultado. Partindo de um ponto de
vista autônomo e por assim dizer neutro, ele faz notar como é vã a tentativa de
separar o Jesus histórico do Cristo da fé pós-pascal. O Jesus histórico, o dos
Evangelhos, por exemplo, do discurso da montanha, é já um Jesus que exige a fé
na sua pessoa como alguém que pode corrigir Moisés, que é senhor do sábado,
pelo qual também se pode fazer uma exceção ao quarto mandamento; em suma, como
alguém que se coloca em pé de igualdade com Deus. É próprio por isso, diz
o rabino, que embora fascinado pela figura de Jesus, ele não poderá jamais ser
um dos seus discípulos.
O estudo sobre o Novo
Testamento termina aqui; chega a provar a continuidade entre o Jesus da
história e o Cristo do querigma, não vai mais longe. Resta provar a
continuidade entre o Cristo do querigma e o do dogma da Igreja. A fórmula de
Leão Magno e de Calcedônia marca um desenvolvimento coerente da fé do Novo
Testamento, ou representa, pelo contrário, uma ruptura com relação a ela? Este
foi o meu principal interesse nos anos em que eu me ocupava da história das
origens do cristianismo e a conclusão a que cheguei não difere daquela do
Cardeal Newman, em seu famoso ensaio “Sobre
o desenvolvimento da doutrina cristã” [9]. Houve certamente a mudança de
uma cristologia funcional (o que Cristo “faz”) a uma cristologia ontológica (o
que Cristo “é”), mas não se trata de uma ruptura porque o mesmo processo se dá
já no interior do querigma, por exemplo, na passagem da cristologia de Paulo
àquela de João, e em Paulo mesmo, na passagem das suas primeiras cartas àquelas
da prisão, Filipenses e Colossenses.
3.
Além da fórmula
Desta vez o próprio
argumento exigia fixar-se um pouco mais na parte doutrinal do tema. A pessoa de
Cristo é o fundamento de todo o cristianismo. “Se a trombeta emite um som
incerto, quem se preparará para a batalha?”, dizia São Paulo (1Cor 14,8): se não tem ideia clara sobre
quem é Jesus Cristo, que força terá a nossa evangelização? Resta-nos, no
entanto, fazer agora uma aplicação prática para a vida pessoal e a fé atual da
Igreja, que é o objetivo constante da nossa revisão dos Padres.
Quatro séculos e
meio de formidável trabalho teológico deram à Igreja a fórmula: “Jesus Cristo é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem; Jesus Cristo é uma só pessoa”. Mais
sinteticamente ainda: ele é “uma pessoa em duas naturezas”. A esta fórmula se
aplica perfeitamente o dito de Kiekegaard: “A terminologia dogmática da Igreja
primitiva é como um castelo encantado, onde descansam em um sono profundo os mais
graciosos príncipes e princesas. Basta somente acordá-los, para que se coloquem
de pé em toda a sua glória” [10]. A nossa tarefa é, portanto, a de despertar e
de dar sempre nova vida aos dogmas.
A investigação
sobre os Evangelhos - mesmo aquela que lembramos agora de Dunn - nos mostra que
a história não nos pode levar ao “Jesus em si”, ao Cristo como é na realidade.
O que alcançamos nos Evangelhos é sempre, em todas as fases, um Jesus
“lembrado”, mediado pela memória que d’Ele conservaram os discípulos, embora se
uma memória crente. É como a Ressurreição. “Alguns dos nossos - dizem os dois
discípulos de Emaús - foram ao túmulo e encontraram as coisas tais como as
mulheres haviam dito; mas não o viram” (Lc
24,24). A história pode constatar que as coisas, com relação a Jesus de Nazaré,
estão como disseram os discípulos nos Evangelhos, mas não o vê.
O mesmo acontece
com o dogma. Ele pode levar-nos a um Jesus “definitivo”, “formulado”, mas Tomás
de Aquino nos ensina que “a fé não termina nos enunciados (enuntiabile), mas na
realidade (res)”. Entre
a fórmula de Calcedônia e o Jesus real existe a mesma diferença que há entre a
fórmula química H2O e a água que bebemos ou na qual nadamos. Ninguém pode dizer
que a fórmula H2O é inútil ou que não descreve perfeitamente a realidade;
somente não é a realidade! Quem nos poderá levar ao Jesus “real” que está além
da história e por trás da definição?
E eis que nos
deparamos com a grande notícia reconfortante. Existe a possibilidade de um
conhecimento “imediato” de Cristo: é aquele que nos dá o Espírito Santo enviado
por Ele mesmo. Ele é a única “mediação não-mediata” entre nós e Jesus, no
sentido que não age como um véu, não constitui um diafragma ou um trâmite,
sendo ele o Espírito de Jesus, o seu “alter
ego”, da sua mesma natureza. Santo Irineu chega a dizer que “o Espírito
Santo é a nossa mesma comunhão com Cristo” [11]. E nisso, aquela do Espírito é
diferente de qualquer outra mediação entre nós e o Ressuscitado, seja eclesial
que sacramental.
Mas é a Escritura
mesma que nos fala deste papel do Espírito Santo com o propósito do
conhecimento do verdadeiro Jesus. A vinda do Espírito Santo em Pentecostes se
traduz em uma repentina iluminação de todo o trabalho e a pessoa de Cristo.
Pedro conclui o seu discurso com aquela espécie de definição “urbi et orbi” do senhorio de Cristo:
“Saiba, portanto, com certeza toda a casa de Israel que Deus constituiu Senhor
e Cristo aquele Jesus que vós crucificastes” (At 2,36).
São Paulo afirma
que Jesus Cristo é revelado “Filho de Deus com poder pelo Espírito de
santidade” (Rm 1,4), isto é, por obra
do Espírito Santo. Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser por uma
iluminação interior do Espírito Santo (cf.
1Cor 12,3). O Apóstolo atribui ao Espírito Santo “a compreensão do mistério
de Cristo”, que foi dada a ele, como a todos os santos Apóstolos e profetas (cf. Ef 3,4-5). Só se forem “fortalecidos
pelo Espírito” - continua o Apóstolo -, os crentes poderão “compreender a
largura e o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer o amor de Cristo
que excede todo conhecimento” (Ef 3,16-19).
No Evangelho de João, o próprio Jesus
anuncia esta obra do Paráclito com relação a Ele. Ele tomará do que é seu e o
anunciará aos discípulos; os recordará tudo o que Ele disse; os conduzirá a
toda a verdade sobre a sua relação com o Pai; lhes dará testemunho. Exatamente
isso será, de agora em diante, o critério para reconhecer se se trata do
verdadeiro Espírito de Deus e não de outro espírito: se leva a reconhecer Jesus
vindo na carne (cf. 1Jo 4,2-3).
4.
Jesus de Nazaré, uma “pessoa”
Com a ajuda do
Espírito Santo, façamos então uma pequena tentativa de “acordar” o dogma. Do
triângulo dogmático de Leão Magno e de Calcedônia - “verdadeiro Deus”,
“verdadeiro homem”, “uma pessoa” - nos limitamos a tomar em consideração
somente o último elemento: Cristo “uma pessoa”. As definições dogmáticas são
“estruturas abertas”, capazes de acomodar novos significados, o que é possível
graças ao progresso do pensamento humano. Na sua etapa mais antiga, pessoa (do
latim personare, ressoar) indicava a máscara que o ator
precisava para fazer ressoar a sua voz no teatro; disso passou a indicar rosto,
portanto, indivíduo, até chegar ao seu significado mais elevado de “ser
individual de natureza racional” (Boécio).
No uso moderno, o
conceito se enriqueceu de um significado mais subjetivo e relacional,
favorecido sem dúvida pelo uso trinitário de pessoa como “relação subsistente”.
Indica, portanto, o ser humano enquanto capaz de relação, de estar como um “eu”
diante de um “tu”. Nisso a fórmula latina “uma pessoa” revelou-se mais fecunda
do que aquela respectiva grega de “uma hispóstase”. Hipóstase se pode dizer de
cada objeto particular existente; pessoa, somente do ser humano e, por
analogia, do ser divino. Nós falamos hoje (e também os gregos falam) de
“dignidade da pessoa”, não de dignidade da hipóstase.
Aplicamos tudo isso
ao nosso relacionamento com Cristo. Dizer que Jesus é “uma pessoa” significa
também dizer que ressuscitou, que vive, que está diante de mim, que posso tratar-lhe
por “tu” como Ele me trata por “tu”. É necessário passar constantemente, no
nosso coração e na nossa mente, do Jesus personagem ao Jesus pessoa. O
personagem é alguém de quem se pode falar e escrever o que quiser, mas a quem e
com quem, no geral, não se pode falar. Jesus, infelizmente, para a maioria dos
crentes é ainda um personagem, alguém de quem se discute, se escreve muito, uma
memória do passado, um conjunto de doutrinas, de dogmas ou de heresias. É um
ente, mais do que um existente.
O filósofo Sartre,
em uma página famosa, descreveu a emoção metafísica que produz a súbita
descoberta da existência das coisas e pelo menos nisto podemos dar-lhe crédito:
“Eu estava no
Jardim Público. A raiz da castanheira entrava na terra, exatamente sob o meu banco.
Eu não me lembrava que era uma raiz. As palavras se desvaneceram e, com elas, a
significação das coisas, a maneira de empregá-las, as frágeis referências que
os homens tinham traçado na sua superfície. (...) E depois tive aquela
iluminação. Fiquei sem respiração. (...) geralmente a existência esconde-se.
Está presente à nossa volta; não se podem dizer duas palavras sem falar dela, e
afinal não lhe tocamos (...). E depois sucedeu aquilo: de repente, ali estava,
ali estava, era claro como a água: a existência dera-se subitamente a conhecer”
[12].
Para ir além das
ideias e palavras de Jesus e entrar em contato com Ele, pessoa que vive, é
necessário passar por uma experiência desse tipo. Alguns exegetas interpretam o
nome divino “Aquele que é”, no sentido de “Aquele que está”, que é presente,
disponível, agora, aqui [13]. Esta definição aplica-se perfeitamente também ao
Jesus ressuscitado.
É possível ter
Jesus como amigo, porque, depois de ter ressuscitado, ele está vivo, está ao
meu lado, posso tratá-lo como um ser vivo a um ser vivo, um presente a um
presente. Não com o corpo e nem sequer somente com a fantasia, mas “no
Espírito” que é infinitamente mais íntimo e real de ambos. São Paulo nos
assegura que é possível fazer tudo “com Jesus”: quer comamos, quer bebamos,
quer façamos qualquer outra coisa (cf.
1Cor 10,31; Cl 3,17).
Infelizmente,
raramente pensamos em Jesus como um amigo e um confidente. No subconsciente
domina a imagem dele ressuscitado, ascendido ao céu, distante em sua
transcendência divina, que retornará um dia, no fim dos tempos. Esquecemos que
sendo, como diz o dogma, “verdadeiro homem”, melhor, a mesma perfeição humana, Ele
possui no mais alto grau o sentimento da amizade que é uma das qualidades mais
nobres do ser humano. É Jesus que deseja tal relacionamento conosco. No seu
discurso de despedida, dando plena vazão a seus sentimentos, Ele diz: “Já não
vos chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz; mas vos chamo
amigos, porque vos dei a conhecer todas as coisas que ouvi do meu Pai” (Jo 15,15).
Já vi esse tipo de
relacionamento com Jesus, não tanto nos santos, onde prevalece o relacionamento
com o Mestre, com o Pastor, com o Salvador, o Esposo..., mas com os hebreus
que, de modo semelhante a Saulo, chegam hoje a aceitar o Messias. O nome de
Jesus, de repente, muda de uma obscura ameaça, ao mais doce e amado dos nomes.
Um amigo. É como se a ausência de dois mil anos de discussões sobre Cristo
jogasse a favor deles. O deles não é nunca um Jesus “ideológico”, mas uma
pessoa de carne e sangue. Do sangue deles! Emociona ler os testemunhos de
alguns deles. Todas as contradições se resolvem em um instante, todas as
escuridões se iluminam. É como ver a leitura espiritual do Antigo Testamento se
realizar totalmente e rapidamente sob os próprios olhos. São Paulo o compara à
queda de um véu dos olhos (cf. 2Cor
3,16).
Durante sua vida
terrena, embora amando a todos sem distinção, somente com alguns - com Lázaro e
as irmãs e mais ainda com João, o “discípulo que ele amava” - Jesus tem um
relacionamento de verdadeira amizade. Agora, porém, que ressuscitou e não está
mais sujeito aos limites da carne, Ele oferece a todo homem e a toda mulher a
possibilidade de tê-lo como amigo, no sentido mais pleno da palavra. Que o
Espírito Santo, o amigo do Esposo, nos ajude a aceitar com alegria e maravilha
esta possibilidade que preenche a vida.
Notas:
[1] Tertuliano, Adversus Praxean, 27, 11 (CC 2, p.
1199).
[2] Leão Magno, Carta 28 (PL 54, 755 s.).
[3] idem, Sermo 27 (26),1 (PL 54, 749).
[4] Denzinger, Enchiridion Symbolorum, 301-302.
[5] N. Cabasilas, Vita in Cristo, I, 5 (PG 150, 313); cf. Anselmo, Cur Deus homo?, II, 18.20; Tomás de Aquino, Summa theologiae, III, q. 46, art. 1, ad 3.
[6] D.F. Strauss, Der Christus des Glaubens und der Jesus der
Geschichte, 1865.
[7] J. D. G. Dunn, A New Perspective on Jesus. What the Quest
for the Historical Jesus Missed, Grands Rapids, Michigan, 2005 (trad. ital.
Cambiare prospettiva su Gesù,
Paideia, Brescia, 2011).
[8] Dunn considera muito o estudo
do exegeta católico alemão H. Schürmann sobre a origem pré-pascal de certos
ditos de Jesus (op. cit. p. 28).
[9] cf. o meu estudo, Dal kerygma
al dogma. Studi sulla cristologia dei Padri, Vita e Pensiero, Milano, 2006,
pp. 11-51.
[10] S. Kierkegaard, Diario, II, A 110 (ed. a cura di C.
Fabro, Brescia, 1962, n. 196).
[11] Irineu, Contra as heresias, III, 24, 1.
[12] Jean-Paul Sartre, La Nausea, Milano, 1984, pp. 193s.
[13] cf. G. Von Rad, Teologia
dell’Antico Testamento, I, Paideia, Brescia, 1972, p. 212.
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