Após elencarmos em nosso blog as celebrações de todos os 36 atuais Doutores da Igreja, propomos aqui uma série de meditações do Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia (criado Cardeal em 2020), proferidas durante a Quaresma de 2012 e dedicadas a quatro Doutores do Oriente.
Começamos com Santo Atanásio de Alexandria e sua fé na divindade de Cristo:
Pe.
Raniero Cantalamessa, OFMCap
I
pregação de Quaresma
09 de março de 2012
Santo Atanásio e a fé na divindade de Cristo
Em preparação para
o Ano da Fé proclamado pelo Santo Padre Bento XVI (11 de outubro de 2012 - 24
de novembro de 2013), as quatro pregações da Quaresma têm a intenção de retomar
o impulso e o frescor da nossa fé, através de um contato renovado com os
“gigantes da fé” do passado. Daí o título, retirado da Carta aos Hebreus, e que foi dado para todo o ciclo: “Lembrai-vos
dos vossos dirigentes, que vos anunciaram a palavra de Deus. Imitai-lhes a fé”
(Hb 13,7).
Iremos cada vez
para a escola de um dos quatro grandes doutores da Igreja oriental - Atanásio,
Basílio, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa - para ver o que cada um deles
nos diz hoje, sobre o dogma do qual foram o defensor, ou seja, respectivamente,
a divindade de Cristo, o Espírito Santo, a Trindade, o conhecimento de Deus. Em
outro momento, se Deus quiser, vamos fazer a mesma coisa com os grandes
doutores da Igreja do Ocidente: Agostinho, Ambrósio, Leão Magno e Gregório
Magno.
O que gostaríamos
de aprender com os Padres não é tanto como proclamar a fé no mundo, ou seja, a
evangelização, e nem sequer como defender a fé contra os erros, ou seja, a
ortodoxia; realmente o que queremos é o aprofundamento da própria fé,
redescobrir, por trás deles, a riqueza, a beleza e a felicidade do crer.
Passar, como diz Paulo, “de fé em fé” (Rm 1,17), de uma fé que se acredita a
uma fé vivida. Será justamente um grande crescimento “voluminoso” de fé dentro
da Igreja que constituirá depois a maior força no anúncio dessa fé ao mundo e a
melhor defesa da sua ortodoxia.
O Padre Henri de
Lubac afirmou que nunca houve na história uma renovação da Igreja que não tenha
sido também um retorno aos Padres. O Concílio Vaticano II não é nenhuma
exceção, do qual estamos nos preparando para comemorar o 50º aniversário. Ele
está cheio de citações dos Padres; muitos dos seus protagonistas foram
Patrólogos. Depois da Escritura, os Padres são a segunda “camada” de terreno
sobre a qual assenta e da qual extrai sua seiva a teologia, a Liturgia, a
exegese bíblica e toda a espiritualidade da Igreja.
Em certas catedrais
góticas da Idade Média vemos algumas estátuas curiosas: personagens com
tamanhos imponentes que sustentam, sentados sobre os ombros, homens muito
pequenininhos. É uma representação em pedra de uma convicção que os teólogos do
tempo formulavam com estas palavras: “Nós somos como anões sentados nos ombros
de gigantes, para que possamos ver coisas e mais longe do que eles, não pela
agudeza do nosso olhar ou por causa da altura do corpo, mas para que sejamos
levados mais alto e elevados à altura gigantesca” [1]. Os gigantes eram,
naturalmente, os Padres da Igreja. E isso nos acontece também hoje.
1.
Atanásio, o defensor da divindade de Cristo
Começamos nossa
análise com Santo Atanásio, Bispo de Alexandria, nascido em 295 e morto em 373.
Poucos Padres deixaram uma marca tão profunda na história da Igreja. Ele é
lembrado por muitas coisas: pela influência que teve na difusão do monaquismo,
graças à sua “Vida de Antônio”, por
ter sido o primeiro a reivindicar a liberdade da Igreja também em um estado
cristão [2], pela sua amizade com os Bispos ocidentais, favorecida pelos
contatos feitos durante o exílio que marca um fortalecimento dos laços entre
Alexandria e Roma...
Mas não é sobre
isso que queremos ocupar-nos. Kierkegaard, no seu Diário, tem um pensamento curioso: “A terminologia dogmática da
Igreja primitiva é como um castelo assombrado, onde repousam num sono profundo
os príncipes e princesas mais graciosos. Basta somente acordá-los, para que
pulem de pé com toda a sua glória” [3]. O dogma que Atanásio nos ajuda a
“acordar” e fazer brilhar em toda a sua glória é o da divindade de Cristo; por
essa sofreu sete vezes o exílio.
O Bispo de
Alexandria está bem convencido de não ter sido o descobridor dessa verdade.
Todo o seu trabalho consistirá, pelo contrário, no mostrar que esta sempre foi
a fé da Igreja; que nova não é a verdade, mas a heresia contrária. O seu
mérito, neste campo, foi aquele de remover aqueles obstáculos que tinham
impedido até agora um reconhecimento pleno e sem reticências da divindade de
Cristo no contexto cultural grego.
Santo Atanásio |
Um desses
obstáculos, talvez o principal, era o hábito grego de definir a essência divina
com o termo agennetos, não-gerado. Como
proclamar que o Verbo é verdadeiro Deus, já que esse é Filho, ou seja, gerado
pelo Pai? Era fácil para Ário estabelecer a equivalência: gerado = feito, ou
seja, ir de gennetos para genetos, e concluir com a célebre frase que
fez explodir o caso: “Que houve um tempo em que o Filho (ainda) não existia”
(em grego, ainda mais sucintamente: en ota ouk en:
houve quando não havia). Isto era o mesmo que fazer de Cristo uma criatura,
embora não “como as outras criaturas”. Atanásio defendeu ao máximo o genitus
non factus de Niceia, “gerado, não criado”. Ele resolve a controvérsia
com a simples observação: “O termo agenetos
foi inventado pelos gregos, que não conheciam o Filho” [4].
Outro
obstáculo cultural para o pleno reconhecimento da divindade de Cristo, menos
sentido no momento mas não menos ativo, era a doutrina de uma divindade
intermediária, o deuteros theos, ligado à criação do mundo
material. A partir de Platão, esse se tornou um dado comum a muitos sistemas religiosos
e filosóficos da Antiguidade. A tentação de assimilar o Filho, “por meio do
qual foram criadas todas as coisas”, a esta entidade intermediária tinha
permanecido serpenteando a especulação cristã, embora não na vida da Igreja. O
resultado era um esquema tripartido do ser: no topo de tudo o Pai não-gerado, depois
dele o Filho (e mais tarde também o Espírito Santo) e por fim as criaturas.
A
definição do homoousios, do “genitus non factus”, remove
para sempre o principal obstáculo do helenismo para o reconhecimento da plena
divindade de Cristo e opera a catarse cristã do universo metafísico dos gregos.
Com esta definição, uma única linha de demarcação é desenhada na vertical do
ser e esta linha não divide o Filho do Pai, mas o Filho das criaturas. Querendo
colocar em uma frase o significado perene da definição de Niceia, podemos
formulá-la assim: em todas as épocas e culturas Cristo deve ser proclamado
“Deus” não em qualquer sentido derivado ou secundário, mas no sentido mais
forte que a palavra “Deus” tem em tal cultura.
Atanásio
fez da manutenção dessa conquista o propósito da sua vida. Quando todos,
imperadores, Bispos e teólogos, oscilavam entre uma rejeição e uma tentativa de
acordo, ele permaneceu inflexível. Houve momentos em que a futura fé comum da
Igreja vivia no coração de um só homem: o seu. Da atitude para com ele se
decidia de que parte cada um estava.
2.
O argumento soteriológico
Porém,
mais importante que insistir na fé de Atanásio na plena divindade de Cristo,
que é bem conhecida e pacífica, é saber o que o motiva no campo de batalha, de
onde lhe vem uma certeza tão absoluta. Não da especulação, mas da vida; mais
especificamente, da reflexão sobre a experiência que a Igreja faz da salvação em
Cristo Jesus.
Atanásio
desloca o interesse da teologia do cosmos ao homem, da cosmologia à
soteriologia. Referindo-se à tradição eclesiástica antes de Orígenes,
especialmente em Irineu, Atanásio valoriza os resultados elaborados na longa
batalha contra o gnosticismo, que o tinha levado a concentrar-se na história da
salvação e da redenção humana. Cristo não se coloca mais, como na época dos
apologistas, entre Deus e o cosmos, mas sim entre Deus e o homem. Que Cristo
seja Mediador não significa que ele esteja entre Deus e o homem (mediação
ontológica, muitas vezes entendida em sentido subordinacionista), mas que une
Deus e o homem. Nele, Deus se faz homem e o homem se faz Deus, ou seja, é
divinizado [5].
Sobre
este pano de fundo, coloca-se a aplicação que Atanásio faz do argumento
soteriológico em função da demonstração da divindade de Cristo. O argumento
soteriológico não nasce com a controvérsia ariana; está presente em todas as
grandes controvérsias cristológicas antigas, da antignóstica àquela
antimonotelita. Na sua formulação clássica se lê: “Quod non est assumptum
non est sanatum“, “O que não é assumido não é salvo” [6]. Isso se adapta
dependendo dos casos, a fim de refutar o erro do momento, que pode ser a
negação da carne humana de Cristo (gnosticismo), ou da sua alma humana
(apolinarismo), ou da sua vontade livre (monotelismo).
No
uso que faz Atanásio, pode-se formular da seguinte forma: “O que não é assumido
por Deus não é salvo”, onde a força está toda naquele breve acréscimo “por
Deus”. A salvação exige que o homem não seja assumido por qualquer intermediário,
mas pelo próprio Deus: “Se o Filho é uma criatura - Atanásio escreve - o homem
permaneceria mortal, não ficando unido a Deus”, e ainda: “O homem não seria
divinizado, se o Verbo que se fez carne não fosse da mesma natureza do Pai” [7].
Atanásio formulou muitos séculos antes de Heidegger, e tomando-a com uma
seriedade muito maior, a ideia de que “só um Deus pode nos salvar,” nur
noch ein gott kann uns retten [8].
As
implicações soteriológicas que Atanásio tira do homoousios de
Niceia são numerosas e profundíssimas. Definir o Filho “consubstancial” ao Pai
significava colocá-lo em um nível tal pelo qual nada absolutamente podia
permanecer fora do seu raio de ação. Significava também enraizar o significado
de Cristo no mesmo fundamento no qual estava enraizado o ser de Cristo, ou seja,
no Pai. Jesus Cristo, quer dizer, não é, na história e no universo, uma segunda
presença aditiva com relação àquela de Deus; pelo contrário, ele é a presença e
a importância mesma do Pai. Escreve Atanásio:
“Bom
como é, o Pai, com o seu Verbo que é também Deus, guia e sustenta o mundo
inteiro, porque a criação, iluminada pela sua direção, pela sua providência e
pela sua ordem, possa persistir no ser... O onipotente e santíssimo Verbo do
Pai, penetrando todas as coisas e chegando em toda parte com a sua força, dá
luz a toda realidade e tudo contém e abraça em si mesmo. Não há nenhum ser que
caia fora do seu domínio. Todas as coisas recebem totalmente dele a vida e dele
são mantidas nela: as criaturas individuais em sua individualidade e o universo
criado em sua totalidade” [9].
Deve-se,
contudo, fazer uma clarificação importante. A divindade de Cristo não é um
“postulado” prático, como é, para Kant, a própria existência de Deus [10]. Não
é um postulado, mas a explicação de um “dado”. Seria um postulado, e, portanto,
uma dedução humana teológica, se se partisse de certa ideia de salvação e se
deduzisse dela a divindade de Cristo como a única capaz de obrar tal salvação;
é, ao invés, a explicação de um dado se se começa, como faz Atanásio, a partir
de uma experiência de salvação e se demonstra como essa não poderia existir se
Cristo não fosse Deus. Não é sobre a salvação que se fundamenta a divindade de
Cristo, mas é sobre a divindade de Cristo que se fundamenta a salvação.
3.
Corde creditur!
Mas
é hora de voltar-nos a nós mesmos para ver o que podemos aprender hoje da épica
batalha suportada por Atanásio. A divindade de Cristo é hoje o verdadeiro “articulus
stantis et cadentis Ecclesiae”, a verdade com a qual a Igreja está de pé ou
cai. Se em outros tempos, quando a divindade de Cristo era pacificamente aceita
por todos os cristãos, se podia pensar que tal “artigo” fosse a “justificação
gratuita por fé”, agora não é mais assim. Podemos dizer que o problema vital
para o homem de hoje é estabelecer a forma como o pecador é justificado, quando
nem mesmo se acredita mais numa necessidade de justificação, ou se está
convencido de encontrá-la em si mesmo? “Eu mesmo hoje me acuso - Sartre faz
gritar do palco uma das suas personagens - e só eu posso também absolver-me, eu
o homem. Se Deus existe, o homem não é nada” [11].
A
divindade de Cristo é a pedra angular que suporta os dois principais mistérios
da fé cristã: a Trindade e a Encarnação. São como duas portas que se abrem e se
fecham juntas. Descartada aquela pedra, todo o edifício da fé cristã desmorona
sobre si mesmo: se o Filho não é Deus, de quem está formada a Trindade? Tinha-o
denunciado claramente Santo Atanásio, escrevendo contra os arianos:
“Se
o Verbo não existe junto com o Pai desde toda a eternidade, então não existe
uma Trindade eterna, mas primeiro houve a unidade e depois, com o passar do
tempo, por acréscimo, começou a ser a Trindade” [12].
Uma
ideia - esta da Trindade que se forma, “por acréscimo” - que voltou a ser proposta,
em anos não muito distantes, por algum teólogo que aplicou à Trindade o esquema
dialético do devir de Hegel.
Bem
antes de Atanásio, São João tinha estabelecido esse vínculo entre os dois
mistérios: “Todo aquele que nega o Filho, também não possui o Pai. O que
confessa o Filho também possui o Pai (1Jo
2,23). As duas coisas permanecem ou caem juntas, mas se caem juntas então
devemos infelizmente dizer com Paulo que nós cristãos “somos os mais dignos de
compaixão de todos os homens” (1Cor
15,19).
Nós
devemos deixar-nos investir plenamente daquela pergunta tão respeitosa, mas tão
direta de Jesus: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15); e daquela ainda mais pessoal: “Acreditas?” (cf. Jo
11,26). Acreditas realmente? Acreditas com todo o coração? São Paulo diz que
“quem crê de coração obtém a justiça, e quem confessa com a boca, a salvação” (Rm 10,10). No passado, a profissão da fé
verdadeira, ou seja, o segundo momento deste processo, tem tido às vezes tanta
importância que deixou na sombra aquele primeiro momento que é o mais
importante e que se desenvolve nas profundidades recônditas do coração. “É da
raiz do coração que se eleva a fé”, exclama Santo Agostinho [13].
Será
talvez necessário destruir em nós, que cremos, e em nós homens de Igreja, a
falsa persuasão de já crer, de estar em dia no que respeita à fé. É necessário
provocar a dúvida - obviamente não de Jesus, mas de nós mesmos - para então
podermos começar a busca de uma fé mais autêntica. Quem sabe não seja um bem,
por um pouco de tempo, não querer demonstrar nada a ninguém, mas interiorizar a
fé, redescobrir as suas raízes no coração! Jesus perguntou a Pedro três vezes:
“Me amas?” (Jo 21,15-17). Sabia que
na primeira e na segunda vez a resposta tinha saído muito rápida, para ser
aquela verdadeira. Finalmente, na terceira vez, Pedro compreendeu. Também a
questão da fé deve ser colocada assim para nós; por três vezes,
insistentemente, até que nós nos demos conta e entremos na verdade. “Crês? Tu
crês? Crês realmente?”. Talvez no final responderemos: “Não, Senhor, eu
realmente não creio com todo o coração e com toda a alma. Aumenta a minha fé!”.
Atanásio
nos lembra, entretanto, outra importante verdade: que a fé na divindade de
Cristo não é possível se não se faz também a experiência da salvação operada
por Cristo. Sem esta, a divindade de Cristo se torna facilmente uma ideia, uma
tese, e sabemos que a uma ideia é sempre possível opor outra ideia, e a uma
tese, outra tese. Só a uma vida - diziam os Padres do deserto - não há nada que
se possa opor.
A
experiência da salvação é feita através da leitura da Palavra de Deus (e
tomando-a por aquilo que é: Palavra de Deus!), administrando e recebendo os
sacramentos, especialmente a Eucaristia, lugar privilegiado da presença do
Ressuscitado, exercitando os carismas, mantendo um contato com a vida da
comunidade dos que creem. Evágrio, pregando no IV século, formulou esta célebre
frase: “Se és teólogo, rezarás realmente, e se rezas realmente, serás teólogo”
[14].
Atanásio
impediu que a investigação teológica permanecesse prisioneira da especulação
filosófica das várias “escolas” e se tornasse ao invés disso aprofundamento do
dado revelado na linha da Tradição. Um eminente historiador protestante
reconheceu em Atanásio um mérito particular neste campo: “Graças a ele -
escreveu - a fé em Cristo permaneceu rigorosa fé em Deus e, de acordo com sua
natureza, totalmente distinta de todas as outras formas - pagãs, filosóficas,
idealistas - de fé... Com ele, a Igreja tornou-se novamente instituição de
salvação, ou seja, no sentido estrito do termo, ‘Igreja’, cujo conteúdo próprio
e determinante foi constituído pela pregação de Cristo” [15].
Tudo
isso nos desafia hoje de maneira especial, depois que a teologia foi definida
como uma “ciência” e é professada em círculos acadêmicos, muito mais
descomprometida da vida da comunidade dos que creem do que era, na época de
Atanásio, a escola teológica, chamada Didaskaleion,
florescida em Alexandria por obra de Clemente e de Orígenes. A ciência exige do
pesquisador que “domine” a sua matéria e que seja “neutro” diante do objeto da
própria ciência; mas como “dominar” aquele que pouco antes tens adorado como o
teu Deus? Como manter-se neutro quanto ao objeto quando esse objeto é Cristo?
Foi um dos motivos que me levaram, em algum momento da minha vida, a abandonar
o ensino acadêmico para dedicar-me a tempo integral ao ministério da Palavra.
Lembro-me do pensamento que surgia em mim, depois de participar de congressos ou
debates bíblicos e teológicos, especialmente no exterior: “Já que o mundo
universitário voltou as costas para Jesus Cristo, eu voltarei as costas para o
mundo universitário”.
A
solução para este problema não é abolir o estudo acadêmico da teologia. A
situação italiana nos faz ver os efeitos negativos produzidos pela ausência de
faculdades teológicas nas universidades estaduais. A cultura católica e
religiosa no geral foi empurrada a um gueto; nas livrarias seculares não se
encontra nenhum livro religioso, só se for de algum tema esotérico ou de moda.
O diálogo entre teologia e conhecimento humano, científico e filosófico, se
realiza “à distância”, e não é a mesma coisa. Falando em ambientes
universitários, eu digo muitas vezes para não seguir o meu exemplo (que
continua a ser uma escolha pessoal), mas de valorizar ao máximo o privilégio de
que gozam, buscando se for o caso tentar acoplar ao estudo e ao ensino também
algumas atividades pastorais compatíveis com ele.
Se
não se pode e não se deve tirar a teologia dos ambientes acadêmicos, há, porém,
uma coisa que os teólogos acadêmicos podem fazer e é serem muito humildes para
reconhecer o seu limite. A sua não é a única, nem a mais alta expressão da fé.
O Padre Henri de Lubac escreveu: “O ministério da pregação não é a vulgarização
de um ensinamento doutrinário em forma mais abstrata, que seria anterior e
superior a ele. É, pelo contrário, o mesmo ensinamento doutrinal na sua forma
mais alta. Isto era verdade da primeira pregação cristã, aquela dos Apóstolos,
e é também verdadeira da pregação daqueles que lhes sucedem na Igreja: os
Padres, os Doutores e os nossos Pastores no tempo presente” [16]. Hans Urs von
Balthasar, por sua vez, fala da “missão da pregação na Igreja, à qual está sujeita
a mesma missão teológica” [17].
4.
“Coragem, eu estou aqui!”
Voltemos,
para concluir, à divindade de Cristo. Ela ilumina toda a vida cristã.
Sem
a fé na divindade de Cristo:
Deus
está longe;
Cristo
permanece no seu tempo;
o
Evangelho é um dos muitos livros religiosos da humanidade;
a
Igreja, uma simples instituição;
a
evangelização, uma propaganda;
a
Liturgia, uma rememoração de um passado que não existe mais;
a
moral cristã, um peso que é tudo, menos leve, e um jugo que é tudo, menos
suave.
Mas
com a fé na divindade de Cristo:
Deus
é Emanuel, o Deus conosco;
Cristo
é o Ressuscitado que vive no Espírito;
o
Evangelho, a palavra definitiva de Deus para toda a humanidade;
a
Igreja, sacramento universal de salvação;
a
evangelização, partilha de um dom;
a Liturgia,
encontro alegre com o Ressuscitado;
a
vida presente, o começo da eternidade.
De
fato foi escrito: “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna” (Jo 3,36). A fé na divindade de Cristo
nos é particularmente indispensável neste momento para manter viva a esperança
sobre o futuro da Igreja e do mundo. Contra os gnósticos, que negavam a
verdadeira humanidade de Cristo, Tertuliano elevou, no seu tempo, o grito: “Parce
unicae spei totius orbis“, “não tirem do mundo a sua única esperança!”. Nós
devemos dizê-lo hoje àqueles que se recusam a acreditar na divindade de Cristo.
Aos
Apóstolos, depois de ter acalmado a tempestade, Jesus dirigiu uma palavra que
repete hoje aos seus sucessores: “Coragem! Sou eu, não tenhais medo” (Mc 6,50).
Notas:
[1] Bernardo de Chartres, in:
Giovanni di Salisbury, Metalogicon,
III, 4 - Corpus Chr. Cont. Med., 98, p. 116.
[2] Atanásio, Historia
Arianorum, 52,3: “O que o Imperador tem a ver com a Igreja?”.
[3] S. Kierkegaard, Diario,
II A 110 (Trad. it. di C. Fabro, Brescia, 1962, n. 196; Tradução nossa para o
português).
[4] Atanásio, De
decretis Nicenae synodi, 31.
[5] idem, De incarnatione, 54; cf. Irineu, Adv. haer. V, praef.
[6] Gregório Nazianzeno, Carta
Cledonio, PG 37, 181.
[7] Atanásio, Contra
Arianos, II 69 e I 70.
[8] Antwort. Martin
Heidegger im Gespräch, Pfullingen 1988.
[9] Atanásio, Contra
gentes, 41-42.
[10] I. Kant, Crítica
da razão prática, cap. III, VI.
[11] Jean-Paul Sartre, Il
diavolo e il buon Dio, X, 4, Gallimard, Parigi, 1951, p. 267s.
[12] Atanásio, Contra
Arianos, I, 17-18; PG 26, 48.
[13] Agostinho, Comentário
ao Evangelho de João, 26,2; PL 35,1607.
[14] Evágrio, De
oratione, 61; PG 79, 1165.
[15] H. von Campenhausen, I Padri greci, Brescia, 1967, pp. 103-104.
[16] H. de Lubac, Exégèse
médièvale, I, 2, Parigi, 1959, p. 670.
[17] H. U. von Balthasar, La preghiera contemplativa, citado
também por H. de Lubac.
[18] Tertuliano, De carne Christi, 5, 3; CC 2, p. 881.
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