Prosseguindo
com suas Catequeses sobre os salmos e o cântico das Laudes, o Papa João Paulo
II refletiu sobre os textos da quarta-feira da I semana do Saltério nos dias 22
de agosto (Sl 35), 29 de agosto (Jt 16,1-2.13-15) e 05 de setembro de 2001 (Sl
46).
22 de agosto de 2001
1. Cada vez que tem início
um dia de trabalho e de relacionamentos humanos, duas são as atitudes fundamentais
que cada homem pode assumir: escolher o bem, ou então ceder ao mal. O Salmo 35,
que acabamos de ouvir, apresenta precisamente estes dois perfis antitéticos.
Por um lado, há quem desde o seu “leito”, de onde está para se levantar, medita
projetos iníquos; por outro, ao contrário, há quem procura a luz de Deus,
“fonte da vida” (v. 10). O abismo da malícia do ímpio opõe-se ao abismo da
bondade de Deus, nascente viva que sacia e luz que ilumina o fiel.
Por isso, dois são os tipos
de homem descritos pela oração sálmica, que acaba de ser proclamada, e que a Liturgia
das Horas nos propõe para
as Laudes de quarta-feira da I semana.
"Pois em vós está a fonte da vida" (Sl 35,10) (Batistério do Santuário Nacional de Aparecida) |
2. O primeiro retrato que o salmista nos apresenta é o do pecador (vv. 2-5). No seu interior, como diz o original hebraico, encontra-se o “oráculo do pecado” (cf. v. 2). A expressão é forte. Faz pensar numa palavra satânica que, em contraste com a palavra divina, ressoe no coração e na linguagem do ímpio.
Nele o mal parece conatural com a sua realidade íntima, de maneira a manifestar-se em palavras e atos (cf. vv. 3-4). Ele passa os seus dias a escolher “maus caminhos”, desde muito cedo, quando ainda está “no seu leito” (v. 5), até à noite, quando está prestes a adormecer. Esta escolha constante do pecador deriva de uma opção que empenha toda a sua existência e gera a morte.
3. Mas o salmista está totalmente orientado para o outro retrato em que ele deseja refletir-se: o do homem que procura o rosto de Deus (vv. 6-13). Ele eleva um verdadeiro e próprio cântico ao amor divino (cf. vv. 6-11) ao qual faz seguir, no final, uma suplicante invocação para ser libertado do fascínio obscuro do mal e imbuído para sempre pela luz da graça.
Neste cântico desenvolve-se uma verdadeira e própria ladainha de termos, que celebram os traços do Deus de amor: graça, fidelidade, justiça, juízo, salvação, sombra protetora, abundância, delícia, vida e luz. Salientem-se, em particular, quatro destes traços divinos, expressos com vocábulos hebraicos que têm um valor mais intenso do que é demonstrado pela tradução nas línguas modernas.
4. Em primeiro lugar há o termo hésed, “graça”, que é fidelidade e, ao mesmo tempo, amor, lealdade e ternura. Constitui um dos termos fundamentais para exaltar a aliança entre o Senhor e o seu povo. E é significativo que ele ressoe por 127 vezes nos Salmos, mais de metade de todas as vezes que esta palavra aparece no restante do Antigo Testamento. Além disso, há o termo 'emunáh, que deriva da mesma raiz do amen, a palavra da fé, e significa estabilidade, segurança e fidelidade inabalável. A seguir, vem a palavra sedaqáh, a “justiça”, que tem um significado sobretudo salvífico: é a atitude santa e providencial de Deus que, através da sua intervenção na história, liberta do mal e da injustiça os seus fiéis. Enfim, eis a mishpát, o “juízo” com que Deus governa as suas criaturas, debruçando-se sobre os pobres e os oprimidos, e derrubando os arrogantes e os prepotentes.
Quatro palavras teológicas, que o orante repete na sua profissão de fé, enquanto se encaminha pelas sendas do mundo, convicto de ter ao seu lado o Deus amoroso, fiel, justo e salvador.
5. Aos vários títulos com que exalta a Deus, o salmista acrescenta duas imagens sugestivas. Por um lado, a abundância de alimentos: ela faz pensar, em primeiro lugar, no banquete sagrado, que se celebrava no templo de Sião, com a carne das vítimas sacrificais. Há também a fonte e a torrente, cujas águas saciam não apenas a garganta sedenta, mas também a alma (vv. 9-10; Sl 41,2-3; 62,2-6). O Senhor sacia e dessedenta o orante, tornando-o participante da sua vida plena e imortal.
A outra imagem é representada pelo símbolo da luz: “Em vossa Luz contemplamos a luz” (v. 10). Trata-se de uma luminosidade que se irradia como que “a cântaros” e é um sinal da revelação de Deus ao seu fiel. Assim aconteceu com Moisés no Sinai (cf. Ex 34,29-30) e assim acontece com o cristão, na medida em que, “com o rosto descoberto, com o rosto refletindo a glória do Senhor, como um espelho, é transformado nessa mesma imagem” (cf. 2Cor 3,18).
Na linguagem dos salmos, “ver a luz do rosto de Deus” significa concretamente encontrar o Senhor no templo, onde se celebra a oração litúrgica e se escuta a palavra divina. Também o cristão vive esta experiência, quando celebra os louvores do Senhor na aurora do dia, antes de se encaminhar pelas sendas nem sempre lineares da vida quotidiana.
29 de agosto de 2001
1. O cântico de louvor que acabamos de proclamar (Jt 16,1-17) é atribuído a Judite, uma heroína que se tornou o orgulho de todas as mulheres de Israel, porque a ela coube exprimir o poder libertador de Deus num momento dramático da vida do seu povo. De seu cântico a Liturgia das Laudes faz-nos recitar apenas alguns versículos. Eles convidam a fazer festa, cantando em sintonia de vozes, tocando pandeiros e tambores, para louvar o Senhor que “põe fim às batalhas” (v. 2).
Esta última expressão, que define o verdadeiro rosto de Deus que ama a paz, introduz-nos no contexto em que nasceu o hino. Trata-se de uma vitória alcançada pelos israelitas de maneira totalmente surpreendente, por obra de Deus que intervém para subtraí-los à perspectiva de uma derrota iminente e total.
2. O autor sagrado reconstrói este acontecimento alguns séculos mais tarde, a fim de oferecer aos irmãos e irmãs na fé, tentados pelo desencorajamento numa situação difícil, um exemplo que possa animá-los. Desta forma, recorre ao que acontecera em Israel quando Nabucodonosor, irritado com a indisponibilidade deste povo perante os seus projetos de expansão e as suas pretensões idolátricas, enviara o general Holofernes com a tarefa bem definida de dominá-lo e aniquilá-lo. Ninguém devia resistir a ele, que reivindicava as honras de um deus. E o seu general, compartilhando a sua presunção, desprezara a admoestação, que também ele recebera, de não atacar Israel, porque seria como ofender o próprio Deus.
Em última análise, o autor sagrado deseja recordar precisamente este princípio, para confirmar os crentes do seu tempo na fidelidade ao Deus da Aliança: é preciso ter confiança em Deus. O verdadeiro inimigo que Israel deve temer não são os poderosos desta terra, mas a infidelidade ao Senhor. Ela priva-o da proteção de Deus e torna-o vulnerável. Ao contrário, quando é fiel o povo pode contar com a própria força de Deus, “admirável, de força invencível” (v. 13).
3. Este princípio é maravilhosamente ilustrado por toda a história de Judite. O cenário é o da terra de Israel já invadida pelos inimigos. Do cântico emerge a dramaticidade deste momento: “O assírio veio das montanhas do norte com a multidão dos seus guerreiros. A sua multidão secava as torrentes, e a sua cavalaria cobria os vales” (v. 5). A arrogância efêmera do inimigo é realçada com sarcasmo: “Ele jurara incendiar o meu país, e passar ao fio de espada a minha juventude, e roubar os meus filhos, e levar as minhas filhas para o cativeiro” (v. 6).
A situação descrita pelas palavras de Judite é parecida com outras vividas por Israel, nas quais a salvação chegara quando parecia que já não havia caminhos de salvação. Não acontecera assim também a salvação do êxodo, na passagem prodigiosa através do Mar Vermelho? Também agora o assédio por parte de um exército numeroso e poderoso tira qualquer esperança. Mas tudo isto só evidencia o poder de Deus, que se manifesta como um protetor invencível do seu povo.
4. A obra de Deus é muito mais luminosa, porque Ele não recorre a um guerreiro ou a um exército. Como outrora, no tempo de Débora, eliminara o general cananeu Sísera por meio de Jael, uma mulher (cf. Jz 4,17-21), agora se serve novamente de uma mulher “indefesa” para ajudar o povo que se encontra em dificuldade. Firme na sua fé, Judite aventura-se até ao acampamento inimigo, seduz com a sua beleza o comandante e executa-o de maneira humilhante. O cântico põe em grande evidência este fato: “O Senhor Todo Poderoso feriu-o, e entregou-o nas mãos de uma mulher que lhe cortou a cabeça. O seu chefe não caiu diante de jovens, nem foram heróis nem gigantes corpulentos que se lhe opuseram, mas foi Judite, filha de Merari, que o perdeu com a formosura do seu rosto” (Jt 16,5-6).
A figura de Judite se tornará depois o arquétipo que permitirá não só à tradição hebraica, mas também à cristã, realçar a predileção de Deus por tudo o que é considerado frágil e débil, mas que precisamente por isso é escolhido para manifestar o poder divino. Ela é uma figura exemplar também para exprimir a vocação e a missão da mulher, chamada - à igualdade com o homem, de acordo com as suas características específicas - a desempenhar um papel significativo no desígnio de Deus. Algumas expressões do Livro de Judite serão adotadas, de modo mais ou menos integral, pela tradição cristã, que verá na heroína hebraica uma das prefigurações de Maria. Não se sente talvez um eco dos tons de Judite quando, no Magnificat, Maria canta: “Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52)? Compreende-se assim como a tradição litúrgica, familiar aos cristãos quer do Oriente quer do Ocidente, gosta de atribuir à Mãe de Jesus expressões que se referem a Judite, como as seguintes: “Tu és a glória de Jerusalém, tu és a alegria de Israel, tu és a honra do nosso povo” (Jt 15,9).
5. Partindo da experiência da vitória, o cântico de Judite concluiu-se com um convite a elevar a Deus um cântico novo, reconhecendo-o “grande e glorioso”. Ao mesmo tempo, admoestam-se todas as criaturas a permanecerem submetidas Àquele que com a sua palavra fez todas as coisas e as plasmou com o seu espírito. Quem pode resistir à voz de Deus? Judite recorda-o com grande ênfase: perante o Criador e Senhor da história, os fundamentos dos montes serão abalados e as rochas se derreterão como a cera (cf. v. 15). São metáforas eficazes para recordar que todas as coisas são “nada” face ao poder de Deus. Contudo, este cântico de vitória não quer amedrontar, mas confortar. De fato, Deus oferece o seu poder invencível em apoio de quantos lhe são fiéis: “Aqueles que a vós obedecem, junto a vós serão grandes em tudo” (ibid.).
05 de setembro de 2001
1. “Sublime é o Senhor, o Deus Altíssimo, o soberano que domina toda a terra”! Esta aclamação inicial é repetida em diversas tonalidades em todo o Salmo 46, que agora ouvimos. Ele configura-se como um hino ao Senhor soberano do universo e da história: Ele é “o grande Rei de toda a terra... reina sobre todas as nações” (vv. 8-9).
Este hino ao Senhor, rei do mundo e da humanidade, como outras composições semelhantes presentes no Saltério (cf. Sl 92; 95-98), supõe uma atmosfera celebrativa, litúrgica. Por isso, estamos no coração espiritual do louvor de Israel, que sobe ao céu partindo do templo, o lugar no qual o Deus infinito e eterno se revela e encontra o seu povo.
2. Seguiremos este cântico de louvor glorioso nos seus momentos fundamentais, semelhantes a duas ondas que progridem rumo à beira-mar. Diferem na maneira de considerar a relação entre Israel e as nações. Na primeira parte do Salmo, a relação é de domínio: Deus “os povos sujeitou ao nosso jugo e colocou muitas nações aos nossos pés” (v. 4); na segunda parte, ao contrário, a relação é de associação: “Os chefes das nações se reuniram com o povo do Deus santo de Abraão” (v. 10). Por conseguinte, verifica-se um grande progresso.
Na primeira parte (vv. 2-6) diz-se: “Povos todos do universo, batei as palmas, gritai a Deus aclamações de alegria!” (v. 2). O centro deste aplauso festivo é a figura grandiosa do Senhor supremo, ao qual se atribuem três títulos gloriosos: “sublime, altíssimo e soberano” (v. 3). Eles exaltam a transcendência divina, a primazia absoluta no ser, a onipotência. Também Cristo Ressuscitado exclamará: “Foi-Me dado todo o poder no céu e na terra” (Mt 28,18).
3. No âmbito do senhorio universal de Deus sobre as nações da terra (v. 4), o orante evidencia a sua presença particular em Israel, o povo da eleição divina, “seu bem-amado”, a herança mais preciosa e querida ao Senhor (v. 5). Por conseguinte, Israel sente-se objeto de um amor particular de Deus, que se manifestou com a vitória sobre as nações inimigas. Durante a batalha, a presença da arca da aliança junto das tropas de Israel garantia-lhes a ajuda de Deus; depois da vitória, a arca voltou a ser posta no monte Sião (cf. Sl 67,19) e todos proclamavam: “Por entre aclamações Deus se elevou, o Senhor subiu ao toque da trombeta.” (v. 6).
4. O segundo momento do Salmo (vv. 7-10) abre-se com outra onda de louvor e de cântico festivo: “Salmodiai ao nosso Deus ao som da harpa, salmodiai ao som da harpa ao nosso Rei! Porque Deus é o grande Rei de toda a terra, ao som da harpa acompanhai os seus louvores!” (vv. 7-8). Também agora se entoam hinos ao Senhor sentado no trono na plenitude da sua realeza (v. 9). Este trono real é chamado “glorioso”, “santo”, porque dele não se pode aproximar o homem limitado e pecador. Mas trono celeste é também a arca da aliança presente na área mais sagrada do templo de Sião. Deste modo, o Deus distante e transcendente, santo e infinito, aproxima-se das suas criaturas, adaptando-se ao espaço e ao tempo (cf. 1Rs 8,27.30).
5. O salmo termina com uma nota surpreendente devido à sua abertura universal: “Os chefes das nações se reuniram com o povo do Deus santo de Abraão” (v. 10). Remonta-se a Abraão, o patriarca que está na base não só de Israel mas também de outras nações. Ao povo eleito que dele descende, é confiada a missão de fazer convergir para o Senhor todas as nações e todas as culturas, porque Ele é Deus de toda a humanidade. Do Oriente ao Ocidente se reunirão então em Sião para encontrar este rei de paz e de amor, de unidade e de fraternidade (cf. Mt 8,11). Como esperava o profeta Isaías, os povos inimigos entre si foram convidados a lançar à terra as armas e a viver juntos sob a única soberania divina, sob um governo regido pela justiça e pela paz (Is 2,2-5). O olhar de todos estará fixo na nova Jerusalém onde o Senhor “sobe” para se revelar na glória da sua divindade. Será “uma grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas... clamavam em alta voz, dizendo: a salvação pertence ao nosso Deus que está sentado no trono e ao Cordeiro” (Ap 7,9.10).
6. A Carta aos Efésios vê a realização desta profecia no mistério de Cristo redentor quando afirma, dirigida aos cristãos não provenientes do judaísmo: “vós éreis gentios pela carne... lembrai-vos que nesse tempo estáveis sem Cristo, privados do direito de cidadania em Israel e alheios às alianças da Promessa, sem esperança e sem Deus no mundo. Agora, porém, vós, que outrora estáveis longe, pelo sangue de Cristo, vos aproximastes. Ele é a nossa paz, Ele que de dois povos fez um só, destruindo o muro de inimizade que os separava” (Ef 2,11-14).
Por conseguinte, em Cristo, a realeza de Deus, cantada pelo nosso Salmo, realizou-se na terra para todos os povos. Uma homilia anônima do século VIII comenta do seguinte modo este mistério: “Até à vinda do Messias, esperança das nações, os povos gentios não adoraram Deus e não conheceram quem Ele é. E enquanto o Messias não os resgatou, Deus não reinou sobre as nações por meio da sua obediência e do seu culto. Pelo contrário, agora Deus, com a sua Palavra e com o seu Espírito, reina sobre eles, porque os salvou do engano e fez com que se tornassem amigos” (Palestino anônimo, Homilia árabe-cristã do século VIII, Roma, 1994, p. 100).
"Por entre aclamações Deus se elevou..." (Sl 46,6) (Ascensão do Senhor - Andrea de Bonaiuto) |
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