Homilia das Ordenações na
Solenidade de São Pedro e São Paulo
O horizonte cristão generosamente
oferecido
Irmãos caríssimos, especialmente os que sereis ordenados diáconos e presbíteros nesta solenidade de São Pedro e São Paulo:
Parto de
duas passagens das leituras de há pouco. A primeira sobre Pedro quando, estando
preso, «a Igreja orava instantemente a Deus por ele». Importante então, como
importa sempre, como importa agora. Estas ordenações envolvem-se na oração da
Igreja, que aqui todos somos. São momento de graça, a graça é de Deus e a Deus
a pedimos para os ordinandos.
Não é um
pormenor, coisa que pudesse ser ou não ser. É indispensável que seja assim,
para que os ministros ordenados prossigam exterior e interiormente livres no
serviço que Deus lhes confia. Rezar pelos ministros sagrados é garantir a
constante sacralidade do seu serviço, que só com Deus levarão por diante. Daqui
a pouco, nas ladainhas, invocaremos os amigos do Céu, que decerto os
acompanharão. Hoje e depois, pessoal e comunitariamente, sejamos os seus
melhores amigos na terra, concretizando a amizade em oração estaremos cada vez
melhor, nós e eles, quando o fizermos sempre mais.
Ouvimos a
Paulo: «E agora já me está preparada a coroa da justiça, que o Senhor, justo
juiz, me há de dar naquele dia; e não só a mim, mas a todos aqueles que tiverem
esperado com amor a sua vinda». Reparemos no âmbito. Vistas largas e da maior
distância, muito além de qualquer desejo imediato e comum. A coroa que Paulo
tem por certa, para si e para nós que o ouvimos, é o próprio Senhor Jesus,
pondo como condição esperar com amor a sua vinda.
Nada menos
do que isso, como dirá noutro passo das suas cartas, vivíssimo resumo da sua
espiritualidade. Quase o devíamos soletrar: «Assim posso conhecê-lo a Ele
[Cristo], na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos,
conformando-me com Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os
mortos. Não que já o tenha ou já seja perfeito; mas corro, para ver se o alcanço,
já que fui alcançado por Cristo Jesus» (Fl 3,10-12).
Não conheço melhor síntese do que seja e deva ser a vida em Cristo como desejo
e alcance.
Tão grande
alcance, este que em Jesus se atinge, só Deus no-lo desvenda. Como ouvimos há
pouco, depois de Pedro afirmar que Jesus é o Messias, o Filho de Deus vivo:
«Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to
revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus».
“Carne e
sangue” somos nós, só por nós e como humanidade apenas. Dá alguma coisa para a
terra, mas é insuficiente para o céu. Pó levantado e logo pousado, por algum
vento que sopre e deixe de soprar. Além, muito além, nos levará o Espírito
divino, que de Deus Pai nos leva a Cristo, para em Cristo nos elevar ao Pai. Aí
sim, nos poderemos reconhecer e realizar infinitamente também. Testemunhá-lo na
vida e oferecê-lo em palavras e gestos sacramentais é a essência do ministério
ordenado. Isto mesmo e nada menos do que isto.
Aplico-o
brevemente aos diáconos e aos presbíteros. Quando o II Concílio do Vaticano
restaurou o diaconado permanente, fê-lo com a intenção de realçar e capacitar a
dimensão de serviço na Igreja e da Igreja para o mundo. Os que são ordenados
neste grau tornam-se sacramento da diaconia de Cristo, que nesses termos se
apresentou a si próprio: «Eu estou no meio de vós como aquele que serve [= um
diácono] (Lc 22,27)».
Pois bem,
sacramento da diaconia de Cristo significa serviço como Cristo o prestou e no
sentido pleno que só Cristo proporciona a quem serve. Será simples, concreto e
eficaz como todo o serviço humano deve ser. Mas será tão total, profundo e
benéfico como só divinamente pode acontecer. Afirma o Diretório do ministério e da vida dos diáconos permanentes (nn.
49-50): «Crescer na imitação do amor de Cristo pelo homem, amor que supera os
limites de toda a ideologia humana, será, portanto, tarefa essencial da vida
espiritual do diácono […]. O diácono, portanto, deve lembrar-se que viver a
diaconia do Senhor supera toda a capacidade natural».
Assim sendo,
caríssimos ordinandos de diácono, deveis pedir instantemente a graça de servir
com os sentimentos de Cristo, atentos como Ele aos mais pobres, prestáveis para
todos, amáveis e simples, com inteira qualidade evangélica.
Dirijo-me
agora a vós, caríssimos ordinandos de presbítero, lembrando o que São Paulo VI
escreveu há meio século na encíclica Sacerdotalis Caelibatus,
cuja oportunidade permanece. Na verdade, as objeções que aqui e ali se levantam
ao exercício celibatário do sacerdócio na nossa Igreja Latina, já vêm todas
elencadas e refutadas nesse notável documento, o mais completo e sistemático do
magistério pontifício sobre o assunto.
Escreve o
Papa Montini: «O sacerdócio cristão, que é novo, não pode compreender-se senão
à luz da novidade de Cristo, Pontífice supremo e Sacerdote eterno, que
instituiu o sacerdócio ministerial como participação real no seu sacerdócio
único» (SC, 19).
No vosso
caso, o dom do celibato reforça a imagem de Cristo sacerdote, que assim mesmo
viveu, como oferta de Deus Pai a todos, para todos oferecer consigo ao Pai. É
esta particular coincidência que realça e ativa a novidade evangélica,
prossegue São Paulo VI: «É o mistério da novidade de Cristo […] que torna
desejável e digna a escolha da virgindade por parte dos que são chamados pelo
Senhor a participar da sua função sacerdotal e a partilhar o seu próprio estilo
de vida» (SC, 23).
No mesmo
sentido escreveu recentemente o Papa Francisco, destacando entre as vocações
cristãs, nomeadamente laicais e matrimoniais, não menos preciosas, a vocação à
vida consagrada ou sacerdotal: «No encontro com o Senhor, alguém pode sentir o
fascínio de uma chamada à vida consagrada ou ao sacerdócio ordenado. Trata-se
de uma descoberta que entusiasma e, ao mesmo tempo, assusta, sentindo-se
chamado a tornar-se “pescador de homens” no barco da Igreja através de uma
oferta total de si mesmo e de um serviço fiel ao Evangelho e aos irmãos. […] E,
todavia, não há alegria maior do que arriscar a vida pelo Senhor!» (Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações 2019).
Cristo
valorizava o bem que outros faziam, mesmo não pertencentes ao seu grupo; e a
Igreja não tem o monopólio da bondade, nem sequer o da religião, que são lote
comum e propensão espontânea de toda a criatura humana. Mas atrai sempre para o
último estádio das coisas - das que no tempo acontecem, não como fim em si
mesmas, antes promessa além delas. Quando tal não sucede e as realidades
temporais se absolutizam, tudo descai e definha, como tragicamente sucede.
Jesus Cristo
inaugurou um mundo em que só Deus é Senhor, para que todos sejamos
verdadeiramente filhos e solidariamente irmãos. Não constituiu uma família de
sangue, para assinalar a família divina que há de ser a de todos.
Por isso
mesmo, entre as várias vocações e carismas, surge a vida consagrada e
celibatária, para que não se esbata, antes alimente, a tensão para o que
seremos finalmente em Deus. Como anunciou: «Na ressurreição nem os homens terão
mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu» (Mt 22,30). Bem vistas as coisas, a vida terrena,
na variedade das suas formas, deve educar-nos para a visão de Deus, essa sim
absoluta, bastante e eterna.
Viver o
ministério sacerdotal como Cristo e Paulo o viveram, celibatário e total, é um
legado indispensável da tradição viva que assim mesmo iniciaram. Significa e
alimenta em quem o vive a radicalidade evangélica de quem deixa o habitual para
alcançar ainda mais. Todos deixaremos tudo, tarde ou cedo, quando a morte nos
levar. Todos ganharemos tudo, se desde já o ganharmos em Cristo, na caridade
que nunca acabará. Alguns e algumas, pelo sacerdócio celibatário e pela
virgindade consagrada, realizam-no especialmente em si, para o lembrarem aos
outros, como horizonte final e aberto. Diz-se que “o homem é a medida de todas
as coisas”; mas, em Cristo, é Deus a medida da humanidade inteira.
Com o vosso
serviço evangélico, caríssimos ordinandos de diácono, ativareis em toda a
comunidade a disponibilidade constante e atenta que Cristo teve e oferece.
Com o vosso
sacerdócio celibatário, caríssimos ordinandos de presbítero, manifestareis o
coração de Cristo, onde todos igualmente cabem. Assim será por fim e assim o
assinalareis agora.
É este o
horizonte cristão, generosamente oferecido.
Santa Maria de Belém, 29 de junho de 2019.
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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