Os
salmos e o cântico das Laudes da segunda-feira da I semana do Saltério foram
apresentados pelo Papa João Paulo II nas Catequeses dos dias 30 de maio (Sl 5),
06 de junho (1Cr 29,10-13) e 13 de junho de 2001 (Sl 28).
6. A oração da manhã para pedir ajuda: Sl
5,2-10.12-13
30 de maio de 2001
1. “É a vós que eu dirijo a
minha prece; de manhã já me escutais! Desde cedo eu me preparo para vós, e
permaneço à vossa espera”. Com estas palavras, o Salmo 5 (v. 4) apresenta-se
como uma oração da manhã e por isso se situa bem na Liturgia das Laudes, o
cântico do fiel no início do dia. A tonalidade de fundo dessa súplica está
marcada também por tensão e ansiedade pelos perigos e amarguras que podem acontecer
inesperadamente. Mas não falta a confiança em Deus, sempre pronto a amparar o
seu fiel para que não tropece no caminho da vida.
“Ninguém, a não ser a
Igreja, possui uma confiança assim” (São Jerônimo, Tractatus LIX in Psalmos, 5, 27: PL 26, 829). E Santo Agostinho,
chamando a atenção para o título que é dado ao Salmo, que diz na sua versão
latina: Para aquele que recebe
a herança, explica: “Portanto,
trata-se da Igreja que recebe em herança a vida eterna por meio de nosso Senhor
Jesus Cristo, de maneira que ela possui o próprio Deus, adere a Ele, e n’Ele
encontra a sua felicidade, segundo o que está escrito: ‘Bem-aventurados os mansos, porque
possuirão a terra’ (Mt 5,5)” (Enarr. in Ps., 5: CCL 38, 1, 2-3).
2. Como acontece muitas
vezes nos salmos de “súplica” dirigidos ao Senhor para que nos liberte do mal,
são três as personagens que entram em cena neste Salmo. Em primeiro lugar,
aparece Deus (vv. 2 e 7), o Tu por excelência do Salmo, ao
qual o orante se dirige com confiança. Perante os pesadelos de um dia cansativo
emerge uma certeza: o Senhor é um Deus coerente, rigoroso em relação à
injustiça, alheio a qualquer compromisso com o mal: “Não sois um Deus a quem
agrade a iniquidade” (v. 5).
Um longo elenco de pessoas
más - o ímpio, o que pratica a iniquidade, o mentiroso, o sanguinário, o perverso
e enganador - passa diante do olhar do Senhor. Ele é o Deus santo e justo e
põe-se ao lado de quem percorre os caminhos da verdade e do amor, opondo-se a
quem escolhe “as veredas que conduzem ao reino das sombras” (cf. Pr 2,18). Então, o fiel não se sente
sozinho e abandonado quando enfrentar a cidade, penetrando na sociedade e no
enredo das vicissitudes quotidianas.
"É a vós que eu dirijo a minha prece: de manhã já me escutais" (Sl 5,4) (Jesus em oração junto à cidade de Jerusalém - William Hole) |
3. Nos versículos 8-9 da
nossa oração matutina o segundo personagem, o
orante, apresenta-se com um Eu, revelando que toda a sua pessoa se
dedica a Deus e à sua “grande misericórdia”. Ele tem a certeza de que as portas
do templo, isto é, o lugar da comunhão e da intimidade divina, fechadas para os
incrédulos, se abrem diante dele. Entra por elas a fim de sentir a segurança da
proteção divina, enquanto fora o mal se alastra e celebra os seus aparentes e
efêmeros triunfos.
Da oração matutina no templo
o fiel recebe a força interior para enfrentar um mundo com frequência hostil. O
próprio Senhor o levará pela mão e o guiará pelas estradas da cidade, ou
melhor, “aplainará para ele o caminho”, como diz o salmista com uma imagem
simples e sugestiva. No original hebraico esta serena confiança funda-se em
duas palavras (hésed e sedaqáh): por
um lado, “misericórdia ou fidelidade” e, por outro, “justiça ou salvação”. São
as palavras típicas para celebrar a aliança que une o Senhor ao seu povo e a
cada um dos fiéis.
4. Por fim, eis que se
projeta no horizonte a obscura figura do terceiro personagem deste drama
quotidiano: são os inimigos, os malvados, que já se apontavam nos versículos
precedentes. Depois do “Tu” de Deus e
do “Eu” do orante, encontra-se agora
um Eles que indica uma multidão hostil, símbolo
do mal do mundo (vv. 10-11). A sua fisionomia esboçada com base num elemento
fundamental na comunicação social, a
palavra. Quatro elementos -
boca, coração, garganta, língua - exprimem a radicalidade da maldade inerente
às suas escolhas. A sua boca está cheia de falsidade, o seu coração planeja
constantemente traições, a sua garganta é como um sepulcro aberto, preparada
para desejar apenas a morte, a sua língua é sedutora, mas “carregada de veneno
mortal” (Tg 3,8).
5. Depois deste severo e
realístico retrato do perverso que atenta contra o justo, o salmista invoca a
condenação divina em um versículo (v. 11), que a Liturgia cristã omite,
querendo desta forma conformar-se com a revelação neo-testamentária do amor
misericordioso, que oferece também ao malvado a possibilidade da conversão.
Neste ponto, a oração do
salmista tem um final cheio de luz e de paz (vv. 12-13), depois do obscuro
perfil do pecador que acabamos de delinear. Uma vaga de serenidade e de alegria
envolve quem é fiel ao Senhor. O dia que agora se inicia para o crente, apesar
de ser marcado por canseiras e ansiedades, terá sempre sobre si o sol da bênção
divina. O salmista, que conhece profundamente o coração e o estilo de Deus, não
tem nenhuma dúvida: “Porque ao justo abençoais com vosso amor, e o
protegeis como um escudo!” (v. 13).
7. Honra e glória, só a Deus: 1Cr 29,10-13
06 de junho de 2001
1. “Bendito sejais vós, ó
Senhor Deus, Senhor Deus de Israel, o nosso pai, desde sempre e por toda a
eternidade!” (1Cr 29,10).
Este intenso cântico de louvor, que o Primeiro
Livro das Crônicas põe nos lábios de Davi, faz-nos reviver a explosão de
alegria com que a comunidade da antiga aliança saudou os grandes preparativos
realizados com vista à construção do templo, fruto de um compromisso conjunto
do rei e de muitos que tinham trabalhado com ele. Como que competiam em
generosidade, porque isto exigia uma morada que não “se destina a um homem, mas
ao Senhor Deus” (v. 1).
Ao reler aquele
acontecimento, séculos depois, o cronista intui os sentimentos de Davi e de
todo o povo, a sua alegria e admiração por quantos tinham oferecido a sua
contribuição: “O povo alegrava-se com as suas oferendas voluntárias, pois era
de coração generoso que as faziam ao Senhor. O próprio rei Davi sentiu alegria”
(v. 9).
2. Este é o contexto em que
nasce o cântico. Mas ele só considera brevemente a satisfação humana, para pôr
a glória de Deus imediatamente no centro da atenção: “A Vós, Senhor, a
grandeza... a Vós, Senhor, a realeza...”. A grande tentação que está sempre à
espreita, quando se realizam obras pelo Senhor, é a de colocarmos a nós mesmos
no centro, como se nos sentíssemos credores de Deus. Davi, pelo contrário,
atribui tudo ao Senhor. Não é o homem, com a sua inteligência e a sua força, o
primeiro artífice de quanto se realizou, mas sim o próprio Deus.
Davi expressa desta forma a
profunda verdade de que tudo é graça. Num certo sentido, aquilo que foi
colocado à disposição para o templo, não é senão a restituição, além disso
extremamente exígua, de quanto Israel recebeu no inestimável dom da aliança que
Deus estipulou com os antepassados. Na mesma linha, Davi dá mérito ao Senhor
por tudo o que constituiu a sua sorte, tanto em campo militar como nos setores
político e econômico. Tudo vem d'Ele!
3. Daqui, o impulso
contemplativo destes versículos. Parece que ao autor do cântico não bastam as
palavras para professar a grandeza e o poder de Deus. Ele considera-O sobretudo
na especial paternidade demonstrada a Israel, “nosso pai”. Este é o primeiro
título que exige o louvor “agora e sempre”.
Na recitação cristã destas
palavras, não podemos deixar de recordar que esta paternidade se revelou de
modo completo na Encarnação do Filho de Deus. Ele, só Ele, é que pode falar a
Deus chamando-lhe, em sentido próprio e afetuosamente, “Abbá” (Mc 14,36).
Ao mesmo tempo, através do dom do Espírito, é nos comunicada a sua filiação que
nos torna “filhos no Filho”. A bênção do antigo Israel por parte de Deus Pai
adquire para nós a intensidade que Jesus nos manifestou, ensinando-nos a chamar
a Deus “Pai nosso”.
4. Depois, o olhar do autor
bíblico alarga-se da história da salvação para todo o cosmos, a fim de contemplar a grandeza de Deus Criador: “Tudo
é vosso: o que há no céu e sobre a terra!”. E ainda, “sobre a terra, como rei,
vos elevais!”. Como no Salmo 8, o orante do nosso cântico ergue a cabeça para a
o firmamento infinito, dirigindo em seguida o olhar admirado para a imensidão
da terra e tudo vê submetido ao domínio do Criador. Como expressar a glória de
Deus? As palavras sobrepõem-se, numa espécie de sucessão
mística: grandeza, poder, glória, esplendor e majestade; e depois, ainda
força e poder. Tudo o que o homem experimenta de belo e de grande deve
referir-se Àquele que está na origem de todas as coisas e que tudo governa. O
homem sabe que tudo quanto possui é dádiva de Deus, como salienta Davi, dando
continuidade ao cântico: “Quem sou eu e quem é o meu povo, para que
possamos fazer-vos voluntariamente estas oferendas?” (1Cr 29,14).
5. Este pano de fundo da
realidade, como dom de Deus, ajuda-nos a conjugar os sentimentos de louvor e de
reconhecimento do cântico com a autêntica espiritualidade do “ofertório”, que a
Liturgia cristã nos faz viver sobretudo na Celebração Eucarística. É o que
emerge da dupla oração com que o sacerdote oferece o pão e o vinho, destinados
a tornar-se Corpo e Sangue de Cristo: “Bendito sejais, Senhor Deus do
universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da terra e do trabalho
humano, que agora vos apresentamos e para nós se vai tornar pão da vida”. Esta
oração é repetida sobre o vinho. Sentimentos análogos são sugeridos tanto pela Divina Liturgia bizantina, como pelo antigo Cânon Romano, quando na
anamnese eucarística exprimem a consciência de oferecer como dom a Deus as
coisas d’Ele recebidas.
6. A última aplicação desta
visão de Deus é realizada pelo cântico tendo em vista a experiência humana da
riqueza e do poder. Estas duas dimensões apareceram enquanto Davi predispunha o
necessário para construir o templo. Também para ele mesmo podia ser uma
tentação, aquela que é uma tentação universal: agirmos como se fôssemos
árbitros absolutos daquilo que possuímos, fazendo disto um motivo de orgulho e
de injustiça em relação ao próximo. A oração cadenciada neste cântico leva o
homem à sua dimensão de “pobre”, que tudo recebe.
Então, os reis desta terra
são unicamente uma imagem da realeza divina: “a Vós, Senhor, pertence a
realeza!”. Os abastados não podem esquecer-se da origem dos seus próprios
bens: “Toda glória e riqueza vêm de Vós!”. Os poderosos devem saber
reconhecer-se em Deus, como fonte “de toda a grandeza e de todo o poder”. O
cristão é chamado a interpretar estas expressões, contemplando com exultação
Cristo Ressuscitado, glorificado por Deus “acima de todo o Principado,
Potestade, Virtude e Dominação” (Ef 1,21).
Cristo é o verdadeiro Rei do universo!
8. A voz poderosa de Deus: Sl 28(29),1-11
13 de junho de 2001
1. Alguns estudiosos
consideram o Salmo 28, que acabamos de recitar, como um dos textos mais antigos
do Saltério. É poderosa a imagem que o sustém no seu desenvolvimento poético e
orante: de fato, estamos perante o desencadear progressivo de uma tempestade.
Ela é marcada no original hebraico por uma palavra, “qol”, que
significa ao mesmo tempo “voz” e “trovão”. Por isso alguns comentadores deram
ao nosso texto o título de “Salmo dos sete trovões”, devido ao número de vezes
que essa palavra nele é repetida. Pode dizer-se, com efeito, que o salmista
concebe o trovão como um símbolo da voz divina que, com o seu mistério
transcendente e inatingível, irrompe na realidade criada chegando ao ponto de perturbá-la
e amedrontar, mas que no seu significado mais profundo é palavra de paz e de
harmonia. Aqui o pensamento vai para o capítulo 12 do Quarto Evangelho, onde a
voz que, do céu, responde a Jesus, é entendida pela multidão como um trovão (cf. Jo 12,28-29).
Ao propor o Salmo 28 para a
oração das Laudes, a Liturgia
das Horas convida-nos a
assumir uma atitude de profunda e confiante adoração da Majestade divina.
2. São dois os momentos e os
lugares aos quais o cantor bíblico nos conduz. No centro (cf. vv. 3-9) encontra-se a representação da tempestade que se
desencadeia a partir da “extensão das águas” do Mediterrâneo. As águas
marinhas, aos olhos do homem da Bíblia, encarnam a desordem que atenta contra a
beleza e o esplendor da criação, chegando a corrompê-la, a destruí-la e a
abatê-la. Por conseguinte, temos na observação da tempestade que se enfurece, a
descoberta do poder imenso de Deus. Quem reza vê o furacão que se desloca para
norte e cai na terra firme. Os cedros altíssimos do monte Líbano e do monte Sarion,
chamado outras vezes Hermon, são arrancados pelos raios e parecem saltar sob os
trovões como animais amedrontados. Os estrondos aproximam-se, atravessam toda a
Terra Santa e descem para sul, nas estepes desérticas de Cades.
3.
Após esta visão de grande movimento e tensão somos
convidados a contemplar, por contraste, outro cenário que é representado no
início e no final do salmo (cf. vv.
1-2.9-11). Ao assombro e ao medo contrapõe-se agora a glorificação adorante de
Deus no templo de Sião.
Há quase um canal de
comunicação que une o santuário de Jerusalém com o santuário celeste: nestes
dois âmbitos sagrados há paz e eleva-se o louvor à glória divina. O barulho
ensurdecedor dos trovões é substituído pela harmonia do cântico litúrgico, o
terror pela certeza da proteção divina. Agora Deus aparece como “o Senhor que
domina os dilúvios” e “reinará para sempre” (v. 10), isto é, como o Senhor e o
Soberano de toda a criação.
4. Diante destes dois
quadros antitéticos, o orante é convidado a realizar uma dupla experiência. Em
primeiro lugar, deve descobrir que o mistério de Deus, expresso no símbolo da
tempestade, não pode ser apreendido e dominado pelo homem. Como canta o profeta
Isaías, o Senhor, semelhante ao esplendor ou à tempestade, irrompe na história
semeando pânico em relação aos perversos e aos opressores. Sob a intervenção do
seu juízo, os adversários soberbos são destronados como árvores atingidas por
um furacão ou como cedros despedaçados pelas flechas divinas (cf. Is 14,7-8).
Nesta luz é evidenciado
aquilo que o pensador moderno Rudolph Otto qualificou como o tremendum de Deus, ou seja, a sua
transcendência inefável e a sua presença de juiz justo na história da
humanidade. Ela ilude-se em vão ao pensar que pode opor-se ao seu poder
soberano. Também Maria exaltará no Magnificat este aspecto do agir de Deus: “Demonstrou
o poder de seu braço, dispersou os orgulhosos; derrubou os poderosos de seus
tronos e os humildes exaltou” (Lc 1,51-52).
5. Mas o Salmo apresenta-nos
outro aspecto do rosto de Deus, o que se descobre na intimidade da oração e na
celebração da Liturgia. Segundo o pensador mencionado, é o fascinosum de Deus, ou seja, o fascínio que
provém da sua graça, o mistério do amor que se propaga no fiel, a segurança
serena da bênção reservada para o justo. Até perante a confusão do mal, das
tempestades da história, e da própria cólera da justiça divina, o orante se
sente em paz, envolvido pelo manto de proteção que a Providência oferece a quem
louva a Deus e segue os seus caminhos. Através da oração chega-se à consciência
de que o verdadeiro desejo do Senhor consiste em conceder a paz.
No templo é restabelecida a
nossa apreensão e cancelado o nosso terror; nós participamos na Liturgia
celeste com todos “os filhos de Deus”, anjos e santos. E sobre a tempestade,
semelhante ao dilúvio destruidor da maldade humana, curva-se então o arco-íris
da bênção divina, que recorda “a aliança eterna concluída entre Deus e todos os
seres vivos de toda a espécie que há na terra” (Gn 9,16).
É esta, principalmente, a mensagem
que se realça na leitura “cristã” do Salmo. Se os sete “trovões” do nosso Salmo
representam a voz de Deus no universo, a expressão mais nobre desta voz é
aquela com que o Pai, na teofania do Batismo de Jesus, revelou a Sua identidade
mais profunda como “Filho muito amado” (Mc 1,11
e paralelos). São Basílio escreve: “Talvez, e de maneira mais mística, ‘a
voz do Senhor sobre as águas’ ecoou quando veio uma voz do alto ao Batismo de
Jesus e disse: ‘Este é o Meu Filho muito amado’. Então, de fato, o Senhor
pairava sobre muitas águas, santificando-as com o Batismo. O Deus da glória
ecoou do alto com a voz poderosa do seu testemunho... E podes também entender
como ‘trovão’ aquela mudança que, depois do Batismo, se realiza através da
grande ‘voz’ do Evangelho” (Homilias sobre os Salmos: PG 30, 359).
"Eis a voz do Senhor sobre as águas" (Sl 28,3) (Cristo acalma a tempestade - Rembrandt) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário