Iniciando a IV e última semana do Saltério na série de Catequeses do Papa Bento XVI sobre os salmos e cânticos das Vésperas, propomos
hoje suas reflexões sobre os textos das I Vésperas do domingo da IV semana,
proferidas nos dias 12 de outubro (Sl 121), 19 de outubro (Sl 129) e 26 de
outubro de 2005 (Fl 2,6-11).
150. Jerusalém, cidade santa: Sl
121(122),1-9
12 de outubro de 2005
1. É um dos mais
bonitos e apaixonantes “cânticos das subidas” o que agora ouvimos e apreciamos
em oração. Trata-se do Salmo 121, uma celebração viva e comunitária em
Jerusalém, a cidade santa para a qual se dirigem os peregrinos.
De fato, logo na
abertura fundem-se juntamente os dois momentos vividos pelo fiel: o do dia em
que aceitou o convite a ir “à casa do Senhor” (v. 1) e o da chegada jubilosa às
“portas” de Jerusalém (v. 2); agora os pés pisam finalmente aquela terra santa
e amada. Precisamente, então, os lábios se abrem para um cântico de festa em
honra de Sião, considerada no seu profundo significado espiritual.
2. “Cidade bem edificada”
(v. 3), símbolo de segurança e de estabilidade, Jerusalém é o coração da
unidade das doze tribos de Israel, que para ela convergem como centro da sua fé
e do seu culto. Com efeito, ali, elas sobem “para louvar o nome do Senhor” (v.
4), no lugar que a “Lei de Israel” (Dt
12,13-14; 16,16) estabeleceu como único santuário legítimo e perfeito.
Existe em
Jerusalém outra realidade relevante, também ela sinal da presença de Deus em
Israel: é o “trono de Davi” (v. 5), isto é, governa a dinastia davídica,
expressão da ação divina na história, que teria chegado com o Messias (2Sm 7,8-16).
"Das profundezas eu clamo a vós, Senhor" (Sl 129,1) (Jesus caminha sobre as águas e salva Pedro) |
3. O “trono de Davi” é ao mesmo tempo chamado “sede
da justiça” (v. 5), porque o rei era também o juiz supremo. Assim Jerusalém,
capital política, também era a sede judiciária suprema, onde se resolviam em
última instância as controvérsias: desta forma, saindo de Sião, os peregrinos
hebreus regressavam às suas cidades mais justos e pacificados.
Assim, o Salmo
traçou um retrato ideal da cidade santa na sua função religiosa e social,
mostrando que a religião bíblica não é abstrata nem intimidatória, mas é
fermento de justiça e de solidariedade. À união com Deus segue necessariamente à
dos irmãos entre si.
4. Chegamos
agora à invocação final (vv. 6-9). Ela está toda ritmada sobre a palavra
hebraica shalom, “paz”,
tradicionalmente considerada na base do próprio nome da cidade santa: Jerushalaim, interpretada como “cidade da
paz”.
Como sabemos, shalom faz alusão à paz messiânica, que
reúne em si alegria, prosperidade, bem, abundância. Aliás, na saudação final
que o peregrino dirige ao templo, à “casa do Senhor”, acrescenta à paz o “bem”:
“Eu te desejo todo o bem” (v. 9). Tem-se assim de forma antecipada a saudação
franciscana: “Paz e bem!”. Todos temos um pouco de alma franciscana. É um voto
de bênção para os fiéis que amam a cidade santa, para a sua realidade física de
muros e casas nos quais pulsa a vida de um povo, para todos os irmãos e amigos.
Desta forma, Jerusalém se tornará um lar de harmonia e de paz.
5. Concluindo a
nossa meditação sobre o Salmo 121 com uma reflexão sugerida pelos Padres da
Igreja, para os quais a antiga Jerusalém era sinal de outra Jerusalém, também
ela “construída como cidade bem edificada”. Esta cidade - recorda São Gregório
Magno nas Homilias sobre Ezequiel - “já
possui uma grande construção nos costumes dos santos. Em um edifício, uma pedra
serve de base para outra, porque se coloca uma pedra sobre outra, e quem ampara
outro é, por sua vez, amparado por alguém. Assim, precisamente assim, na santa
Igreja, cada um ampara o outro e é amparado. Os mais próximos amparam-se
reciprocamente, e assim por meio deles eleva-se o edifício da caridade. Eis por
que Paulo admoesta, dizendo: ‘Carregai o peso uns dos outros e assim cumprireis
a Lei de Cristo’ (Gl 6,2). Realçando
a força desta lei, diz: ‘é no amor que está o pleno cumprimento da lei’ (Rm 13,10). Se eu, de fato, não me
esforço por vos aceitar tal como sois, e se vós não vos comprometerdes a
aceitar-me tal como sou, não pode erguer-se o edifício da caridade entre nós,
mesmo estando unidos por amor recíproco e paciente”.
E, para
completar a imagem, não esqueçamos o que “há um alicerce que suporta todo o
peso da construção, é o nosso Redentor, o qual sozinho consente no seu conjunto
os costumes de todos nós. Dele o Apóstolo diz: ‘ninguém pode pôr um alicerce
diferente do que já foi posto: Jesus Cristo’ (1Cor 3,11). O fundamento suporta as pedras e não é suportado pelas
pedras; isto é, o nosso Redentor carrega o peso de todas as nossas culpas, mas
n’Ele não houve culpa alguma a ser tolerada” (2, 1, 5: Obras de Gregório Magno, III/2, Roma, pp. 27.29).
E, assim, o
grande Papa São Gregório diz-nos o que significa o Salmo concretamente para a
prática da nossa vida, diz-nos que devemos ser na Igreja de hoje uma verdadeira
Jerusalém, isto é, um lugar de paz, “suportando-nos uns aos outros”, tal como
somos; “suportando-nos juntos” na alegre certeza de que o Senhor nos “suporta a
todos”. E assim cresce a Igreja, como uma verdadeira Jerusalém, um lugar de
paz. Mas queremos também rezar pela cidade de Jerusalém, para que seja cada vez
mais um lugar de encontro entre as religiões e os povos; para que seja
realmente um lugar de paz.
151. Das profundezas clamo a ti: Sl
129(130),1-8
19 de outubro de 2005
1. Foi
proclamado um dos Salmos mais célebres e amados pela tradição cristã: o De profundis, assim chamado devido ao
seu início na versão latina. Com o Miserere,
ele tornou-se um dos salmos penitenciais preferidos na devoção popular.
Além da sua
aplicação fúnebre, o texto é antes de tudo um cântico à misericórdia divina e à
reconciliação entre o pecador e o Senhor, um Deus justo e sempre pronto a
revelar-se “misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e
fidelidade, que mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a
iniquidade, a rebeldia e o pecado” (Ex
34,6-7). Precisamente por este motivo o nosso Salmo encontra-se inserido na Liturgia
vespertina do Natal e de toda a oitava do Natal, assim como na do IV Domingo de
Páscoa e da Solenidade da Anunciação do Senhor.
2. O Salmo 129
inicia com uma voz que se eleva das profundezas do mal e da culpa (vv. 1-2). O “eu”
orante dirige-se ao Senhor dizendo: “Clamo a vós, Senhor”. Depois, o Salmo
desenvolve-se em três momentos dedicados aos temas do pecado e do perdão. Dirige-se
antes de tudo a Deus, interpelado diretamente: “Se levardes em conta nossas
faltas, quem haverá de subsistir? Mas em vós se encontra o perdão, eu vos temo
e em vós espero.” (vv. 3-4).
É significativo
o fato de que aquilo que gera o temor, atitude de respeito misturado com amor,
não é o castigo, mas o perdão. Mais que a cólera de Deus, deve causar em nós um
santo temor a sua magnanimidade generosa e desarmante. De fato, Deus não é um soberano
inexorável que condena o culpado, mas um pai amoroso, que devemos amar não por
receio de uma punição, mas pela sua bondade pronta a perdoar.
3. No centro do
segundo momento está o “eu” do orante, que já não se dirige ao Senhor, mas fala
d’Ele: “No Senhor ponho a minha esperança... A minha alma espera no Senhor mais
que o vigia pela aurora” (vv. 5-6). Agora florescem no coração do salmista
arrependido a expectativa, a esperança, a certeza de que Deus pronunciará uma
palavra libertadora e cancelará o pecado.
A terceira e
última etapa no desenvolvimento do Salmo abrange todo o Israel, o povo muitas
vezes pecador e consciente da necessidade da graça salvífica de Deus: “Espere Israel
pelo Senhor... Pois no Senhor se encontra toda graça e copiosa redenção. Ele
vem libertar a Israel de toda a sua culpa” (vv. 7-8).
A salvação
pessoal, antes implorada pelo orante, é agora ampliada a toda a comunidade. A
fé do salmista insere-se na fé histórica do povo da Aliança, “libertado” pelo
Senhor não só das angústias da opressão egípcia, mas também “de toda a sua
culpa”. Pensemos que o povo da eleição, o povo de Deus, agora somos nós. Também
a nossa fé se insere na fé comum da Igreja. E precisamente assim nos dá a certeza
de que Deus é bom para conosco e nos liberta das nossas culpas.
Partindo do
abismo tenebroso do pecado, a súplica do De
profundis alcança o horizonte luminoso de Deus, onde domina “a misericórdia
e a redenção”, duas grandes características do Deus que é amor.
4.
Recomendemo-nos agora à meditação que a tradição cristã fez sobre este Salmo.
Escolhamos a palavra de Santo Ambrósio: nos seus escritos, ele recorda com
frequência os motivos que estimulam a invocar o perdão de Deus.
“Temos um Senhor
bom que a todos quer perdoar”, recorda no tratado sobre A penitência, e acrescenta: “Se queres ser justificado, confessa o
teu crime: uma humilde confissão dos pecados desfaz o enlace das culpas... Tu
vês com qual esperança de perdão te estimula a confessar” (2, 6, 40-41: Saemo,
XVII, Milão-Roma, 1982, p. 235).
Na Exposição do Evangelho segundo Lucas,
repetindo o mesmo convite, o Bispo de Milão expressa a admiração pelos dons que
Deus acrescenta ao seu perdão: “Vê como Deus é bom, e disposto a perdoar os
pecados: não só volta a dar o que tinha tirado, mas concede também dons
inesperados”. Zacarias, pai de João Batista, tinha permanecido mudo por não ter
acreditado no anjo, mas depois, perdoando-o, Deus concedera-lhe o dom de
profetizar no canto do “Benedictus”: “Aquele
que pouco antes era mudo, agora já profetiza”, observa Santo Ambrósio, “é uma
das maiores graças do Senhor, que precisamente aqueles que o renegaram o
confessem. Por conseguinte, ninguém desanime, ninguém desespere das recompensas
divinas, mesmo se o atormentam antigos pecados. Deus sabe mudar o parecer, se
tu souberes emendar a culpa” (2, 33: Saemo, XI, Milão-Roma, 1978, p. 175).
152. Cristo, o Servo de Deus: Fl 2,6-11
26 de outubro de 2005
1. Mais uma vez,
seguindo o percurso proposto pela Liturgia das Vésperas com os vários salmos e
cânticos, ouvimos ressoar o maravilhoso e fundamental hino inserido por São Paulo
na Carta aos Filipenses.
No passado (cf. Catequeses nn. 92; 114; 136), já
realçamos que o texto contém um duplo movimento: descendente e ascendente. No
primeiro, Jesus Cristo, do esplendor da divindade que lhe pertence por natureza,
escolhe descer até a humilhação da “morte de cruz”. Assim Ele mostra-se
verdadeiramente homem e nosso redentor, com uma participação autêntica e plena
na nossa realidade humana de sofrimento e de morte.
2. O segundo
movimento, o ascendente, revela a glória pascal de Cristo que, depois da Morte,
se manifesta de novo no esplendor da sua majestade divina.
O Pai, que tinha
acolhido o ato de obediência do Filho na Encarnação e na Paixão, “exalta-o” agora
de maneira supereminente, como diz o texto grego. Esta exaltação é expressa não
só através da entronização à direita de Deus, mas também com a concessão a
Cristo de um “nome” “elevado muito acima de outro nome” (v. 9).
Pois bem, na
linguagem bíblica o “nome” indica a verdadeira essência e a função específica
de uma pessoa, manifesta a sua realidade íntima e profunda. Ao Filho, que por
amor se humilhou na morte, o Pai confere uma dignidade incomparável, o “Nome”
mais excelso, o de “Senhor”, precisamente do próprio Deus.
3. De fato, a
proclamação de fé, entoada em coro pelo céu, pela terra e pelos abismo,
prostrados em adoração, é clara e explícita: “Jesus Cristo é o Senhor!” (v.
11). Em grego, afirma-se que Jesus é Kyrios,
um título certamente real, que na tradução grega da Bíblia tomava o nome de
Deus revelado a Moisés, nome sagrado e impronunciável. Então, por um lado, há o
reconhecimento do senhorio universal de Jesus Cristo, que recebe a homenagem de
toda a criação, como um súdito prostrado aos seus pés. Mas por outro lado, a
aclamação de fé declara Cristo subsistente na forma ou condição divina,
apresentando-o, por conseguinte, como digno de adoração. Com este nome, “Kyrios”, reconhece-se Cristo como
verdadeiro Deus.
4. Neste hino a
referência ao escândalo da cruz (cf. 1Cor
1,23), e ainda antes à verdadeira humanidade do Verbo feito homem (cf. Jo 1,14), entrelaça-se e tem o seu
ápice no acontecimento da Ressurreição. À obediência sacrifical do Filho
segue-se a resposta glorificante do Pai, à qual se une a adoração por parte da
humanidade e da criação. A singularidade de Cristo emerge da sua função de
Senhor do mundo remido, que lhe foi conferida devido à sua obediência perfeita
“até à morte”. O projeto de salvação tem no Filho o seu pleno cumprimento, e os
fiéis são convidados - sobretudo na Liturgia - a proclamá-lo e a viver os seus
frutos.
Esta é a meta à
qual nos conduz o hino cristológico que há séculos a Igreja medita, canta e
considera guia de vida: “Tende em vós os mesmos sentimentos, que estão em
Cristo Jesus” (Fl 2,5).
5. Confiemo-nos
agora à meditação que São Gregório Nazianzeno fez sabiamente sobre o nosso
hino. Num poema em honra de Cristo, o grande Doutor da Igreja do século IV
declara que Jesus Cristo “não se despojou de nenhuma parte constitutiva da sua
natureza divina, e não obstante isto me salvou como um curador que se inclina
sobre as feridas fétidas... Era da estirpe de Davi, mas foi o criador de Adão.
Tinha a carne, mas também desconhecia o corpo. Foi gerado por uma mãe, mas por
uma mãe virgem; era circunscrito, mas também imenso. Acolheu-o uma manjedoura,
mas uma estrela fez de guia aos magos, que chegaram trazendo-lhe dons e diante
dele dobraram os joelhos. Como um mortal lutou com o demônio, mas, sendo
invencível, superou o tentador com um tríplice combate... Foi vítima, mas
também sumo sacerdote; foi sacrificador, mesmo sendo Deus. Ofereceu o seu
sangue, e deste modo purificou o mundo inteiro. Foi elevado da terra numa cruz,
mas o pecado permaneceu crucificado... Morreu, mas ressurgiu dos abismos e
ressuscitou muitos que estavam mortos. O primeiro acontecimento é
característico da miséria humana, mas o segundo é próprio da riqueza do ser
incorpóreo... O Filho imortal assumiu em si aquela forma terrena, porque te
quer bem” (Carmina arcana, 2: Collanna di Testi Patristici, LVIII,
Roma, 1986, pp. 236-238).
No final desta
meditação, gostaria de realçar duas palavras da nossa vida. Em primeiro lugar,
esta admoestação de São Paulo: “Tende em vós os mesmos sentimentos, que estão
em Cristo Jesus” (Fl 2,5). Aprender a
sentir como Jesus sentia; conformar o nosso modo de pensar, de decidir, de agir
com os sentimentos de Cristo; encaminhemo-nos pela via justa. A outra palavra é
de São Gregório Nazianzeno: “Ele, Jesus, quer-te bem”. Esta palavra de ternura
é para nós um grande alívio e conforto, mas também uma grande responsabilidade,
dia após dia.
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