Após suas meditações sobre quatro Doutores da Igreja do Oriente em 2012, o Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia, dedicou outras quatro meditações aos Doutores da Igreja do Ocidente durante a Quaresma de 2014 (após uma meditação introdutória sobre a própria Quaresma, que publicaremos em breve).
Começamos este percurso com Santo Agostinho e sua reflexão sobre o mistério da Igreja (para acessar a lista de todos os atuais Doutores da Igreja e suas celebrações, clique aqui).
Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap
II
pregação de Quaresma
21
de março de 2014
Santo
Agostinho: “Creio na Igreja una e santa”
Na meditação introdutória, na semana passada, refletimos
sobre o significado da Quaresma como um tempo para irmos com Jesus até o
deserto, em jejum de alimentos, palavras e imagens, para aprender a superar as
tentações e, sobretudo, crescer na intimidade com Deus.
Nas quatro pregações que restam, dando continuidade à
reflexão iniciada na Quaresma de 2012 com os Padres gregos, frequentaremos
agora a escola de quatro grandes Doutores da Igreja latina: Agostinho,
Ambrósio, Leão Magno e Gregório Magno, para ver o que cada um nos diz, hoje,
sobre a verdade da fé que mais particularmente defendeu: respectivamente, a
natureza da Igreja, a presença real de Cristo na Eucaristia, o dogma
cristológico de Calcedônia e a inteligência espiritual das Escrituras.
O objetivo é redescobrir, por trás desses grandes Padres, a
riqueza, a beleza e a felicidade de crer; passar, como diz São Paulo, “de fé em
fé” (Rm 1,17), de uma fé acreditada
para uma fé vivida. Teremos, assim, um aumento do “volume” de fé dentro da
Igreja para constituir depois a força maior do seu anúncio ao mundo.
O título do ciclo vem de um pensamento caro aos teólogos
medievais: “Nós”, dizia Bernardo de Chartres, “somos como anões sentados em
ombros de gigantes, de modo a vermos mais coisas e mais longe do que eles, não
pela agudeza do nosso olhar nem pela altura do nosso corpo, mas porque somos
carregados para o alto e elevados por eles a uma altura gigantesca” [1]. Este
pensamento encontrou expressão artística em certas estátuas e vitrais de
catedrais góticas da Idade Média, em que são representados personagens de
estatura imponente que carregam, sentados sobre seus ombros, homens pequenos,
quase anões. Os gigantes eram para eles, como são para nós, os Padres da
Igreja.
Depois das lições de Atanásio, Basílio de Cesareia, Gregório
de Nazianzo e Gregório de Nissa, respectivamente, sobre a divindade de Cristo,
sobre o Espírito Santo, sobre a Trindade e sobre o conhecimento de Deus,
podia-se ter a impressão de que restasse muito pouco a ser feito pelos Padres
latinos na edificação do dogma cristão. Um olhar superficial para a história da
teologia nos convence imediatamente do contrário.
Motivados pela cultura a que pertenciam, favorecidos pela
sua forte têmpera especulativa e condicionados pelas heresias que eram forçados
a combater (arianismo, apolinarismo, nestorianismo, monofisismo), os Padres
gregos tinham se concentrado principalmente nos aspectos ontológicos do dogma:
a divindade de Cristo, as suas duas naturezas e o modo da sua união, a unidade
e a trindade de Deus. Os temas mais caros a Paulo, a justificação, a relação
entre lei e Evangelho, a Igreja como corpo de Cristo, foram deixados à margem
da sua atenção ou tratados en
passant. Aos seus escopos respondia muito melhor João, com a sua ênfase na
Encarnação, do que Paulo, que põe no centro de tudo o Mistério Pascal, isto é,
o agir, mais do que o ser de Cristo.
A índole dos latinos, mais inclinada, excetuando-se
Agostinho, a se ocupar de problemas específicos, jurídicos e organizacionais,
do que de questões especulativas, unida ao surgimento de novas heresias, como o
donatismo e o pelagianismo, estimulará uma reflexão nova e original sobre os
temas paulinos da graça, da Igreja, dos sacramentos e das Escrituras. São os
tempos sobre os quais queremos refletir nesta pregação quaresmal.
2.
O que é a Igreja?
Comecemos a nossa resenha pelo maior dos Padres latinos, Agostinho.
O Doutor de Hipona deixou a sua marca em quase todas as áreas da teologia, mas
especialmente em duas: a da graça e a da Igreja; a primeira, fruto da sua luta
contra o pelagianismo; a segunda, de sua luta contra o donatismo.
O interesse pela doutrina de Santo Agostinho sobre a graça
prevaleceu, do século XVI em diante, tanto no âmbito protestante (ao qual estão
ligados Lutero, com a doutrina da justificação, e Calvino, com a da
predestinação), quanto no campo católico, por causa das controvérsias levantadas
por Jansen e Baio [2]. Já o interesse pelas suas doutrinas eclesiais prevalece
em nossos dias, porque o Concílio Vaticano II fez da Igreja o seu tema central
e porque o movimento ecumênico tem na ideia de Igreja a questão crucial a ser
resolvida. Procurando ajuda e inspiração nos Padres da fé para o hoje da fé,
vamos nos ocupar desta segunda área de interesse de Santo Agostinho, que é a
Igreja.
Santo Agostinho (Philippe de Champaigne - Detalhe) |
A Igreja não era um assunto desconhecido para os Padres
gregos nem para os escritores latinos anteriores a Agostinho (Cipriano,
Hilário, Ambrósio), mas as suas afirmações se limitavam principalmente a
repetir e comentar afirmações e imagens das Escrituras. A Igreja é o novo povo
de Deus; a ela é prometida a indefectibilidade; ela é “a coluna e a base da
verdade”; o Espírito Santo é o seu mestre supremo; a Igreja é “católica” porque
se estende a todos os povos, ensina todos os dogmas e possui todos os carismas;
na esteira de Paulo, fala-se da Igreja como do mistério da nossa incorporação a
Cristo por meio do Batismo e do dom do Espírito Santo; ela nasceu do lado
aberto de Cristo na cruz, como Eva do lado de Adão adormecido [3].
Tudo isso, porém, era dito ocasionalmente; a Igreja ainda
não tinha entrado em discussão. Quem será forçado a tratar dela é justamente Agostinho,
que, durante quase toda a vida, teve de lutar contra o cisma dos donatistas.
Talvez ninguém se lembrasse hoje daquela seita norte-africana se ela não
tivesse sido a ocasião de origem do que hoje chamamos de eclesiologia, ou seja,
um discurso refletido sobre o que é a Igreja no desígnio de Deus, a sua
natureza e o seu funcionamento.
Por volta de 311, certo Donato, Bispo da Numídia, se recusou
a receber novamente na comunhão eclesial aqueles que durante a perseguição de
Diocleciano tinham entregado os livros sagrados às autoridades estatais,
renegando a fé para salvar a vida. Em 311, foi eleito Bispo de Cartago certo
Ceciliano, acusado, erradamente segundo os católicos, de ter traído a fé
durante a perseguição de Diocleciano. Opôs-se a esta nomeação um grupo de
setenta Bispos do norte africano, liderados por Donato. Eles depuseram
Ceciliano e elegeram em seu lugar Donato. Excomungado pelo Papa Milcíades em
313, ele permaneceu no seu posto, provocando um cisma que criou no norte da
África uma Igreja paralela à católica, mantida até a invasão dos vândalos, um
século depois.
Durante a polêmica, eles tentaram justificar a sua posição
com argumentos teológicos. Foi para refutá-los que Agostinho desenvolveu, pouco
a pouco, a sua doutrina da Igreja. Isto aconteceu em dois contextos diferentes:
nas obras escritas diretamente contra os donatistas e nos seus comentários à
Escritura e discursos ao povo. É importante distinguir entre esses dois
contextos porque, conforme cada um, Agostinho insistirá mais em alguns aspectos
da Igreja do que em outros e só a partir do conjunto é que pode ser entendida a
sua doutrina completa. Vamos ver, portanto, brevemente, quais são as conclusões
a que o santo chega em cada um dos dois contextos, a começar pelo diretamente
antidonatista.
a) A Igreja, comunhão dos sacramentos e sociedade dos santos
O cisma donatista partiu de uma convicção: não pode
transmitir a graça um ministro que não a possui; os sacramentos administrados
desta forma seriam desprovidos de qualquer efeito. Este argumento, que no
início foi aplicado à ordenação do Bispo Ceciliano, acabou estendido
rapidamente aos outros sacramentos, em particular ao Batismo. Com isto, os
donatistas justificavam a sua separação dos católicos e a prática de rebatizar
quem vinha das suas fileiras.
Em resposta, Agostinho desenvolve um princípio que se
tornará uma conquista perene da teologia e que lança as bases de um futuro
tratado de sacramentis: a distinção
entre potestas e ministerium, ou seja, entre a causa da graça e o seu ministro. A
graça conferida pelos sacramentos é obra exclusiva de Deus e de Cristo; o
ministro não passa de um instrumento: “Pedro batiza, é Cristo quem batiza; João
batiza, é Cristo quem batiza; Judas batiza, é Cristo quem batiza” [4]. A
validade e eficácia dos sacramentos não são impedidas pelo ministro indigno:
uma verdade da qual, bem sabemos, o povo cristão precisa se lembrar também hoje...
Neutralizada, assim, a principal arma do adversário,
Agostinho pode elaborar a sua grandiosa visão da Igreja mediante algumas
distinções fundamentais. A primeira é entre a Igreja presente ou terrestre e a
Igreja celestial ou futura. Só esta segunda será uma Igreja de todos santos e
apenas santos; a Igreja do tempo presente será sempre o campo em que se
misturam o trigo e o joio, a rede que recolhe peixes bons e peixes ruins, ou
seja, santos e pecadores.
Dentro da Igreja em seu estágio terreno, Agostinho opera
outra distinção: entre a comunhão dos sacramentos (communio sacramentorum) e a sociedade dos santos (societas sanctorum). A primeira une
visivelmente entre si todos aqueles que participam dos mesmos sinais externos:
os sacramentos, a Escritura, a autoridade; a segunda une entre si todos e
apenas aqueles que, além dos sinais, também têm em comum a realidade escondida
nos sinais (res sacramentorum), que é
o Espírito Santo, a graça, a caridade.
Dado que na terra sempre será impossível saber com certeza
quem possui o Espírito Santo e a graça, e, mais ainda, se eles perseverarão
nesse estado até o fim, Agostinho acaba identificando a verdadeira e definitiva
comunidade dos santos com a Igreja celeste dos predestinados. “Quantas ovelhas
que hoje estão dentro estarão fora, e quantos lobos que hoje estão fora estarão
dentro!” [5].
A novidade, neste ponto, mesmo no tocante a Cipriano, é que,
enquanto este fazia consistir a unidade da Igreja em algo externo e visível, na
concórdia de todos os Bispos entre si, Agostinho a faz consistir em algo
interno: o Espírito Santo. A unidade da Igreja é operada, assim, pelo mesmo que
opera a unidade na Trindade: “O Pai e o Filho quiseram que estivéssemos unidos
entre nós e com eles por meio do mesmo vínculo que os une, o amor, que é o
Espírito Santo” [6]. Ele executa na Igreja a mesma função que exerce a alma em
nosso corpo natural: ser o seu princípio vital e unificador. “O que a alma é
para o corpo humano, o Espírito Santo é para o Corpo de Cristo, que é a Igreja”
[7].
A plena pertença à Igreja exige as duas coisas juntas, a
comunhão visível dos sinais sacramentais e a comunhão invisível da graça. Esta,
no entanto, admite graus, e por isso não quer dizer que se deva estar
necessariamente dentro ou fora. Pode-se estar em parte dentro e em parte fora.
Há uma pertença exterior, ou sinais sacramentais, em que se situam os
cismáticos donatistas e os próprios maus católicos, e uma comunhão plena e
total. A primeira consiste em ter o sinal externo da graça (sacramentum), sem receber, porém, a
realidade interior produzida por eles (res
sacramenti), ou em recebê-la, mas para a própria condenação, não para a própria
salvação, como no caso do Batismo administrado pelos cismáticos ou da
Eucaristia recebida indignamente pelos católicos.
b) A Igreja, Corpo de Cristo animado pelo Espírito Santo
Nos escritos exegéticos e nos discursos ao povo, encontramos
esses mesmos princípios básicos da eclesiologia; mas, menos pressionado pela
controvérsia e falando, por assim dizer, em família, Agostinho pode insistir
mais em aspectos interiores e espirituais da Igreja, mais caros a ele. Neles, a
Igreja é apresentada, com tons muitas vezes elevados e comovidos, como o corpo
de Cristo (ainda falta o adjetivo “místico”, que será adicionado mais tarde),
animado pelo Espírito Santo, tão afim ao corpo eucarístico a ponto de, às
vezes, igualar-se quase totalmente a ele. Ouçamos o que ouviram os seus fiéis,
numa festa de Pentecostes, sobre esta questão:
“Se queres entender o corpo de Cristo, ouve o Apóstolo que
diz aos fiéis: ‘Vós sois o corpo de Cristo e os seus membros’ (1Cor 12,27). Se vós sois o corpo e os
membros de Cristo, na mesa do Senhor está o vosso mistério: recebei o vosso
mistério. Ao que sois, respondeis ‘Amém’ e, ao respondê-lo, o confirmais. É
dito a vós: ‘Corpo de Cristo’, e respondeis: ‘Amém’. Sê membro do corpo de
Cristo, para o teu amém ser verdadeiro... Sede o que vedes e recebei o que
sois” [8].
O nexo entre os “dois corpos” de Cristo se fundamenta, para
Agostinho, na singular correspondência simbólica entre o devir de um e o
formar-se do outro. O pão da Eucaristia é obtido da massa de muitos grãos de
trigo e o vinho de uma multidão de grãos de uva: assim a Igreja é formada por
muitas pessoas, reunidas e amalgamadas pela caridade que é o Espírito Santo [9].
Como o trigo espalhado pelas colinas foi primeiro colhido, depois moído,
misturado com água e assado no forno, assim os fiéis esparsos pelo mundo foram
reunidos pela Palavra de Deus, moídos pelas penitências e exorcismos que
precedem o Batismo, imersos na água do Batismo e passados pelo fogo do
Espírito. Mesmo em relação à Igreja, deve-se dizer que o sacramento “significando causat”: significando a
união de várias pessoas em uma, a Eucaristia a realiza, a causa. Neste sentido,
podemos dizer que “a Eucaristia faz a Igreja”.
3.
Atualidade da eclesiologia de Agostinho
Vamos agora ver como as ideias de Agostinho sobre a Igreja
podem ajudar a iluminar os problemas que ela enfrenta em nosso tempo. Quero me
concentrar em especial na importância da eclesiologia de Agostinho para o
diálogo ecumênico. Uma circunstância torna esta escolha particularmente
oportuna. O mundo cristão se prepara para celebrar o quinto centenário da
Reforma Protestante (2017). Já começaram a circular declarações e documentos conjuntos
em vista do evento [10]. É vital, para toda a Igreja, não estragarmos esta
ocasião permanecendo prisioneiros do passado, tentando apurar, talvez com maior
objetividade e serenidade, as razões e as culpas de um e de outro, mas sim
darmos um salto de qualidade, como ocorre na eclusa de um rio ou de um canal,
que permite que os navios continuem a sua navegação num patamar mais elevado.
A situação do mundo, da Igreja e da teologia mudou desde
aquela época. Trata-se de recomeçar a partir da pessoa de Jesus, de ajudar
humildemente os nossos contemporâneos a descobrir a pessoa de Cristo. Devemos
nos remeter ao tempo dos Apóstolos: eles tinham diante de si um mundo
pré-cristão; nós temos diante de nós um mundo em grande parte pós-cristão.
Quando Paulo quis resumir em uma frase a essência da mensagem cristã, ele não
disse “Anunciamos esta ou aquela doutrina”, mas “Nós proclamamos Cristo, e
Cristo crucificado” (1Cor 1,23). E
ainda: “Nós proclamamos Jesus Cristo, o Senhor” (2Cor 4,5).
Isto não significa ignorar o grande enriquecimento teológico
e espiritual produzido pela Reforma, nem querer retornar ao ponto de antes;
significa, em vez disso, deixar que toda a cristandade se beneficie das suas
conquistas, uma vez libertadas de certas forçações devidas ao clima polêmico do
momento e às posteriores controvérsias. A justificação gratuita pela fé, por
exemplo, deveria ser anunciada hoje, e com mais força do que nunca, mas não em
oposição às boas obras, o que é uma questão superada, e sim em oposição à
pretensão do homem moderno de se salvar sozinho, sem necessidade nem de Deus
nem de Cristo. Se vivesse hoje, sou convencido que isto seria o modo com o qual
Lutero pregasse a justificação por fé.
Vamos ver como a teologia de Agostinho pode nos ajudar neste
esforço para superar as barreiras seculares. O caminho a percorrer hoje, em
certo sentido, segue na direção oposta à que foi tomada por ele contra os
donatistas. Na época, era preciso ir da comunhão dos sacramentos à comunhão na
graça do Espírito Santo e na caridade, mas hoje temos que ir da comunhão
espiritual da caridade à plena comunhão, inclusive nos sacramentos, entre os
quais, em primeiro lugar, a Eucaristia.
A distinção entre os dois níveis de realização da verdadeira
Igreja, o externo, dos sinais, e o interno, da graça, permite que Agostinho
formule um princípio que seria impensável antes dele: “Pode haver algo na
Igreja católica que não seja católico, e fora da Igreja católica algo católico”
[11]. Os dois aspectos da Igreja, o visível e institucional e o invisível e
espiritual, não podem ser separados. Isso é verdade e foi reiterado por Pio XII
na Mystici Corporis e pelo Concílio
Vaticano II na Lumen Gentium, mas,
devido às separações históricas e ao pecado humano, até que se realize a sua
correspondência plena, não podemos dar mais importância à comunidade
institucional do que à espiritual.
Para mim, isto levanta uma séria indagação. Posso eu, como
católico, me sentir mais em comunhão com a multidão dos que, tendo sido
batizados na minha própria Igreja, se desinteressam completamente de Cristo e
da Igreja, ou se interessam por ela apenas para falar mal, do que me sinto em
comunhão com as fileiras daqueles que, apesar de pertencer a outras confissões
cristãs, acreditam nas mesmas verdades fundamentais em que eu creio, amam Jesus
Cristo até dar a vida por Ele, difundem o Evangelho, se esforçam para aliviar a
pobreza no mundo e possuem os mesmos dons do Espírito Santo que nós? As
perseguições, tão frequentes hoje em certas partes do mundo, não fazem
distinção: os perseguidores não queimam igrejas nem matam pessoas porque elas
são católicas ou protestantes, mas porque são cristãs. Para eles, nós já somos
“uma coisa só”!
Esta, obviamente, é uma pergunta que deveria ser feita
também pelos cristãos das outras igrejas a propósito dos católicos, e, graças a
Deus, é precisamente isto o que está acontecendo de uma forma oculta, porém
maior do que as notícias nos deixam vislumbrar. Um dia, tenho certeza,
ficaremos admirados, ou outros ficarão, por não termos notado antes o que o
Espírito Santo estava realizando entre os cristãos do nosso tempo, à margem da
oficialidade. Fora da Igreja católica há muitíssimos cristãos que olham para
ela com olhos novos e começam a reconhecer nela as suas próprias raízes.
A intuição mais nova e fecunda de Agostinho sobre a Igreja,
como vimos, foi a de identificar o princípio essencial da sua unidade no
Espírito, mais do que na comunhão horizontal dos Bispos uns com os outros e dos
Bispos com o Papa de Roma. Como a unidade do corpo humano é dada pela alma que
vivifica e move todos os seus membros, assim é a unidade do corpo de Cristo.
Esta unidade é um fato místico, mais do que uma realidade que se expressa
social e visivelmente em perspectiva externa. É o reflexo da unidade perfeita
que existe entre o Pai e o Filho por obra do Espírito. Foi Jesus quem fixou de
uma vez para sempre este fundamento místico da unidade quando disse: “Que todos
sejam um, como nós somos um” (Jo 17,22).
A unidade essencial na doutrina e na disciplina será o fruto desta unidade
mística e espiritual, nunca a sua causa.
Os passos mais concretos para a unidade não são dados,
portanto, em torno de uma mesa ou nas declarações conjuntas (embora tudo isto
seja importante); são dados quando os crentes de diferentes confissões
proclamam juntos, em acordo fraterno, o Senhor Jesus, compartilhando cada um o
próprio carisma e reconhecendo-se irmãos em Cristo.
4.
Membros do corpo de Cristo, movidos pelo Espírito!
Em seus discursos ao povo, Agostinho nunca expõe as suas
ideias sobre a Igreja sem apresentar imediatamente as consequências práticas
para a vida cotidiana dos fiéis. E é isto o que nós também queremos fazer antes
de concluir a nossa meditação, como se nos colocássemos entre as fileiras dos
seus ouvintes de então.
A imagem da Igreja como corpo de Cristo não é uma novidade
de Agostinho. O que é novo nele são as conclusões práticas para a vida dos
crentes. Uma delas é que não temos mais razão para nos olharmos com inveja e
com ciúme. O que eu não tenho, mas os outros têm, também é meu. Ouvimos o Apóstolo
elencar todos aqueles maravilhosos carismas: apostolado, profecia, curas... e
talvez nos entristeçamos pensando que não temos nenhum deles. Mas, cuidado,
alerta Agostinho: “Se tu amas, o que tens não é pouco. Se de fato amas a
unidade, tudo o que nela é possuído por alguém é também possuído por ti!
Expulsa a inveja e será teu o que é meu, e, se eu expulsar a inveja, será meu o
que tu possuis” [12].
Somente o olho, no corpo, tem a capacidade de ver. Mas o
olho, por acaso, enxerga apenas para si? Não é todo o corpo que se beneficia da
sua capacidade de ver? Só a mão age, mas ela age, acaso, apenas para si mesma?
Se uma pedra está prestes a atingir o olho, a mão por acaso permanece imóvel,
dizendo que o golpe, afinal, não é contra ela? O mesmo acontece no corpo de
Cristo: o que cada membro é e faz, Ele é e faz para todos!
Eis por que a caridade é o “caminho mais excelente” (1Cor 12,31): ela me faz amar a Igreja,
ou a comunidade em que vivo, e, na unidade, todos os carismas, e não apenas
alguns, apenas os meus. E há mais: se amas a unidade mais do que eu a amo, o
carisma que eu possuo é mais teu do que meu. Suponhamos que eu tenha o carisma
de evangelizar; eu posso me comprazer ou me vangloriar dele, e, assim, me torno
“um címbalo que retine” (1Cor 13,1);
o meu carisma “de nada me aproveita”, ao passo que o ouvinte não deixa de se
beneficiar, apesar do meu pecado. A caridade multiplica realmente os dons; ela
faz do carisma de um, o carisma de todos.
“Fazes parte do corpo de Cristo? Amas a unidade da Igreja?”,
perguntava Agostinho aos seus fiéis. “Então, quando um pagão te perguntar por
que não falas todas as línguas, se está escrito que aqueles que receberam o
Espírito Santo falam todas as línguas, responde sem hesitar: ‘É claro que falo
todas as línguas! Eu pertenço ao corpo da Igreja, que fala todas as línguas e
em todas as línguas proclama as grandes obras de Deus’” [13].
Quando formos capazes de aplicar esta verdade não só às
relações dentro da comunidade em que vivemos e à nossa Igreja, mas também às
relações entre uma Igreja cristã e a outra, naquele dia a unidade dos cristãos
será praticamente um fato consumado.
Acolhamos a exortação com que Agostinho fecha muitos dos
seus discursos sobre a Igreja: “Se quiserdes, pois, experimentar o Espírito
Santo, mantenha o amor, amai a verdade e alcançareis a eternidade. Amém” [14].
Notas:
[1] Bernardo de Chartres, coment. João de Salisbury, Metalogicon, III, 4 (Corpus Chr. Cont.
Med., 98, p. 116).
[2] A este âmbito da influência de Agostinho é dedicado o
livro de H. de Lubac, Augustinisme et
théologie moderne, Paris, Aubier, 1965.
[3] cf. J.N.D.
Kelly, Early Christian Doctrines, London,
1968, cap. XV.
[4] Agostinho, Contra
Epist. Parmeniani II,15,34; cf. todo o Sermo
266.
[5] idem, In Ioh. Evang. 45,12: “Quam multae oves foris, quam multi lupi
intus!”.
[6] idem, Discursos, 71, 12, 18 (PL 38,454).
[7] idem, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
[8] idem, Sermo 272
(PL 38, 1247 em diante).
[9] ibid.
[10] cf. Documento
Conjunto Católico-luterano “Do conflito à
comunhão”.
[11] Agostinho, De
Baptismo, VII, 39, 77.
[12] idem, Tratados sobre João, 32,8.
[13] cf. Discursos, 269, 1.2 (PL 38, 1235 s.).
[14] idem, Sermo 267, 4 (PL 38, 1231).
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