Na
série de Catequeses do Papa Bento XVI sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, continuando a proposta de João Paulo II, chegamos às Vésperas da quarta-feira
da III semana do Saltério. Tratam-se das Catequeses de 17 de agosto (Sl 125), 31
de agosto (Sl 126) e 07 de setembro de 2005 (Cl 1,12-20).
143. Alegria e esperança em Deus: Sl 125
(126),1-6
17 de agosto de 2005
1. Ouvindo as
palavras do Salmo 125, tem-se a impressão de ver passar diante dos olhos o
acontecimento cantado na segunda parte do Livro
de Isaías: o “novo êxodo” (cf. Is 40–55). É a volta de Israel do exílio
da Babilônia para a terra dos pais, após o edito do rei persa Ciro, no ano 538
a. C.. Repetiu-se então a experiência jubilosa do primeiro êxodo, quando o povo
hebraico foi libertado da escravidão do Egito.
Este Salmo
adquiria um particular significado quando era entoado nos dias em que Israel se
sentia ameaçado e amedrontado, porque estava sendo submetido novamente à prova.
O Salmo compreende efetivamente uma oração pela volta dos prisioneiros do
momento (v. 4). Assim, ele se tornava uma prece do povo de Deus no seu
itinerário histórico, repleto de perigos e de provações, mas sempre aberto à
confiança em Deus Salvador e Libertador, sustentáculo dos fracos e dos
oprimidos.
"Os que lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria" (Sl 125,5) |
2. O Salmo nos
introduz em uma atmosfera de exultação: as pessoas sorriem, festejam a
liberdade alcançada, afloram nos seus lábios cânticos de alegria (vv. 1-2).
A reação diante
da liberdade reconquistada é dupla. Por um lado, as nações pagãs reconhecem a grandeza
do Deus de Israel: “Entre os gentios se dizia: ‘Maravilhas fez por eles o Senhor’”
(v. 2). A salvação do povo eleito torna-se uma prova límpida da existência
eficaz e poderosa de Deus, presente e ativo na história. Por outro lado, é o
povo de Deus que professa a sua fé no Senhor salvador: “Sim, maravilhas fez
conosco o Senhor! Exultemos de alegria!” (v. 3).
3. Depois o
pensamento dirige-se ao passado, revivido com um sobressalto de medo e de
amargura. Gostaríamos de fixar a atenção na imagem agrícola utilizada pelo salmista:
“Os que lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria” (v. 5). Sob o
peso do trabalho, às vezes o rosto banha-se de lágrimas: realiza-se uma
sementeira cansativa, talvez destinada à inutilidade e ao fracasso. Mas quando
chega a hora da colheita abundante e jubilosa, descobre-se que aquela dor foi
fecunda.
Neste versículo
do Salmo está resumida a grande lição sobre o mistério de fecundidade e de vida
que o sofrimento pode conter. Precisamente como Jesus tinha dito na vigília da
sua Paixão e Morte: “Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, ficará
ele só; mas se morrer, dará muito fruto” (Jo
12,24).
4. Assim, o
horizonte do Salmo abre-se à sementeira festiva, símbolo da alegria gerada pela
liberdade, pela paz e pela prosperidade, que constituem o fruto da bênção
divina. Esta oração é, então, um cântico de esperança, ao qual recorrer quando
se está mergulhado no tempo da prova, do medo, da ameaça exterior e da opressão
interior.
Contudo, pode
tornar-se também um apelo mais geral, a viver os próprios dias e a tomar as
decisões pessoais em um clima de fidelidade. A perseverança no bem, mesmo que
seja incompreendida e contrastada, no final chega sempre a uma meta de luz, de
fecundidade e de paz.
Era o que São
Paulo recordava aos gálatas: “Quem semear no Espírito, do Espírito colherá a
vida eterna. E não nos cansemos de fazer o bem, porque a seu tempo colheremos,
se não tivermos esmorecido” (Gl 6,8-9).
5. Concluamos
com uma reflexão de São Beda, o Venerável (672/3-735), sobre o Salmo 125, para
comentar as palavras com que Jesus anunciava aos seus discípulos a tristeza que
os esperava e, ao mesmo tempo, a alegria que brotaria da sua aflição (cf. Jo 16,20).
Beda recorda que
“choravam e se queixavam aqueles que amavam Cristo, quando o viram aprisionado
pelos inimigos, atado, levado para ser julgado, condenado, flagelado,
escarnecido e enfim crucificado, atingido pela lança e sepultado. Aqueles que
amavam o mundo, ao contrário, alegravam-se... quando condenavam a uma morte
extremamente torpe Aquele cuja simples visão era para eles já um incômodo.
Entristeceram-se os discípulos com a Morte do Senhor, mas tendo tomado
conhecimento da sua Ressurreição, a sua tristeza transformou-se em júbilo; em
seguida, vendo o prodígio da Ascensão, com alegria ainda maior louvavam e
bendiziam o Senhor, como testemunha Lucas (cf.
Lc 24,53). Porém, aquelas palavras do Senhor adaptam-se a todos os fiéis
que, através das lágrimas e das aflições do mundo, procuram chegar às alegrias
eternas e que, justamente, agora choram e ficam tristes, porque ainda não podem
ver Aquele a quem amam e porque, enquanto estão no corpo, sabem que se
encontram longe da pátria e do reino, embora estejam persuadidos de que
alcançarão o prêmio através dos cansaços e das lutas. A sua tristeza se
transformará em alegria quando, concluído o combate desta vida, receberem a
recompensa da vida eterna, em conformidade com quanto afirma o Salmo: ‘Os que
lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria’” (Omelie sul Vangelo, 2, 13: Collana
di Testi Patristici, XC, Roma, 1990, pp. 379-380).
144. O trabalho sem Deus é inútil: Sl 126
(127),1-5
31 de agosto de 2005
1. O Salmo 126,
agora proclamado, apresenta diante dos nossos olhos um espetáculo em movimento:
uma casa em construção, a cidade com os seus guardas, a vida das famílias, as
vigílias noturnas, o trabalho quotidiano, os pequenos e os grandes segredos da
existência. Mas acima de tudo eleva-se uma presença decisiva, a do Senhor, que
paira sobre as obras do homem, como sugere o início incisivo do Salmo: “Se o
Senhor não construir a nossa casa, em vão trabalharão seus construtores” (v.
1).
Sem dúvida, uma
sociedade sólida nasce do compromisso de todos os seus membros, mas precisa da
bênção e do amparo daquele Deus que, infelizmente, muitas vezes é excluído ou
ignorado. O Livro dos Provérbios
realça a primazia da ação divina para o bem-estar de uma comunidade e o faz de
maneira radical, afirmando que “a bênção do Senhor é que enriquece, o nosso
esforço nada lhe acrescenta” (Pr 10,22).
2. Este Salmo
sapiencial, fruto da meditação sobre a realidade da vida de todos os dias, está
construído substancialmente sobre um contraste: sem o Senhor, em vão se procura
construir uma casa estável, edificar uma cidade segura, fazer frutificar a
própria fadiga (vv. 1-2). Com o Senhor, ao contrário, tem-se prosperidade e
fecundidade, uma família rica de filhos e serena, uma cidade bem fornecida e
defendida, livre de pesadelos e inseguranças (vv. 3-5).
O texto inicia
com a menção feita ao Senhor representado como construtor da casa e sentinela
que vigia sobre a cidade (cf. Sl
120,1-8). O homem sai de manhã para se empenhar no seu trabalho e no sustento
da família e ao serviço do desenvolvimento da sociedade. É um trabalho que
ocupa as suas energias, provocando o suor no seu rosto (cf. Gn 3,19) durante todo o dia (v. 2).
3. Mesmo
reconhecendo a importância do trabalho, o salmista não hesita em afirmar que
todo este trabalho é inútil se Deus não está ao lado de quem trabalha. E afirma
que, ao contrário, Deus gratifica até o sono dos seus amigos. O salmista deseja
assim exaltar a primazia da graça divina, que imprime consistência e valor ao
agir humano, mesmo marcado pelas limitações e pela caducidade. No abandono
sereno e fiel da nossa liberdade ao Senhor, também as nossas obras se tornam
sólidas, capazes de um fruto permanente. O nosso “sono” torna-se, desta forma,
um repouso abençoado por Deus, destinado a sigilar uma atividade que tem
sentido e consistência.
4. Passa-se,
neste ponto, a outro cenário descrito pelo nosso Salmo. O Senhor oferece o dom
dos filhos, considerados uma bênção e uma graça, sinal da vida que continua e
da história da salvação orientada a novas etapas (v. 3). O salmista exalta em
particular os “filhos de um casal de esposos jovens”: o pai que teve filhos
quando jovem não só os verá em todo o seu vigor, mas serão o seu amparo na
velhice. Assim, ele poderá enfrentar com segurança o futuro, tornando-se
semelhante a um guerreiro, armado com aquelas “flechas” afiadas e vitoriosas
que são os filhos (vv. 4-5).
A imagem, tirada
da cultura daquela época, tem a finalidade de celebrar a segurança, a
estabilidade, a força de uma família numerosa, como é repetido no seguinte
Salmo 127, no qual é esboçado o retrato de uma família feliz.
O quadro final
representa um pai circundado pelos seus filhos, o qual é recebido com respeito
às portas da cidade, sede da vida pública. Por conseguinte, a geração é um dom
portador de vida e de bem-estar para a sociedade. Disto somos conscientes nos
nossos dias diante de nações nas quais a diminuição demográfica priva do vigor,
da energia, do futuro encarnado pelos filhos. Mas, acima de tudo, eleva-se a
presença abençoadora de Deus, fonte de vida e de esperança.
5. O Salmo 126
foi usado com frequência pelos autores espirituais precisamente para exaltar
esta presença divina, decisiva para proceder pelo caminho do bem e do reino de
Deus. Assim o monge Isaías (falecido em Gaza em 491) no seu Asceticon (Logos 4, 118), recordando o exemplo dos antigos Patriarcas e Profetas,
ensina: “Colocaram-se sob a proteção de Deus, implorando a sua assistência, sem
depor a sua confiança em qualquer fadiga realizada. E a proteção de Deus foi
para eles uma cidade fortificada, porque sabiam que sem a ajuda de Deus não
tinham poder e a sua humildade fazia-lhes dizer com o salmista: ‘Se o Senhor
não construir a nossa casa, em vão trabalharão seus construtores; se o Senhor
não vigiar nossa cidade, em vão vigiarão as sentinelas!’” (Recueil ascéptique, Abadia de Bellefontaine, 1976, pp. 74-75). Isto
é válido também hoje: só a comunhão com o Senhor pode guardar as nossas casas e
as nossas cidades.
145. Cristo, o Primogênito de toda a
criatura e o Primogênito dentre os mortos: Cl 1,12-20
07 de setembro de 2005
1. Já nos detivemos
anteriormente sobre o grandioso afresco de Cristo, Senhor do universo e da
história, que domina o hino colocado no início da Carta de São Paulo aos Colossenses (cf. Catequeses nn. 105.127). Este cântico, de fato, marca as quatro
semanas nas quais se desenvolve a Liturgia das Vésperas.
O centro do hino
é constituído pelos versículos 15-20, nos quais entra em cena de maneira direta
e solene Cristo, definido “imagem” do “Deus invisível” (v. 15). A palavra grega
eikon, “ícone”, é querida ao
Apóstolo: nas suas Cartas usa-a nove
vezes, aplicando-a quer a Cristo, ícone perfeito de Deus (cf. 2Cor 4,4), quer ao homem, imagem e glória de Deus (cf. 1Cor 11,7). Mas, com o pecado, os
homens “trocaram a glória do Deus incorruptível por figuras representativas do
homem corruptível” (Rm 1,23),
escolhendo adorar os ídolos, tornando-se semelhantes a eles.
Por isso,
devemos modelar continuamente o nosso ser e a nossa vida à imagem do Filho de
Deus (cf. 2Cor 3,18), porque fomos
“libertados do império das trevas”, “transportados para o reino de seu Filho bem-amado”
(Cl 1,13). Este é o primeiro
imperativo deste hino: modelar a nossa vida à imagem do Filho de Deus, entrando
nos seus sentimentos e na sua vontade, no seu pensamento.
2. Depois,
Cristo é proclamado “Primogênito (gerado antes) de toda criatura” (v. 15).
Cristo precede toda a criação (v. 17), sendo gerado desde a eternidade: por
isso “n’Ele é que tudo foi criado, o que há nos céus e o que existe sobre a
terra” (v. 16). Também na antiga tradição hebraica se afirma que “todo o mundo
foi criado em vista do Messias” (Sanhedrin
98b).
Para o Apóstolo,
Cristo é o princípio de união (“por Ele subsiste o universo”), o mediador e o
destino final para o qual converge toda a criação (“por Ele e para Ele”). Ele é
“o primogênito de muitos irmãos” (Rm
8,29), ou seja, é o Filho por excelência na grande família dos filhos de Deus,
na qual nos insere o Batismo.
3. Neste ponto,
o olhar passa do mundo da criação para a história: Cristo é “a Cabeça da
Igreja, que é seu Corpo” (v. 18) e já o é através da sua Encarnação. De fato,
Ele entrou na comunidade humana, para regê-la e unificá-la em um “corpo”, isto
é, em uma unidade harmoniosa e fecunda. A consistência e o crescimento da humanidade
têm em Cristo a raiz, o fulcro vital, “o princípio”.
Precisamente com
esta primazia Cristo pode tornar-se o princípio da ressurreição de todos, o “Primogênito
entre os mortos”, porque “em Cristo todos voltarão a receber a vida...
primeiro, Cristo, como primícias, depois, aqueles que pertencem a Cristo, por
ocasião da sua vinda” (1Cor 15,22-23).
4. O hino
encaminha-se para a conclusão celebrando a “plenitude”, em grego pleroma, que Cristo tem em si como dom
do amor do Pai. É a plenitude da divindade que se irradia tanto no universo
como na humanidade, tornando-se fonte de paz, de unidade, de harmonia perfeita
(vv. 19-20).
Esta “reconciliação”
e esta “pacificação” são realizadas através “do sangue de sua cruz” (v. 20),
pelo qual somos justificados e santificados. Derramando o seu sangue e
oferecendo-se a si mesmo, Cristo efundiu a paz que, na linguagem bíblica, é
síntese dos bens messiânicos e plenitude salvífica que se difunde em toda a
realidade criada.
Por isso, o hino
termina com um horizonte luminoso de reconciliação, unidade, harmonia e paz,
sobre o qual se eleva solene a figura do seu artífice, Cristo, “Filho bem-amado”
do Pai.
5. Os escritores
da antiga tradição cristã refletiram sobre esta densa perícope. São Cirilo de
Jerusalém, num dos seus diálogos, cita o cântico da Carta aos Colossenses para responder a um interlocutor anônimo que
lhe tinha perguntado: “Dizemos, portanto, que o Verbo gerado por Deus Pai sofreu
depois por nós na sua carne?”. A resposta, em continuidade com o cântico, é
afirmativa.
De fato, afirma
Cirilo, “a imagem do Deus invisível, o primogênito de todas as criaturas,
visível e invisível, pelo qual e no qual tudo existe, foi dado, diz Paulo, como
cabeça à Igreja: além disso, ele é o primogênito de muitos mortos”, isto é, o primeiro
na série dos mortos que ressuscitam. “Ele - prossegue Cirilo - ‘renunciando à
alegria que lhe fora proposta, sofreu a cruz, desprezando a ignomínia’ (Hb 12,2). Nós dizemos que não foi um
simples homem, cheio de honras, não sei como, o que unindo-se a ele foi sacrificado
por nós, mas que o próprio Senhor da glória foi crucificado” (Porque Cristo é um: Coleção de Textos
Patrísticos, XXXVII, Roma, 1983, p. 101).
Diante deste
Senhor da glória, sinal do amor supremo do Pai, também nós elevamos o nosso canto
de louvor e nos prostramos em adoração e agradecimento.
O "Primogênito de toda criatura", senhor dos anjos (cf. Cl 1,15) (Cristo, o Rei Universal - Jan Henryk de Rosen) |
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