Com esta postagem concluímos a série das meditações do Padre Raniero Cantalamessa sobre quatro Doutores do Ocidente, proferidas durante a Quaresma de 2014. Completamos assim a série mais ampla de postagens sobre os santos Doutores da Igreja, que iniciamos há uma semana.
Nesta meditação, São Gregório Magno será o nosso guia na leitura espiritual das Sagradas Escrituras:
Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap
V
pregação de Quaresma
11
de abril de 2014
São
Gregório Magno e o entendimento espiritual das Escrituras
Em um esforço por
colocar-nos na escola dos Padres para dar um novo impulso e profundidade à
nossa fé, não pode faltar uma reflexão sobre o modo em que eles liam a Palavra
de Deus. Será o Papa São Gregório Magno a guiar-nos à “inteligência espiritual”
e a um renovado amor pelas Escrituras.
Aconteceu no mundo
moderno, em relação à Escritura, a mesma coisa que aconteceu com a pessoa de
Jesus. A busca do exclusivo sentido histórico e literal da Bíblia que dominou
nos últimos dois séculos partia dos mesmos pressupostos e levou aos mesmos
resultados da pesquisa sobre o Jesus histórico diferente do Cristo da fé. Jesus
era reduzido a um homem extraordinário, um grande reformador religioso, mas
nada mais; a Escritura era reduzida a um livro excelente, até mesmo o mais
interessante do mundo, mas um livro como os outros, que devia ser estudado com
os meios com os quais se estudam todas as grandes obras da antiguidade. Hoje se
está indo inclusive além. Certo ateísmo militante maximalista, anti-judaico e
anti-cristão, tem a Bíblia, especialmente o Antigo Testamento, como um livro
“cheio de abominações”, que deve ser retirado das mãos dos homens de hoje.
Nesse assalto às
Escrituras, a Igreja opõe a sua doutrina e a sua experiência. Na Dei
Verbum o Vaticano II reafirmou a perene validade das Escrituras, como
Palavra de Deus à humanidade; a Liturgia da Igreja a coloca em um lugar de
honra em cada celebração sua; tantos estudiosos, na crítica mais atual, unem
também a fé mais convicta no valor transcendente da Palavra inspirada. A prova
talvez mais convincente é, no entanto , a da experiência. O argumento
que, como vimos, levou à afirmação da divindade de Cristo em Niceia, em 325, e
do Espírito Santo em Constantinopla, em 381, se aplica plenamente também à
Escritura: nela experimentamos a presença do Espírito Santo, Cristo ainda nos
fala, o seu efeito em nós é diferente do de qualquer outra palavra; portanto
não pode ser simples palavra humana.
1.
O velho se torna novo
O propósito da
nossa reflexão é ver como os Padres nos podem ajudar a reencontrar aquela “virgindade”
de escuta, aquele frescor e liberdade ao aproximar-se da Bíblia que permitem
experimentar a força divina que emana dela. O Padre e Doutor da Igreja que
escolhemos como guia, eu disse, é São Gregório Magno, mas para poder
compreender a sua importância neste campo temos que voltar para as fontes do
rio do qual ele próprio faz parte e traçar, pelo menos no geral, o seu percurso
antes de chegar até ele.
São Gregório Magno |
Na leitura da
Bíblia, os Padres só fazem continuar na mesma linha começada por Jesus e pelos Apóstolos,
e só esse dado nos deveria fazer mais cautelosos ao julgá-los. Uma rejeição radical
da exegese dos Padres significaria uma rejeição da exegese do próprio Jesus e
dos Apóstolos. Jesus, aos discípulos de Emaús, explica tudo aquilo que se
referia a Ele nas Escrituras; afirma que as Escrituras falam d’Ele, que Abraão
viu o seu dia; muitos gestos e palavras de Jesus se dão “para que sejam
cumpridas as Escrituras”; os primeiros dois Apóstolos dizem dele: “Achamos
aquele de quem Moisés e os profetas escreveram” (Jo 1,45).
Mas todos estes
eram resultados parciais. Ainda não aconteceu o transfert total. Isso se realiza na cruz e está contido na palavra
de Jesus moribundo: “Tudo está consumado”. Também no Antigo Testamento houve
novidades, retomadas, transposições; por exemplo, o retorno da Babilônia era
visto como uma renovação do milagre do êxodo. Eram saltos quantitativos. Agora
acontece um salto qualitativo, uma mudança de sinal: personagens, eventos,
instituições, leis, templo, sacrifícios, sacerdócio, tudo de repente aparece
sob outra luz. Como quando em uma sala iluminada pela luz fraca de uma vela, se
acende de repente uma forte luz de néon. Cristo que é “luz do mundo” é também
luz das Escrituras. Quando se lê que Jesus ressuscitado “abre a mente dos
discípulos para compreender as Escrituras” (Lc
24,45), refere-se a esta nova inteligência, trabalhada pelo Espírito Santo.
O Cordeiro quebra
os selos e o livro da história sagrada pode finalmente ser aberto e lido (cf. Ap 5). Tudo permanece, mas nada é
como antes. É um instante que unifica - e ao mesmo tempo distingue - os dois
Testamentos e as duas alianças: “Clara e brilhante, aqui está a grande página
que separa os dois Testamentos! Todas as portas são abertas ao mesmo tempo,
toda a oposição se dissipa, todas as contradições são resolvidas” [1]. O
exemplo mais claro para compreender o que acontece neste momento é a
consagração na Missa, e, de fato, esta só é o memorial da outra. Aparentemente
nada mudou no pão e no vinho sobre o altar, no entanto, sabemos que, após a
consagração, eles já são algo completamente diferente e nós os tratamos de maneira
muito diferente de antes.
Os Apóstolos
continuam esta leitura, aplicando-a a Igreja, assim como à vida de Jesus. Tudo
o que estava escrito no Êxodo era
escrito para a Igreja (1Cor 10,11); a
rocha que se seguia e tirava a sede dos judeus no deserto anunciava Cristo e o
maná, o pão descido do céu; os profetas falaram d’Ele (1Pd 1,10ss), o que se diz do Servo Sofredor de Isaías foi cumprido
em Cristo, e assim por diante.
Passando do Novo
Testamento ao tempo da Igreja, notamos dois usos diferentes dessa nova
compreensão das Escrituras: um de tipo apologético e outro de tipo teológico e
espiritual; o primeiro, usado no diálogo com os de fora, o segundo para a
edificação da comunidade. Contra os judeus e os hereges que compartilham a
Escritura compõem-se os assim chamados “testemunhos”, ou seja, coleções de
frases ou passagens bíblicas a serem usadas para provar a fé em Cristo. Sobre
isso se baseia, por exemplo, o Diálogo com o judeu Trifão de
São Justino e tantos outros escritos.
O uso teológico e
eclesial da leitura espiritual começa com Orígenes, tido justamente como o
fundador da exegese cristã. A riqueza e beleza das suas intuições sobre o
sentido espiritual das Escrituras e das suas aplicações práticas é inesgotável.
Elas farão escola seja no Oriente que no Ocidente, onde começa a ser conhecido
ao mesmo tempo que Ambrósio. Junto com a sua riqueza e genialidade, a exegese
de Orígenes introduz, porém, na tradição exegética da Igreja também um elemento
negativo devido ao seu entusiasmo pelo espiritualismo de caráter platônico.
Tomemos a sua seguinte afirmação de método:
“Não se deve
acreditar que os fatos históricos sejam figuras de outros fatos históricos e as
coisas corpóreas de outras coisas corpóreas, mas, pelo contrário, que as coisas
corpóreas são figuras de coisas espirituais e os fatos históricos de realidades
inteligíveis” [2].
Desta forma, à
correspondência horizontal e histórica, própria do Novo Testamento, pela qual
um personagem, um fato, ou uma palavra do Antigo Testamento é visto como
profecia e figura (typos) do que acontece em Cristo ou na Igreja, se
substitui a perspectiva vertical, platônica, pela qual um fato histórico e
visível, seja do Antigo como do Novo Testamento, se torna símbolo de uma ideia
universal e eterna. A relação entre profecia e realização tende a se
transformar na relação entre a história e o espírito [3].
2.
As Escrituras, pedras quadrangulares
Por meio de
Ambrósio e outros que traduziram as suas obras para o latim, o método e os
conteúdos de Orígenes entram plenamente nas veias da cristandade latina e
continuarão a fluir por toda a Idade Média. Qual foi, então, na explicação da
Escritura, a contribuição dos latinos? Podemos resumir a resposta em uma só
palavra que é a que melhor expressa o seu gênio próprio: organização!
Àquela de Orígenes
se acrescenta, é verdade, a contribuição não menos criativa e audaz de outro
gênio, aquela de Agostinho, que enriquecerá de intuições e aplicações novas e
ousadas a leitura da Bíblia. Mas não é nesta linha que se coloca a contribuição
mais significativa dos Padres latinos, ou seja, na descoberta de significados
novos e escondidos na Palavra de Deus, mas na sistematização do imenso material
exegético que tinha se acumulado na Igreja, no traçar uma espécie de mapa para
orientar-se na sua utilização.
Esse esforço
organizativo - começado com Agostinho - foi levado à sua forma definitiva por
Gregório Magno e consiste na doutrina do quádruplo sentido da Escritura. Neste
campo, ele é considerado “um dos principais iniciadores e um dos maiores patronos
da doutrina medieval dos quatro sentidos”, a ponto de se poder falar da Idade
Média como da “época gregoriana” [4].
A doutrina dos
quatro sentidos da Escritura é uma grade, uma forma de organizar as explicações
de um texto bíblico ou de uma realidade da história da salvação, distinguindo
nelas quatro campos ou níveis diferentes de aplicação:
a) O nível literal
e histórico;
b) O nível
alegórico (hoje se prefere chamar tipológico) relacionado à fé em Cristo;
c) O nível moral,
ou seja, em relação ao atuar do cristão;
d) O nível
escatológico (ou anagógico), que se refere ao cumprimento final no céu.
Gregório escreve:
“As palavras da
Sagrada Escritura são pedras quadrangulares (...). Em todo acontecimento do
passado que narram (sentido literal),
em cada coisa futura que anunciam (sentido
anagógico), em cada dever moral que pregam (sentido moral), em cada realidade espiritual que proclamam (sentido alegórico ou cristológico), de
cada lado se mantêm de pé e são irrepreensíveis” [5].
Na Idade Média foi
composto um famoso dístico que resumiu esta doutrina: “Littera gesta
docet, quid credas alegoria.
Moralis, quid agas;
quo tendas anagogia” - “A
letra te ensina o que aconteceu; o que se deve acreditar a alegoria. A moral, o
que fazer; para onde tender, a anagogia”. A aplicação talvez mais clara deste
esquema se tem com relação à Páscoa. De acordo com a letra ou a história, a
Páscoa é o rito que os judeus cumpriram no Egito; de acordo com a alegoria,
referindo-se à fé, ela indica a imolação de Cristo, verdadeiro cordeiro pascal;
de acordo com a moral, indica a transição dos vícios para a virtude, do pecado
à santidade; de acordo com a anagogia ou a escatologia, indica a transição das
coisas terrenas às coisas celestiais, ou também a Páscoa eterna que se
celebrará no céu.
Não se trata de um
esquema rígido e mecânico, mas flexível e passível de infinitas variações,
começando com a ordem em que são listados os vários sentidos. Eis um texto de
Gregório no qual se vê a liberdade com que ele mesmo usa o esquema do quádruplo
sentido e como sabe, com ele, tirar várias harmonias da Escritura. Comentando a
imagem de Ezequiel 2,10, sobre o rolo
“escrito dentro e fora” (“intus et foris”,
de acordo com a Vulgata) diz:
“O rolo da Palavra
de Deus está escrito dentro, por meio da alegoria; fora, por meio da história.
Dentro por meio da inteligência espiritual; fora por meio do simples sentido
literal, adequado aos espíritos ainda fracos. Dentro porque promete os bens
invisíveis; fora, porque estabelece a ordem das coisas visíveis com a retidão
dos seus preceitos. Dentro, porque dá a segurança dos bens celestiais; fora,
porque ensina como usar os bens terrenos, ou como escapar das suas atrações”
[6].
3.
Porque ainda precisamos dos Padres para ler a Bíblia
O que podemos tirar
deste modo assim tão livre e corajoso de colocar-se diante da Palavra de Deus?
Mesmo um admirador da exegese patrística e medieval como o padre Henri de Lubac
admite que não podemos nem retornar a ele, nem imitá-lo mecanicamente no nosso
tempo [7]. Seria uma operação artificial, fadada ao fracasso, porque não temos
os pressupostos dos quais eles partiram, o universo espiritual no qual eles se
moviam.
Gregório Magno e os
Padres no geral estavam certos sobre o ponto fundamental, que é ler as
Escrituras em referência a Cristo e à Igreja. Antes deles já o faziam, o vimos,
Jesus e os Apóstolos. A parte já superada das suas exegeses está no ter
acreditado que podiam aplicar este critério a cada palavra particular da
Bíblia, de modo muitas vezes imaginativo, levando o simbolismo (por exemplo,
aquele dos números) a excessos que hoje nos fazem rir às vezes.
Podemos ter
certeza, observa de Lubac, que, se estivessem vivos hoje, eles seriam os mais
entusiastas na utilização dos recursos críticos colocados à disposição pelo
progresso dos estudos. Orígenes realizou um trabalho hercúleo no seu tempo
deste ponto de vista, obtendo e comparando um com o outro e com o texto
hebraico as várias traduções gregas existentes da Bíblia (a Exapla)
e Agostinho não hesitava em corrigir algumas de suas explicações à luz da nova
versão da Bíblia que Jerônimo estava fazendo [8].
O que então
permanece válido da herança dos Padres neste campo? Talvez aqui, mais do que em
qualquer outro lugar, eles têm uma palavra decisiva a dizer para a Igreja de
hoje que temos de tentar descobrir. O que caracteriza a leitura da Bíblia dos
Padres, além das suas elaboradas alegorias e ousadas aplicações, além da mesma
doutrina dos quatro sentidos da Escritura? De cima para baixo e cada ponto seu
é uma leitura de fé: partia da fé e levava à fé. Todas as suas distinções entre
leitura histórica, alegórica, moral e escatológica se resumem hoje a uma só
distinção: aquela entre uma leitura de fé da Escritura e uma leitura privada de
fé, ou ao menos privada de certa qualidade de fé.
Vamos deixar de
lado os estudiosos da Bíblia não crentes que lembrei no início, para os quais
ela é só um livro interessante, mas só humano. A diferença que eu gostaria de
evidenciar é mais sutil e passa entre os mesmos crentes. É a distinção entre uma
leitura pessoal e uma leitura impessoal da palavra de Deus. E tento explicar o
que entendo. Os Padres se aproximavam da Palavra de Deus com uma pergunta
constante: o que ela diz, agora e aqui, à Igreja e a mim pessoalmente? Estavam
convencidos de que ela sempre traz novas luzes e novos compromissos.
“Toda a Escritura -
está escrito - é inspirada por Deus” (2Tm
3,16). A expressão que se traduz como “inspirada por Deus”, ou “divinamente
inspirada”, na língua original, é uma palavra única, theopneustos, que
contém os dois vocábulos: de Deus (Theos) e de Espírito (Pneuma).
Tais palavras têm dois significados fundamentais. O significado mais conhecido
é aquele passivo, revelado em todas as traduções modernas: a Escritura é
“inspirada por Deus”. Outro passo do Novo Testamento explica assim este
significado: “Movidos pelo Espírito Santo falam aqueles homens (os profetas) de
parte de Deus” (2Pd 1,21). É, em
definitiva, a doutrina clássica da inspiração divina da Escritura, aquela que
proclamamos como artigo de fé no Credo, quando dizemos que o Espírito Santo é
aquele “que falou pelos profetas”.
Da inspiração
bíblica se ilumina, normalmente, quase apenas um efeito: a infalibilidade
bíblica, ou seja, o fato de que a Bíblia não contém nenhum erro (se entendemos
“erro”, corretamente, como ausência de uma verdade possível humanamente, em um
determinado contexto cultural e, portanto, exigível pelo escritor). Mas a
inspiração bíblica fundamenta muito mais do que a simples infalibilidade da
Palavra de Deus (que é uma coisa negativa); fundamenta, positivamente, a sua
inexauribilidade, a sua força e vitalidade divina. A Escritura, dizia Santo
Ambrósio, é theopneustos não só porque é “inspirada por Deus”,
mas também porque é “inspirante de Deus”, porque inspira a Deus [9]! Agora
inspira a Deus!
“Com o que podemos
comparar as palavras da Sagrada Escritura - escreve São Gregório - se não com
uma pederneira, na qual se esconde o fogo? Ela é fria quando se segura com a
mão, mas atingida pelo ferro, solta faíscas e gera fogo” [10].
A Escritura não
contém só o pensamento de Deus fixado uma vez por todas; contém também o
coração de Deus e a sua vontade viva que lhe indica o que quer de você em certo
momento, e talvez só de você. A Constituição Conciliar Dei Verbum recolhe
também esta linha da tradição quando diz que “as Sagradas Escrituras inspiradas
por Deus (inspiração passiva!) e
redigidas uma vez por todas, comunicam imutavelmente a Palavra do mesmo Deus e
fazem ressoar nas palavras dos profetas e dos Apóstolos a voz do Espírito Santo
(inspiração ativa!)” [11]. Portanto,
não se trata só de ler a Palavra de Deus, mas também de fazer-se ler por esta;
não somente de perscrutar as Escrituras, mas de deixar-se perscrutar pelas
Escrituras. Trata-se de não aproximar-se dela como os bombeiros entravam uma
vez entre as chamas, ou seja, com ternos de amianto que os faziam passar
incólumes entre o fogo.
Retomando a imagem
de São Tiago, muitos Padres, entre os quais o nosso Gregório Magno, comparavam
a Escritura a um espelho [12]. O que dizer de alguém que passasse todo o tempo
examinando a forma e o material de que é feito o espelho, a época em que
remonta e tantos outros detalhes, mas não se olhasse nunca no espelho? Assim
faria aquele que passasse o tempo resolvendo todos os problemas críticos que a
Escritura coloca, as fontes, os gêneros literários, etc., mas não se olhasse
nunca no espelho, ou melhor, nunca permite que o espelho o olhe e o perscrute a
fundo, até o ponto onde se dividem as juntas das medulas. A coisa mais
importante, sobre a Escritura, não é resolver os seus pontos obscuros, mas
colocar em prática os claros! Ela, diz ainda o nosso Gregório, “se compreende
fazendo-a” [13].
Uma forte fé na
palavra de Deus não é apenas essencial para a vida espiritual do cristão, mas
também para todas as formas de evangelização. Há duas maneiras de preparar um
sermão ou qualquer proclamação da fé, oral ou escrita. Eu posso, antes de
sentar-me à mesa e escolher eu mesmo a palavra a ser anunciada e o tema a ser
desenvolvido, baseando-me nos meus próprios conhecimentos, nas minhas preferências,
etc., e depois, uma vez preparado o discurso, colocar-me de joelhos para pedir
apressadamente a Deus que abençoe o que escrevi e dê eficácia às minhas
palavras. É já uma coisa boa, mas não é o caminho profético. Devemos seguir a
ordem inversa: primeiro de joelhos, depois à mesa.
Temos que começar
da certeza da fé que, em todas as circunstâncias, o Senhor Ressuscitado tem no
coração uma palavra sua que deseja fazer chegar ao seu povo. E Ele não a deixa
de revelar ao seu ministro se humildemente e com insistência ele a pede. No
começo se trata de um movimento quase imperceptível do coração: uma pequena luz
que se acende na mente, uma palavra da Bíblia que começa a atrair a atenção e
que ilumina uma situação. Verdadeiramente, “a menor de todas as sementes”, mas
depois você percebe que dentro estava tudo; havia um trovão capaz de derrubar
os cedros do Líbano. Depois você se coloca à mesa, abre os seus livros,
consulta as suas anotações, consulta os Padres da Igreja, os mestres, os poetas...
Mas já é outra coisa. Não é mais a Palavra de Deus a serviço da sua cultura,
mas a sua cultura a serviço da Palavra de Deus.
Orígenes descreve
bem o processo que leva a esta descoberta. Antes de encontrar na Escritura o
alimento - dizia - era preciso suportar certa “pobreza” dos sentidos; a alma é
cercada pela escuridão em todos os lados, só se encontra em ruas sem saída. Até
que, de repente, depois de trabalhosa pesquisa e oração, eis que ressoa a voz
do Verbo e imediatamente algo se ilumina; aquele que ela procurava lhe vai ao
encontro “pulando sobre as montanhas e saltando pelas colinas” (cf. Ct 2,8), ou seja, abrindo-lhe a
mente para receber uma palavra sua, forte e luminosa [14]. Grande é a
alegria que acompanha este momento. Ela fazia dizer a Jeremias: “Quando as tuas
palavras vieram a mim, as devorei com avidez; a tua palavra foi a alegria e o
gozo do meu coração” (Jr 15,16).
Normalmente, a
resposta de Deus vem na forma de uma palavra da Escritura que, no entanto,
naquele momento revela a sua importância extraordinária para a situação e para
o problema a ser tratado, como se tivesse sido escrita especificamente para
ele. Ao fazer isso, ele fala, de fato, “como com palavras de Deus” (cf. 1Pd 4,11). Este método vale sempre:
para os grandes documentos, como para a lição que o mestre deu aos seus
noviços, para a douta conferência como para a humilde homilia dominical.
Todos nós tivemos a
experiência do que pode fazer uma única palavra de Deus profundamente
acreditada e vivida primeiramente por aquele que a pronuncia e às vezes até
mesmo sem o seu conhecimento; muitas vezes deve-se constatar que, entre tantas
outras palavras, aquela foi a que tocou o coração e levou mais de um ouvinte ao
confessionário. A experiência humana, as imagens, as histórias vividas, nada de
tudo isso está excluído da pregação evangélica, mas deve ser submetida à Palavra
de Deus que deve estar por acima de tudo. Foi o que nos recordou o Santo Padre
nas páginas dedicadas à homilia da “Evangelii
gaudium” e é quase presunçoso de minha parte pensar que eu poderia
acrescentar algo.
Gostaria de
terminar esta meditação com um pensamento de gratidão para com os irmãos
judeus, até mesmo como uma felicitação pela próxima visita do Santo Padre a
Israel. Se nos divide deles a interpretação que lhe damos, nos une o comum amor
pelas Escrituras. No museu de Tel Aviv há uma pintura de Reuben Rubin onde se
veem dois rabinos que apertam, um no peito e outro na bochecha, os rolos da
palavra de Deus, e os beijam como se beija a própria esposa. Com os irmãos
hebreus é possível algo de análogo àquilo que é o ecumenismo espiritual entre
cristãos, ou seja, um colocar juntos, em um clima de diálogo e de estima
recíproca, aquilo que nos une, sem ignorar ou esconder o que nos separa. Não
podemos nos esquecer de que recebemos deles as duas coisas mais preciosas que
temos na vida: Jesus e as Escrituras.
Também neste ano a
Páscoa hebraica cai na mesma semana que a cristã. Desejamos a nós mesmos e a
eles: Feliz Páscoa! Santo e Feliz Pessach!
Notas:
[1] Paul Claudel, L’épée et le miroir: Les sept douleurs de la
Sainte Vierge, Paris: Gallimard, 1939, pp. 74-75.
[2] Orígenes, Comentário a João, 10, 110 (GCS, Orígenes, vol. 4, p. 189).
[3] cf. H. de Lubac, Histoire et
Esprit. L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Aubier, Paris, 1950.
[4] idem, Exegèse Mèdiévale. Les
quatre sens de l’Ecriture, Aubier, Paris, 1959, vol. I, 1, p. 189; vol. I,
2, p. 537).
[5] Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, IX, 8.
[6] ibid., I, IX, 30.
[7] H. de Lubac, Histoire et Esprit, op. cit., pp. 629ss.
[8] Fá-lo, por exemplo, a propósito
do significado da palavra “Páscoa”, em Enarrationes
in Psalmos 120,6 (CC 40, p. 1791).
[9] Ambrósio, De Spiritu Sancto, III, 112.
[10] Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, II, 10, 1.
[11] Dei Verbum, n. 21.
[12] Gregório Magno, Moralia, I, 2, 1 (PL 75, 553D).
[13] ibid. I, 10,31.
[14] cf. Orígenes, In Mt Ser.,
38 (GCS, 1933, p. 7); In Cant.,3
(GCS, 1925, p. 202).
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