As
Catequeses do Papa Bento XVI sobre os salmos das Vésperas da quinta-feira da III
semana do Saltério foram proferidas nos dias 14 de setembro (Sl 131,1-10) e 21
de setembro de 2005 (Sl 131,11-18).
Como afirmamos anteriormente, o "Papa alemão" não retomou os cânticos do Apocalipse, sobre os quais João Paulo II já havia
refletido.
146. As promessas do Senhor à casa de Davi
I: Sl 131(132),1-10
14 de setembro de 2005
1. Ouvimos a
primeira parte do Salmo 131, um hino que a Liturgia das Vésperas nos oferece em
dois momentos distintos. Não poucos estudiosos pensam que este cântico tenha
ressoado na celebração solene do transporte da arca do Senhor, sinal da
presença divina no meio do povo de Israel, em Jerusalém, a nova capital
escolhida por Davi. Na narração deste acontecimento, do modo como nos é narrado
pela Bíblia, lê-se que o rei Davi “cingindo a insígnia votiva de linho, dançava
com todas as suas forças diante do Senhor. O rei e todos os israelitas
conduziram a Arca do Senhor, com gritos de alegria e tocando trombetas” (2Sm 6,14-15).
Outros
estudiosos, ao contrário, reconduzem o Salmo 131 a uma celebração comemorativa
daquele acontecimento antigo, depois da instituição do culto no santuário de
Sião, por obra precisamente de Davi.
"Subi, Senhor, com vossa arca poderosa" (cf. Sl 131,8) (Vitral representando a arca da aliança) |
2. O nosso hino
parece supor uma dimensão litúrgica: provavelmente era usado durante o
desenvolvimento de uma procissão, com a presença de sacerdotes e fiéis e a
participação de um coro.
Seguindo a
Liturgia das Vésperas, nos deteremos sobre os primeiros dez versículos do Salmo,
que agora proclamamos. No centro desta parte está colocado o juramento solene
pronunciado por Davi. De fato, diz-se que ele - deixando para trás o áspero
contraste com o predecessor, o rei Saul - “fez um juramento ao Senhor e um voto
ao Poderoso de Jacó” (cf. Sl 131,2).
O conteúdo deste compromisso solene, expresso nos vv. 3-5, é claro: o soberano
não entrará no palácio real de Jerusalém, não irá repousar tranquilo, se
primeiro não tiver encontrado uma morada para a arca do Senhor.
Por conseguinte,
deve haver no próprio centro da vida social uma presença que evoca o mistério
de Deus transcendente. Deus e homem caminham juntos na história, e o templo tem
a tarefa de assinalar de modo visível esta comunhão.
3. Neste ponto,
depois das palavras de Davi, apresenta-se, talvez através das palavras de um
coro litúrgico, a memória do passado. De fato, é reevocado o encontro da arca
nos campos de Iaar, na região de Éfrata (v. 6): permanecera ali durante muito
tempo, depois de ter sido restituída pelos filisteus a Israel, que a tinha perdido
durante uma batalha (cf. 1Sm 7,1; 2Sm 6,2.11). Da província, portanto, é conduzida à futura cidade
santa e o nosso trecho termina com uma celebração de festa que vê, por um lado,
o povo adorante (vv. 7.9), isto é, a assembleia litúrgica e, por outro lado, o
Senhor que volta a fazer-se presente e operante no sinal da arca colocada em
Sião (v. 8), no centro do seu povo.
A alma da Liturgia
encontra-se neste cruzamento entre sacerdotes e fiéis, por um lado, e do Senhor
com o seu poder, por outro.
4. Como selo da
primeira parte do Salmo 131 ressoa uma aclamação orante em favor dos reis
sucessores de Davi: “Por causa de Davi, o vosso servo, não afasteis do vosso
ungido a vossa face” (v.10).
É fácil intuir
uma dimensão messiânica nesta súplica, inicialmente destinada a impetrar amparo
para o soberano hebraico nas provas da vida. A palavra “ungido” traduz de fato
a palavra hebraica “Messias”: o olhar do orante vai, assim, para além das
vicissitudes do reino de Judá e projeta-se para a grande expectativa do “Ungido”
perfeito, o Messias, que será sempre agradável a Deus, por ele amado e
abençoado.
5. Esta interpretação
messiânica para o futuro “ungido” dominará a releitura cristã e se estenderá a
todo o Salmo.
É significativa,
por exemplo, a aplicação que Hesíquio de Jerusalém, um presbítero da primeira
metade do século V, fará do v. 8 à Encarnação de Cristo. Na sua II Homilia sobre a Mãe de Deus ele
dirige-se a Maria do seguinte modo: “Sobre ti e sobre Aquele que de ti nasceu,
Davi não cessa de cantar sobre a cítara: ‘Levanta-te, Senhor, e entra no teu repouso,
tu e a Arca do teu poder’ (Sl 131,8)”.
Quem é a “Arca do teu poder?” Hesíquio responde: “Evidentemente a Virgem, a Mãe
de Deus. Porque, se tu és a pérola, ela é de direito a arca; se tu és o sol,
necessariamente a Virgem será chamada céu; e se tu és a Flor incontaminada, a
Virgem será a planta incorruptível, paraíso de imortalidade” (Textos marianos do primeiro milênio, I,
Roma, 1988, pp. 532-533).
Parece-me muito
importante esta dupla interpretação. Cristo é o “Ungido”, o Filho do próprio
Deus que se encarnou. E a Arca da Aliança, a verdadeira morada de Deus no
mundo, não feita de madeira, mas de carne e sangue, é a Virgem, que oferece a
si mesma ao Senhor como Arca da Aliança e nos convida a sermos, nós também,
morada viva de Deus no mundo.
147. As promessas do Senhor à casa de Davi
II: Sl 131(132),11-18
21 de setembro de 2005
1. Ressoou agora
a segunda parte do Salmo 131, um cântico que evoca um acontecimento capital na
história de Israel: a transladação da arca do Senhor para a cidade de
Jerusalém.
Davi tinha sido
o artífice desta transferência, como atesta a primeira parte do Salmo, já
considerada por nós. De fato, o rei tinha feito o juramento de não se
estabelecer no palácio real se não tivesse encontrado primeiro uma moradia para
a arca de Deus, sinal da presença do Senhor junto ao seu povo (vv. 3-5).
Àquele juramento
do soberano corresponde agora o juramento do próprio Deus: “O Senhor fez a Davi
um juramento, uma promessa que jamais renegará” (v. 11). Substancialmente, esta
promessa solene é a mesma que o profeta Natã fizera, em nome de Deus, ao
próprio Davi; ela refere-se à descendência davídica futura, destinada a reinar
estavelmente (cf. 2Sm 7,8-16).
2. Mas o
juramento divino requer o compromisso humano, a ponto de estar condicionado por
um “se”: “Se teus filhos conservarem minha Aliança” (v. 12). À promessa e ao
dom de Deus, que nada tem de mágico, deve corresponder a adesão fiel e
laboriosa do homem num diálogo que relaciona duas liberdades, a divina e a
humana.
Neste ponto, o Salmo
transforma-se em um cântico que exalta os maravilhosos efeitos quer do dom do
Senhor, quer da fidelidade de Israel. De fato, se experimentará a presença de
Deus no meio do povo (vv. 13-14): Ele será como um habitante entre os
habitantes de Jerusalém, como um cidadão que vive com os outros cidadãos as
vicissitudes da história, oferecendo contudo a força da sua bênção.
3. Deus abençoará
as colheitas, preocupando-se com que os pobres sejam saciados (v. 15); revestirá
com o seu manto protetor os seus sacerdotes, oferecendo-lhes a salvação; fará
com que todos os fiéis vivam na alegria e na confiança (v. 16).
A bênção mais
intensa é reservada mais uma vez a Davi e à sua descendência: “De Davi farei
brotar um forte Herdeiro, acenderei ao meu Ungido uma lâmpada. Cobrirei de
confusão seus inimigos, mas sobre ele brilhará minha coroa” (vv. 17-18).
Mais uma vez,
como tinha acontecido na primeira parte do salmo (v. 10), entra em cena a
figura do “Ungido”, em hebraico “Messias”, relacionando assim a descendência
davídica com o messianismo que, na releitura cristã, encontra plena atuação na
figura de Cristo. As imagens usadas são vivazes: Davi é representado como um
rebento que cresce vigoroso; Deus ilumina o descendente davídico com uma
lâmpada cintilante, símbolo de vitalidade e de glória; uma coroa esplendorosa
marcará o seu triunfo sobre os inimigos e, por conseguinte, a vitória sobre o
mal.
4. Em Jerusalém,
no templo que conserva a arca e na dinastia davídica, realiza-se a dupla
presença do Senhor, a presença no espaço e na história. O Salmo 131 torna-se,
então, uma celebração do Deus-Emanuel que está com as suas criaturas, vive ao
lado delas e beneficia-as, sob a condição de que permaneçam unidas a Ele na
verdade e na justiça. O centro espiritual deste hino já é prelúdio à
proclamação joanina: “E o Verbo se fez carne e veio habitar conosco” (Jo 1,14).
5. Concluímos
recordando que o início desta segunda parte do Salmo 131 foi usado
habitualmente pelos Padres da Igreja para descrever a Encarnação do Verbo no
seio da Virgem Maria.
Já Santo Irineu,
referindo-se à profecia de Isaías sobre a Virgem que está para dar à luz,
explicava: “As palavras: ‘Ouve, pois, casa de Davi’ (Is 7,13) indicam que o rei eterno, que Deus tinha prometido a Davi
de suscitar do ‘fruto do seu ventre’ (Sl
131,11), é o mesmo que nasceu da Virgem, proveniente de Davi. Por isso, ele
tinha prometido um rei que teria nascido do ‘fruto do seu ventre’, expressão
que indica uma virgem grávida. Portanto a Escritura... situa e afirma o “fruto
do ventre” para proclamar que, a geração daquele que deveria vir, teria vindo
na Virgem. Precisamente quanto Isabel, cheia de Espírito Santo, confirmou
dizendo a Maria: ‘Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre’
(Lc 1,42), assim o Espírito Santo
indica àqueles que o querem ouvir que, com o parto da Virgem, isto é, de Maria,
se cumpriu a promessa, feita por Deus a Davi, de suscitar um rei do fruto do
seu ventre” (Contra as heresias, 3,
21, 5).
E assim vemos no
grande arco, que vai do Salmo antigo até à Encarnação do Senhor, a fidelidade
de Deus. No Salmo já aparece e transparece o mistério de um Deus que habita
conosco, que se torna um conosco na Encarnação. E esta fidelidade de Deus é a
nossa confiança nas mudanças da história, é a nossa alegria.
Fonte: Santa Sé (14 de setembro e 21 de setembro de 2005).
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