quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

A canção We Three Kings e os presentes dos Magos

“Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram...” (Mt 2,1).

Como vimos em nossa postagem sobre a história da Epifania do Senhor (do grego ἐπιϕάνεια, “manifestação”), nessa Solenidade, a 06 de janeiro (no Brasil, transferida para o domingo entre 02 e 08 de janeiro), a tradição romana celebra a adoração dos magos ao Menino Jesus.

A jornada dos magos (James Tissot - séc. XIX)

O Evangelho de Mateus narra apenas que “magos do Oriente” vieram e ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra. A tradição cristã logo “promoveu” esses sábios persas, estudiosos dos astros, a “reis”, à luz das profecias e dos salmos (cf. Is 60,1-6; Sl 71/72).

Posteriormente foram-lhes acrescidos nomes, diferentes idades e origens, representando assim a salvação oferecida a todos os povos.

O número de “três” magos, por sua vez, remete aos presentes, aos quais foi dado um significado teológico: o ouro associado à realeza de Cristo, o incenso e a mirra à sua dupla natureza: verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

Nas palavras de Santo Agostinho (†430): “Oferece-se a Ele o ouro como a um grande rei, queima-se o incenso em sua presença como diante de Deus, e oferece-se a mirra como Àquele que haveria de morrer pela salvação de todos” [1].

Após o Concílio Vaticano II (1962-1965), porém, com a ênfase no tríplice múnus de Cristo, do qual todos nós participamos pelo Batismo (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 436.783-786), os presentes foram associados também a Cristo rei (ouro), sacerdote (incenso) e profeta (mirra).

Os magos na casa de Herodes - James Tissot (séc. XIX)

“Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mt 2,2)

Em torno a 1857, o reverendo John Henry Hopkins Jr. (†1891) compôs a canção “We Three Kings” ou “Three Kings of Orient”, publicada pelo mesmo Hopkins em sua obra Carols, Hymns, and Songs em 1863.

Hopkins, clérigo da Igreja Episcopal, “província” da Comunhão Anglicana nos Estados Unidos da América, era então reitor da Christ Episcopal Church em Williamsport, Pennsylvania (EUA). Sua canção, inicialmente difundida por seus familiares e amigos, logo ganhou grande popularidade.

Em 1916 foi publicada no hinário da Igreja Episcopal e em 1928 no prestigioso Oxford Book of Carols (Inglaterra). A canção foi acolhida no hinário da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, intitulada “Três reis magos do Oriente a sós”, a partir das adaptações feitas em 1938 por Ruth Bosworth See (†1960) e em 1947 pelo pastor metodista Antônio de Campos Gonçalves (†1983).

A canção é composta por cinco estrofes, além de um refrão:
- na 1ª estrofe, os três magos narram sua viagem;
- da 2ª à 4ª estrofes cada um dos três magos canta descrevendo seu presente;
- a 5ª estrofe é cantada novamente pelos três magos, louvando a Cristo.
- o refrão, por sua vez, cantado pelos magos e pelo coro, exalta a “estrela de Belém”.

A seguir publicaremos o texto original da canção, em inglês, e a sua adaptação para o português do Brasil publicada no Hinário Luterano. Esta, apesar de modificar um pouco a letra, conserva o intrincado esquema de rimas do original:
- os versos 1, 2 e 4 de cada estrofe rimam entre si (abaixo em negrito);
- o 3º verso contém uma “rima interna” (em itálico).

Na sequência proporemos ainda uma tradução mais “literal” da canção, a qual utilizaremos para aprofundar a sua teologia.

Adoração dos magos - James Tissot (séc. XIX)

Vale recordar que esta música não deve ser entoada nas celebrações litúrgicas, uma vez que foi composta como “canção natalina” (Christmas carol) e não como música litúrgica. O mesmo vale para outras canções religiosas, como a célebre “Ouro, incenso e mirra” do Padre Zezinho. São músicas adequadas para momentos de piedade popular, mas não para a Missa.

As músicas do Hinário Litúrgico próprias para as celebraçães do Tempo do Natal encontram-se no CD Liturgia V, editado pela gravadora Paulus.

Com efeito, como vimos em nossa postagem sobre a história da Epifania, os textos litúrgicos dessa Solenidade não fazem nenhuma referência aos aspectos lendários relacionados aos magos do Oriente: não são mencionados seus nomes, não são invocados como reis... O único Rei celebrado na Epifania é, pois, o próprio Cristo Senhor!

We Three Kings of Orient

Os três magos:
We three kings of Orient are;
Bearing gifts we traverse afar,
Field and fountain, moor and mountain,
Following yonder star.

Refrão:
O star of wonder, star of night,
Star with royal beauty bright,
Westward leading, still proceeding,
Guide us to thy perfect light.

1º mago:
Born a King on Bethlehem’s plain
Gold I bring to crown Him again,
King forever, ceasing never,
Over us all to reign. R.

2º mago:
Frankincense to offer have I;
Incense owns a Deity nigh;
Prayer and praising, voices raising,
Worshiping God on high. R.

3º mago:
Myrrh is mine, its bitter perfume
Breathes a life of gathering gloom;
Sorrowing, sighing, bleeding, dying,
Sealed in the stone cold tomb. R.

Os três magos:
Glorious now behold Him arise;
King and God and sacrifice;
Alleluia!, Alleluia!,
Rings through the earth and skies. R.


Três reis magos do Oriente a sós

Os três magos:
Três reis magos do Oriente a sós,
com presentes viemos nós.
entre montes, campos, fontes,
de linda estrela após.

Refrão:
Linda estrela de fulgente luz,
o teu brilho nos conduz,
Luz celeste, rumo Oeste,
guia-nos ao Rei Jesus.

1º mago:
Rei, nascido em distante lar,
ouro trago para te dar,
Rei superno, dom eterno,
vem sobre nós reinar. R.

2º mago:
Ofertar-te incenso me apraz,
pois incenso a Deus só se traz,
que comprova a prece nova,
na adoração veraz. R.

3º mago:
Eis a mirra de agreste odor,
Que na vida exprime o fervor,
singeleza, luz, beleza,
exuberante amor. R.

Os três magos:
Rei glorioso, bendito Deus,
sacrifício aos pecados meus.
Aleluia, aleluia!
Soa na terra e céus. R. [2].


“Ajoelharam-se diante d’Ele, e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra” (Mt 2,11)

1ª estrofe:
Três Reis do Oriente somos nós trazendo presentes atravessamos campo e fonte, pântano e montanha, seguindo aquela estrela.

A 1ª estrofe, que serve de introdução ao hino, é cantada pelos três reis, descrevendo sua viagem. Os “campos” e “montanhas” remetem-nos às profecias de Isaías, retomadas por João Batista e proclamadas pela Igreja no Advento (cf. Is 40,3-4; Lc 3,4-5).

Refrão:
Ó estrela maravilhosa, estrela da noite, estrela que brilha com real beleza, apontando para o oeste, continuamos seguindo, guia-nos para tua perfeita luz.

O refrão da composição é um “elogio” à estrela que guiou os magos. Sobressai aqui o tema da luz, que é, com efeito, um “refrão” das leituras e orações do Tempo do Natal (cf. Jo 1,1-14; 8,12), desde a Missa da Noite (Is 9,1; Lc 2,9), passando pela Epifania (Is 60,1-3), até a Festa da Apresentação do Senhor (Lc 2,32).

Destaca-se também o simbolismo do “Oriente”, aqui expresso em sentido inverso: uma vez que os magos vêm do Oriente, a estrela os guia “rumo Oeste” ao “Rei Jesus”, “Sol da justiça” (Ml 3,20), “Sol nascente que nos veio visitar” (cf. Lc 1,78-79).

Adoração dos magos - Edward Burne-Jones (séc. XIX)
Note-se a estrela na mão do anjo

2ª estrofe:
Rei nascido na planície de Belém ouro eu trago para coroá-lo de novo, Rei para sempre, nunca cessando, reina sobre todos nós.

A partir desta estrofe, como vimos, cada um dos três magos descreverá seu presente. Seguindo a ordem de Mt 2,11, o primeiro dos presentes (δῶρα, munera) é o ouro (χρυσὸν, aurum).

O ouro é um metal nobre que sempre foi muito valorizado pelas diversas culturas, uma vez que sua cor remete à luz do sol [3]. Além disso, uma vez que não oxida, o ouro é símbolo da eternidade, razão pela qual é previsto para os vasos sagrados [4].

Como fica claro na estrofe, o ouro é associado aqui à realeza de Cristo (cf. Ap 14,14). O propósito de “coroá-lo de novo” (to crown Him again) parece indicar a realeza que Cristo possuía por natureza desde a eternidade, da qual Ele “se esvazia” em sua Encarnação (cf. Fl 2,6-11), e a sua realeza em nossos corações: “oportet illum regnare” (cf. 1Cor 15,22-28).

Pepita de ouro

A referência à “planície de Belém”, por fim, recordam-nos os pastores nos campos (Lc 2,8-14). Assim como os magos são as “primícias dos gentios” chamados à salvação, os pastores representam as “primícias de Israel” que acolhem o Salvador (Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 106) [5].

3ª estrofe:
Incenso para oferecer-lhe eu tenho; incenso que pertence à divindade; oração e louvor, vozes que se elevam, adorando a Deus nas alturas.

O segundo presente é o incenso ou olibanum (λίβανον, tus), resina aromática extraída de algumas plantas, sobretudo do gênero Boswellia (como a Boswellia sacra). O termo em inglês frankincense, usado por Hopkins, significa “incenso puro”, “incenso nobre”.

A queima dessa resina na forma de pequenos grãos ou “cristais” em rituais sagrados é atestada em diversas tradições religiosas, dado seu riquíssimo simbolismo:

Grãos de incenso (olibanum)

- a queima do incenso, antes de tudo, é um sacrifício (no sentido de “tornar sagrado”, “separar para o sagrado”), uma oferta a Deus que exprime nosso propósito de conversão, de “queimar” aquilo que nos separa d’Ele;

- o aroma agradável resultante da queima remete-nos ao compromisso de “exalar no mundo o bom odor de Cristo” (cf. 2Cor 2,14-15);

- a fumaça que sobe faz uma “ponte” entre o céu e a terra, pela qual “sobem” nossas orações: “Minha oração suba a vós como incenso” (Sl 140/141,2). No Livro do Apocalipse os 24 anciãos, isto é, todos os justos do Antigo e do Novo Testamento (12 tribos de Israel + 12 Apóstolos), oferecem a Deus taças com incenso, “que são as orações dos santos” (Ap 5,8);

- a “nuvem” formada pela fumaça do incenso, por fim, remete à presença de Deus que acompanhava o povo de Israel no êxodo (cf. Ex 13,21-22; 40,34-38). Na Anunciação, com efeito, a presença de Deus cobre Maria “como uma nuvem” (cf. Lc 1,35) [6].

Queima do incenso em uma celebração litúrgica

O 2º verso da estrofe, de difícil tradução (incense owns a Deity nigh), indica tanto que o incenso “nos aproxima da divindade” quanto que o incenso “pertence à divindade”.

Esta segunda interpretação fica mais clara na adaptação do texto publicada no Hinário Luterano: “incenso a Deus só se traz”. Com efeito, muitos dos primeiros cristãos foram martirizados por se recusarem a oferecer incenso aos deuses romanos e ao imperador venerado como tal, atentos ao 1º mandamento (cf. Ex 20,1-6; Dt 5,6-10).

O presente do incenso indica, pois, tanto a divindade de Cristo quanto seu múnus sacerdotal, mistério aprofundado na Carta aos Hebreus, “único Mediador entre nós e o Pai” (cf. 1Tm 2,5), além de remeter-nos, no último verso, ao canto dos anjos em Lc 2,13-14 (a oferta do incenso também é “função” dos anjos: Ap 8,3-5).

4ª estrofe:
A mirra é minha, seu perfume amargo respira uma vida de crescente escuridão; sofrendo, suspirando, sangrando, morrendo, selado em fria tumba de pedra.

Diferentemente do ouro e do incenso, a mirra (σμύρναν, myrram) não é mencionada na profecia messiânica de Is 60,6.

Grãos de mirra

Como o incenso, a mirra é uma resina vegetal, extraída da Commiphora myrrha, uma árvore espinhosa. Era usada desde a Antiguidade como bálsamo, isto é, como óleo medicinal e cosmético, além de ingrediente para embalsamar os mortos. Apesar do odor suave, seu gosto é amargo, como indica o primeiro verso da estrofe: A mirra é meu [presente], seu perfume amargo...

No Antigo Testamento é citada como ingrediente do óleo para unção de reis e sacerdotes (cf. Ex 30,22-33). No Novo Testamento, porém, a mirra é associada à morte: na Paixão os soldados oferecem a Cristo uma mistura de vinho e mirra, como anestésico (Mc 15,23); Nicodemos traz uma mistura de mirra e aloés para o sepultamento de Cristo (Jo 19,39-40) [7].

Assim, apesar de podermos relacioná-la à missão profética de Cristo (sobretudo à luz de Is 61,1-3, texto retomado por Jesus em Lc 4,16-21), a mirra aparece aqui claramente associada à sua humanidade e particularmente à sua Paixão e Morte.

A estrofe começa indicando que o Menino Jesus “respira” o perfume da mirra envolto em uma “crescente escuridão”: “sofrendo, suspirando, sangrando, morrendo, selado em fria tumba de pedra”. Trata-se de uma síntese da kenosis, isto é, do “esvaziamento de Cristo”, uma espiral descendente até sua sepultura (cf. Fl 2,6-8).

Vale destacar aqui a interpretação da canção feita pelo grupo Clamavi De Profundis, na qual esta estrofe é cantada como uma “marcha fúnebre”.


5ª estrofe:
Glorioso agora Ele se levanta; Rei e Deus e sacrifício; Aleluia, aleluia! Ressoe através da terra e dos céus.

Se a estrofe anterior cantava a katábasis (κατάβασις), isto é, a “descida” de Cristo desde sua Encarnação até a sua sepultura, a última estrofe, entoada pelos “três magos”, é o grande louvor da sua anábasis (ἀνάβασις), isto é, da sua “exaltação” ou “subida” desde o sepulcro na Ressurreição (cf. Fl 2,9-11).

A referência à Ressurreição fica clara no primeiro verso - “Glorioso agora Ele se levanta” - e no “Aleluia” (do hebraico Halleluya, “louvai a Yaweh”), louvor pascal por excelência.

Os três presentes: mirra, ouro e incenso

O segundo verso, por sua vez, é a síntese da teologia dos três presentes dos magos: Rei (ouro) e Deus (incenso) e sacrifício (mirra). O texto nos recorda o Prefácio V da Páscoa, que celebra Cristo como “sacerdote, altar e cordeiro” [8].

Como vimos em nossa postagem sobre a história da celebração do Natal do Senhor, no mistério da sua Encarnação-Manifestação está já presente o Mistério Pascal da sua Morte-Ressurreição. O Natal-Epifania e a Páscoa, ainda que de modo distinto, celebram o mistério da nossa salvação (salutis nostrae sacramentum) [9].

Concluímos nossa postagem com a interpretação dos três presentes feita por São Gregório Magno (†604), que nos exorta, através deles, aprender com os magos do oriente a buscar a sabedoria e a cultivar a oração e a penitência:

“Oferecemos, pois, ouro a este novo Rei, se resplandecemos diante d’Ele com a luz da sabedoriaincenso, se por meio da dedicação à oração exalamos em sua presença o odor fragrante; e mirra, se pela abstinência mortificamos os vícios da carne” [10].

Religiosos com mirra, ouro e incenso nas Vésperas da Epifania em Belém

Notas:

[1] AGOSTINHO. Sermonibus de Epiphania. in: TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea: Exposição contínua sobre os Evangelhos; vol. I: Evangelho de São Mateus. Campinas: CEDET, 2018, p. 106.

[2] Texto em inglês e em português disponíveis em: “Três reis magos do Oriente a sós”. Blog Teologia Luterana. 06 de janeiro de 2014.

[3] Sobre o simbolismo bíblico do ouro, confira: LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 168-169.

[4] cf. Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, nn. 328-330. in: ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre o Missal Romano - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, pp. 194-195.

[5] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 108. Além disso, os pastores e os magos, guiados pelo anúncio do anjo e pela visão da estrela, representam respectivamente a fé e a razão, “duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade” (João Paulo II, Encíclica Fides et Ratio, n. 1).

[6] Sobre o simbolismo bíblico do incenso, confira: LURKER, op. cit., pp. 120-121.

[7] Sobre o simbolismo bíblico da mirra, confira: ibid., p. 149.

[8] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 425.

[9] Sobre os vários paralelos entre Natal-Epifania e Páscoa, cf. BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 215-216: “O Natal na perspectiva da Páscoa”.

[10] GREGÓRIO MAGNO. Homiliae in Evangelia, 10. in: TOMÁS DE AQUINO. Op. cit., pp. 106-107.

Imagens: Wikimedia Commons.

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