segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

História da Festa da Circuncisão do Senhor

“Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do Menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido” (Lc 2,21).

No dia 01 de janeiro, oitavo dia após a Solenidade do Natal do Senhor, a Igreja de Rito Romano celebra atualmente a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. Porém, durante muitos séculos nesse dia celebrava-se a Festa da Circuncisão do Senhor, ainda conservada em algumas tradições litúrgicas.

Circuncisão de Jesus no Menologion de Basílio II
(Esta é a imagem mais antiga desse mistério, realizada em torno ao ano 1000)

As primeiras celebrações associadas ao dia 01 de janeiro

No ano 42 a. C. o ditador romano Júlio César realizou uma reforma no calendário, transferindo o início do ano civil do dia 01 de março para o dia 01 de janeiro. O nome desse mês, com efeito, está associado ao deus Janus, divindade das mudanças (donde janua, porta de entrada).

Uma vez que o início do ano civil era marcado por festas populares, muitas vezes com excessos na comida e na bebida, além de práticas supersticiosas (dando continuidade à Saturnália, um festival celebrado em dezembro), as primeiras celebrações desse dia no Rito Romano tinham um caráter penitencial, a fim de afastar os cristãos de tais costumes pagãos.

Santo Agostinho (†430) em seu Sermão 198 exortava os cristãos nesse dia às típicas práticas “quaresmais”: jejum, esmola e oração. O mesmo prescreveram o II Concílio de Tours (567) e o IV Concílio de Toledo (633).

“Que eles [os pagãos] deem presentes de Ano Novo: vós, porém, dareis esmolas;
que eles cantem canções licenciosas: vós, porém, vos deixareis atrair pela Palavra de Deus;
que eles se apressem em ir ao teatro: vós, porém, vos apressareis em ir à igreja;
que eles se embriaguem: vós, porém, vos entregareis ao jejum” [1].

Os Sacramentários Veronense (séc. V-VI) e Gelasiano (séc. VII-VIII), traziam para o dia 01 de janeiro a Missa Ad prohibendum ab idolis (Para afastar dos ídolos). A partir do Sacramentário Gregoriano (final do séc. VIII), porém, essa Missa já não aparece, embora algumas orações desse dia conservassem o pedido pelo perdão dos pecados.

Luta entre o Carnaval e a Quaresma (Pieter Brueghel o Velho)

Com efeito, mesmo após a queda do Império Romano essas festas populares perduraram ainda por muitos séculos, como uma espécie de “catarse” pelo ano que se encerrava. Essas tinham lugar entre o dia 26 de dezembro e a Festa da Epifania do Senhor (06 de janeiro), como “festum asinorum” (festa do asno) e “festum estultorum” (festa dos tolos).

Esta última é mencionada na célebre novela de Victor Hugo (†1885), Notre-Dame de Paris, mais conhecida como “O Corcunda de Notre-Dame”, cuja trama se passa em 1482, quando o pobre sineiro da Catedral, Quasímodo, é eleito o “Rei dos Tolos”.

A “festa do asno”, por sua vez, era uma espécie de “paródia” das Liturgias de Natal: ao invés de celebrar o Menino Jesus, celebrava-se o asno que, segundo a tradição, acompanhou a Sagrada Família em suas “andanças”: Nazaré, Belém, Egito...

A Igreja tentou dar um sentido cristão à festa, propondo-a como uma burla a Balaão, profeta enviado por um rei inimigo para amaldiçoar Israel, mas que, graças à intervenção de um anjo que faz sua mula “empacar” no caminho, acaba abençoando o povo de Deus e profetizando a vinda do Messias (cf. Nm 22–24) [2].

A Festa da Mãe de Deus no dia 01 de janeiro

Em Roma, após a fixação da celebração do Natal do Senhor no dia 25 de dezembro durante o século IV, o dia 01 de janeiro passa a ser dedicado à memória da Mãe de Deus.

Mosaico da Natividade
(Jacopo Torriti - Basílica de Santa Maria Maior, Roma)

Nota-se aqui a influência das “festas associadas” da tradição bizantina: após a festa de um evento da história da salvação celebram-se os personagens que dele participaram. Até hoje, no Rito Bizantino, a Sinaxe da Mãe de Deus é celebrada no dia 26 de dezembro, no dia seguinte ao Natal.

No final do século VII, porém, quando o Papa Sérgio I (†701), de origem síria, popularizou diversas celebrações orientais em Roma, como a Anunciação (25 de março) e a Assunção de Maria (15 de agosto), a celebração mariana de 01 de janeiro perdeu importância, passando a ser simplesmente a “Oitava do Natal” (In Octava Nativitatis Domini).

Pio XI (†1939) retomaria a Festa da Mãe de Deus no ano de 1931, XV centenário do Concílio de Éfeso (431), que proclamou o dogma da Maternidade Divina de Maria, transferindo-a para o dia 11 de outubro. Após a reforma do Concílio Vaticano II, por fim, recuperou-se a festa mariana do dia 01 de janeiro.

A celebração da Circuncisão do Senhor no dia 01 de janeiro

A Festa da Circuncisão do Senhor, por sua vez, tem sua origem na Espanha, em meados do século VI, quando começou a organizar-se o Rito Hispano-Mozárabe a partir da cidade de Toledo.

Uma vez que nesse Rito a Festa da Mãe de Deus é celebrada no dia 18 de dezembro, oito dias antes do Natal, para o dia 01 de janeiro, oito dias após o Natal, em consonância com o Evangelho (Lc 2,21), foi instituída a Festa da Circuncisão do Senhor (In Circuncisione Domini).

Esta até hoje é uma das festas mais importantes do Rito Hispano-Mozárabe. Porém, esse rito une a Circuncisão do Senhor à sua Apresentação no Templo (Lc 2,22-40), que no Rito Romano e nos ritos orientais é celebrada no dia 02 de fevereiro, 40 dias após o Natal.

Circuncisão (Fra Angelico)

O Rito Hispano-Mozárabe possui ainda uma Missa “In Initio Anni” (No início do ano), que geralmente se celebra no dia 02 de janeiro, e que possui um tom penitencial, ao mesmo tempo em que afirma o senhorio de Cristo sobre o tempo.

Da Espanha a Festa da Circuncisão logo passou à França (Rito Galicano), sendo mencionada no II Concílio de Tours (567); e posteriormente à Arquidiocese de Milão, no norte da Itália (a qual possui um rito próprio, o Rito Ambrosiano, que até hoje conserva a Festa da Circuncisão do Senhor no dia 01 de janeiro, celebrando a Festa da Mãe de Deus no domingo antes do Natal).

Em Roma a Festa chegou mais tarde, entre os séculos XIII e XIV. Porém, no Rito Romano o dia 01 de janeiro permaneceu sempre ligado à Mãe de Deus, como demonstra, por exemplo, a coleta da festa, conservada até hoje, de caráter fortemente mariano: “Deus, qui salútis aetérnae, beátae Maríae virginitáte fecunda...”. Outros textos, por sua vez, eram retomados da Solenidade do Natal.

Cabe recordar que, por seu evidente fundamento bíblico, a Festa da Circuncisão é celebrada também pelas Igrejas Orientais [3] e mesmo por denominações protestantes mais tradicionais, como a Comunhão Anglicana ou alguns luteranos.

As Igrejas Orientais recordam no dia 01 de janeiro também São Basílio de Cesareia (São Basílio Magno), celebrado no Rito Romano no dia seguinte, 02 de janeiro (junto com São Gregório Nazianzeno). No Rito Alexandrino, por sua vez, nesse mesmo dia - 06 de Tobi (ou Tubah) no calendário copta - recorda-se ainda a Assunção do Profeta Elias aos céus (cf. 2Rs 2) [4].

“O Senhor de todos recebe a circuncisão e, em sua bondade, corta as faltas dos mortais e concede hoje a salvação ao mundo”
(Trecho do Kondákion da Festa da Circuncisão no Rito Bizantino) [5].

Ícone da Circuncisão do século XVIII - Albânia
(Note-se a imagem de São Basílio na parte inferior do ícone)

O significado da celebração da Circuncisão do Senhor

A circuncisão está diretamente ligada à aliança de Deus com Abraão (cf. Gn 17), como indica o próprio nome do rito: berit-mila, “aliança da circuncisão”. É antes de tudo um rito de acolhida: pela circuncisão, no oitavo dia após o nascimento, o menino é acolhido na descendência de Abraão e na comunidade da aliança [6].

No início do Cristianismo há a “controvérsia da circuncisão”: alguns grupos de cristãos de origem judaica defendiam que os cristãos de outras tradições (gentios) deveriam ser circuncidados ao aderir à fé. Porém, os Apóstolos reunidos no chamado “Concílio de Jerusalém” (At 15) julgaram desnecessário propor tal exigência.

Paulo retomará o tema em suas Cartas aos Gálatas e aos Romanos, indicando que em Cristo o importante não a circuncisão ou a incircuncisão, mas “a fé agindo pela caridade” (Gl 5,6). O Apóstolo propõe a “circuncisão do coração” (Rm 2,25-29), tema já tratado em Dt 10,12-22 e Jr 4,4.

Para acessar nossas postagens sobre a leitura litúrgica da Carta aos Gálatas nas celebrações do Rito Romano, clique aqui.

No Cristianismo o gesto de acolhida na comunidade é o sacramento do Batismo, pelo que a circuncisão logo caiu em desuso. Assim, a Circuncisão do Senhor é um tema ausente na arte sacra antes do século X.

O desenvolvimento do tema da Circuncisão do Senhor na arte sacra e na Liturgia de Rito Romano nos séculos XIII e XIV deve-se a dois fatores:

- a rejeição à heresia dos cátaros, de caráter dualista, que considerava a matéria como má, negando portanto a Encarnação. Afirmar a circuncisão é atestar que Jesus é verdadeiro homem, “nascido de uma mulher, nascido sujeito a Lei” (Gl 4,4), que, sendo da descendência da Abraão (Mt 1,1), em sua humildade submeteu-se ao rito da circuncisão, tornando-se parte do povo da primeira aliança.

Circuncisão de Jesus (Francesco Curradi)
(Note-se a imagem de Abraão na base do altar”)

- o desenvolvimento da devoção à Paixão do Senhor motivada pelas peregrinações à Terra Santa no contexto das Cruzadas. Assim, a Circuncisão do Senhor passa a ser vista também como uma “precursora” da Paixão, sendo a primeira vez em que o sangue de Jesus foi derramado.

Nesse sentido, a Circuncisão aparece unida à Apresentação de Jesus no Templo, como no Rito Hispano-Mozárabe. Porém, na tradição judaica esses eram dois ritos distintos: a circuncisão nunca se realizava no Templo, mas sim na Sinagoga ou na própria casa da família.

Não obstante, associada à profecia de Simeão (Lc 2,35), a Circuncisão aparece ligada à devoção das “Sete Dores de Maria” e, mais tarde, também à devoção às “Sete Dores e Sete Alegrias de São José”.

A partir do século XV, graças à pregação de São Bernardino de Sena (†1444), cresce a devoção ao Nome de Jesus. Junto à circuncisão, com efeito, o oitavo dia após o nascimento era quando a criança recebia seu nome. Sobre essa devoção, porém, falaremos na próxima postagem.

A atual celebração do dia 01 de janeiro

Apesar de atualmente celebrarmos no dia 01 de janeiro a Solenidade da Santa Mãe de Deus, as leituras desse dia recordam também a Circuncisão do Senhor, como indica o Elenco das Leituras da Missa, n. 95: “Na oitava do Natal e Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, as leituras tratam da Virgem, Mãe de Deus, e da imposição do Santíssimo Nome de Jesus” [7].

Com efeito, além do Evangelho (Lc 2,16-21), que, após o relato da visita dos pastores, recorda a circuncisão e à imposição do nome a Jesus no oitavo dia (v. 21), destaca-se a 1ª leitura, com a célebre “bênção sacerdotal de Aarão”: Nm 6,22-27.

Apesar da perícope ser adequada também como uma bênção sobre o novo ano civil que se inicia, e  recordar o tema da paz (dado que em 01 de janeiro celebra-se o Dia Mundial da Paz, instituído pelo Papa Paulo VI em 1967), sua escolha aqui se deve sobretudo à referência ao nome: “Assim invocarão o meu nome... e eu os abençoarei” (v. 27).

Da mesma forma, a 2ª leitura (Gl 4,4-7), além de referir-se à participação de Maria no mistério da Encarnação, atesta a submissão de Cristo à Lei, o que se verifica em sua circuncisão, como indicamos acima: “Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei” (v. 4).

Circuncisão de Jesus (Jacob Willemsz de Wet)

Concluímos com uma oração recitada pelos luteranos por ocasião da Festa da Circuncisão do Senhor:

“Senhor Deus, fizeste com que teu amado Filho nosso Salvador, estivesse sujeito à lei, e levaste-o a derramar seu sangue por nós. Concede-nos a verdadeira circuncisão do Espírito para que nossos corações possam ser purificados de todos os pecados; através de Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém” [8].

Notas:

[1] AGOSTINHO, Sermão 198, 2; in: ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, p. 101.

[2] Algo semelhante acontece na festa judaica de Purim, associada aos acontecimentos do Livro de Ester, com os presentes vaiando o personagem Amã e saudando Mardoqueu e Ester com aplausos e manifestações de júbilo (cf. DI SANTE, Carmine. Liturgia judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 244-245).

[3] Nas Igrejas Orientais (católicas e ortodoxas) que seguem o calendário juliano, com 13 dias de diferença em relação ao calendário gregoriano, o dia 01 de janeiro corresponde ao nosso dia 14 de janeiro.

[4] St. Takla: Coptic Orthodox Church Heritage: Daily Coptic Synaxarium.

[5] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no Rito Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 27.

[6] Para saber mais sobre a circuncisão:
DI SANTE, op. cit., pp. 203-204.
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 154-155.
McKENZIE, John Lawrence. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 2013, p. 155-157.

[6] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 95.

[7] Fonte: Teologia Luterana.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 100-102.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 707-713.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. II: L’inaugurazione del Regno Messianico (La Sacra Liturgia dall’Avvento alla Settuagesima). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 187-189.

TIERNEY, John. Feast of the Circumcision; in: The Catholic Encyclopedia, vol. 3, 1908. Disponível em: New Advent.

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