quinta-feira, 11 de julho de 2019

O sacerdote e a Oração Eucarística

Dando sequência aos textos sobre a relação entre o sacerdote e a Celebração Eucarística publicados pela Santa Sé durante o Ano Sacerdotal (2009-2010), publicamos hoje a quinta reflexão, sobre a Oração Eucarística:

Departamento das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice
O sacerdote e o Cânon da Missa ou Oração Eucarística

O coração e ápice da Santa Missa

A Oração Eucarística, conhecida na tradição oriental como Anáfora (oferta), é de fato o «coração» e o «ápice» da celebração da Santa Missa, como explica o Catecismo da Igreja Católica [1]. Na tradição romana, a Oração Eucarística recebeu o nome de Canon Missae (Cânon da Missa), expressão que se encontra nos primeiros Sacramentários e que remonta pelo menos ao Papa Vigílio (537-555), o qual fala de «prex canonica» [2].

A Anáfora ou Cânon é uma longa oração que tem a forma de ação de graças (eucharistia), guiada pelo exemplo do próprio Cristo durante a Última Ceia, quando Jesus tomou o pão e o cálice de vinho e «deu graças» (Mt 26,27; Mc 14,23; Lc 22,19; 1Cor 11,23). São Cipriano de Cartago (morto em 258), uma das testemunhas mais importantes da tradição latina, forneceu uma formulação clássica do ligame inseparável entre a celebração litúrgica e o evento da instituição da Eucaristia no Cenáculo, quando enfatizou o fato de que o celebrante deve imitar de perto os atos e as palavras que o Senhor usou naquela ocasião, e das quais depende a validade do sacramento [3].

O Papa Bento XVI expressou esta verdade essencial da fé em uma homilia proferida em Paris durante sua Viagem Apostólica de 2008:

«O pão que nós partimos é comunhão no Corpo de Cristo; o cálice de ação de graças que nós abençoamos é comunhão no Sangue de Cristo. Revelação extraordinária, que nos vem de Cristo e nos é transmitida pelos Apóstolos e por toda a Igreja há quase dois mil anos: Cristo instituiu o sacramento da Eucaristia na noite de Quinta-Feira Santa. Ele quis que o seu sacrifício estivesse de novo presente, de modo incruento, todas as vezes que um sacerdote repete as palavras da consagração sobre o pão e o vinho. Milhões de vezes desde há vinte séculos, na mais humilde das capelas como na mais grandiosa das basílicas ou das catedrais, o Senhor ressuscitado entregou-Se ao seu povo, tornando-Se assim, segundo a fórmula de Santo Agostinho, “mais íntimo a nós do que nós mesmos” (cf. Confissões III, 6.11)» [4].

As exatas palavras da «ação de graças» de Cristo - exceto aquelas da instituição, com as quais o Senhor estabeleceu o sacrifício da Nova Aliança - não nos foram transmitidas e por isso dentro da Tradição Apostólica se desenvolve uma variedade de ritos que são historicamente associados com as sedes primaciais mais importantes, que foram nomeadas no sexto cânon do Concílio de Niceia (325): Roma, Alexandria, Antioquia e, um pouco mais tarde, Bizâncio [5].


Elementos essenciais da Oração Eucarística

Os elementos essenciais da Oração Eucarística são apresentados sinteticamente no Catecismo:

- No Prefácio «a Igreja dá graças ao Pai, por meio de Cristo, no Espírito Santo, por todas as suas obras, pela criação, a redenção e a santificação. Deste modo toda a comunidade se une ao louvor incessante que a Igreja celeste, os anjos e todos os santos cantam ao Deus três vezes Santo» [6].

- Na Epiclese, a Igreja «reza ao Pai para enviar o seu Santo Espírito (ou a força da sua bênção) sobre o pão e o vinho, a fim de que se tornem, pela sua força, o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo e para que aqueles que participam da Eucaristia sejam um só corpo e um só espírito (algumas tradições litúrgicas situam a epiclese depois da Anamnese)» [7].

- No coração da Oração Eucarística, ou seja, na Narrativa da Instituição, «a eficácia das palavras e das ações de Cristo e a força do Espírito Santo torna sacramentalmente presentes sob as espécies do pão e do vinho o seu Corpo e o seu Sangue, o seu sacrifício oferecido sobre a cruz uma vez por todas» [8].

- À Narrativa da Instituição segue a Anamnese, na qual «a Igreja faz memória da Paixão, da Ressurreição e do Retorno glorioso de Jesus Cristo; ela apresenta ao Pai a oferta do seu Filho que nos reconcilia com Ele» [9].

- Nas Intercessões, se «manifesta que a Eucaristia é celebrada em comunhão com toda a Igreja do céu e da terra, dos vivos e dos defuntos, e na comunhão com os pastores da Igreja, o Papa, o Bispo da diocese, o seu presbitério e os seus diáconos, e todos os Bispos do mundo com as suas Igrejas» [10].

Da antiguidade tardia até a reforma litúrgica efetuada depois do Concílio Vaticano II, o Canon Missae era a única Oração Eucarística do Rito Romano, e é ainda assim para a Forma Extraordinária deste rito, celebrada de acordo com o Missale Romanum de 1962. Na editio typica do Missal publicada em 1970, o Cânon Romano foi conservado com algumas modificações secundárias (e com a redução dos gestos rubricais) como a primeira de quatro Orações Eucarísticas. As novas Orações Eucarísticas contêm elementos seja da tradição latina que das orientais. Sucessivamente, foram acrescentadas ao Missal ainda outras Orações Eucarísticas.

O Canon Missae remonta à segunda metade do século IV, período no qual a Liturgia latina romana começo a desenvolver-se plenamente. No seu De Sacramentis, que consiste em uma série de catequeses proferidas aos recém-batizados por volta do ano 390, Santo Ambrósio cita extensivamente trechos da Oração Eucarística utilizada naquele tempo na sua cidade [11]. Os trechos citados representam as primeiras formulações das orações Quam oblationem, Qui pridie, Unde et memores, Supra quae, e Supplices te rogamus do Cânon que se encontra nos primeiros Sacramentários romanos.

Na mais antiga tradição romana, o Cânon inicia com aquilo que nós hoje chamamos de Prefácio, um ato solene de ação de graças a Deus pelos seus inumeráveis benefícios, especialmente pela sua obra de salvação. O Sanctus foi introduzido em um momento sucessivo, separando assim o Prefácio das orações que se seguem. É uma característica própria do Rito Romano que o texto do Prefácio varie de acordo com o tempo litúrgico ou a festa celebrada. As coleções mais antigas de Missas continham vários Prefácios, que haviam sido bastante reduzidos já no início da Idade Média, de modo que o Missale Romanum de 1570 mantém apenas onze. Sucessivamente se acrescentaram outros e certamente representa um dos ganhos da obra mais recente de reforma litúrgica ter enriquecido o corpus dos Prefácios escolhendo-os das fontes antigas [12].

A oração sacerdotal

Como escreveu João Paulo II na sua Carta Apostólica Dominicae Cenae nos primeiros anos do seu pontificado, a Eucaristia é «a principal e central razão de ser do sacramento do sacerdócio, nascido efetivamente no momento da instituição da Eucaristia e junto com ela» [13]. A Oração Eucarística é de fato a oração sacerdotal por excelência, como ensina o Concílio Vaticano II: o sacerdote ordenado «cumpre o sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome de todo o povo» [14]. O sacerdote, que recebendo o sacramento da Ordem é conformado a Cristo Sumo Sacerdote, age e fala representando Cristo Cabeça. É por esta razão - escreve João Paulo II na sua última Encíclica, Ecclesia de Eucharistia - que «no Missal Romano é prescrito que seja unicamente o sacerdote a recitar a Oração Eucarística, enquanto o povo se associa com a fé e com o silêncio» [15].

Na consagração da Eucaristia, o sacerdote ordenado não age nunca sozinho, mas sempre no e com o Corpo Místico de Cristo, a Igreja, cujos membros, através das virtudes infusas da fé e da caridade, participam na ação de Cristo Cabeça representados pelo sacerdote enquanto ministro. O Papa Pio XII, na sua Encíclica Mediator Dei, afirma que também os fiéis «oferecem a Vítima divina, se bem que em um sentido diverso» em relação a como a oferece o sacerdote. Este ensinamento é confirmado em referência aos escritos sobre a Missa do Papa Inocêncio III e de São Roberto Belarmino. Pio XII chama a atenção também para o fato de que as orações litúrgicas de oferta são muitas vezes na primeira pessoa do plural, como acontece também em diversas partes do Cânon da Missa [16]. O Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia, segue a Mediator Dei quando proclama que os fiéis, ao participar do Mistério da fé, ou seja, da Santa Eucaristia, «rendam graças a Deus, oferecendo a Vítima imaculada não apenas pelas mãos do sacerdote, mas junto com ele, e aprendam a oferecer a si mesmos» [17]. Como ensina, pois, a Constituição Dogmática conciliar sobre a Igreja, «os fiéis, em virtude do seu sacerdócio real, concorrem na oferta da Eucaristia» [18]. Através do caráter indelével que receberam no Batismo, os fiéis participam no sacerdócio de Cristo e, portanto, também na oferta sacrifical que Ele faz de si mesmo ao Pai no Espírito Santo.

Este ensinamento do Magistério da Igreja oferece também o fundamento para uma renovada e mais profunda compreensão da participatio actuosa (participação ativa) dos fiéis na Liturgia, participação que não é apenas exterior, mas também e sobretudo interior. A partir desta perspectiva se compreende melhor também porque desde a época carolíngia até a reforma do Vaticano II, e também hoje na Forma Extraordinária do Rito Romano, o sacerdote celebrante reza o Cânon em silêncio. Como explicou o então Cardeal Joseph Ratzinger, assim fazendo não se nega a comunhão diante de Deus:

«Não é verdade que a recitação em voz alta, ininterrupta, da Oração Eucarística seja a condição para a participação de todos neste ato central da Celebração Eucarística. A minha proposta de então era: de um lado a educação litúrgica deve fazer sim que os fiéis conheçam o significado essencial e o endereço fundamental do Cânon; de outro, as primeiras palavras de cada oração deveriam ser pronunciadas em voz alta como um convite a toda a comunidade, de modo que, depois, a oração silenciosa de cada um faça própria a entoação e possa trazer a dimensão pessoal àquela comunitária e aquela comunitária à dimensão pessoal. Quem experimentou pessoalmente a unidade da Igreja no silêncio da Oração Eucarística, experimentou o que é o silêncio verdadeiramente pleno, que representa ao mesmo tempo um forte e penetrante grito dirigido a Deus, uma oração plena de espírito. Assim nós rezamos verdadeiramente todos juntos o Cânon, embora em conexão com a missão particular do serviço sacerdotal» [19].

Para o sacerdote, a Celebração Eucarística é o momento mais importante do dia. Todas as outras atividades, todos os outros aspectos da sua existência sacerdotal devem estar intimamente ligados à oferta do Santo Sacrifício. Aqui encontramos o coração do sacerdócio e também de toda a natureza sacramental da Igreja, como o então teólogo Joseph Ratzinger havia dito tão bem:

«Para que o evento acontecido em um tempo passado se faça presente, devem, portanto, ser pronunciadas as palavras: Este é o meu Corpo - Este é o meu Sangue. Mas nestas palavras se supõe que fale o “Eu” de Jesus Cristo. Só Ele pode dizer estas coisas; são as Suas palavras. Nenhum homem pode pretender declarar o “Eu” de Jesus Cristo como próprio. Nenhum pode aqui dizer de modo apropriado “Eu” e “Meu”. E, no entanto, isso deve ser dito, se o mistério da salvação não é mais um passado distante. Portanto, isso só pode ser dito a partir de um múnus [Vollmacht] que ninguém pode dar a si mesmo - um múnus que nem mesmo uma comunidade ou muitas comunidades podem transmitir, mas que só pode fundar-se sobre a autoridade “sacramental” dada à Igreja inteira pelo próprio Jesus Cristo. (...) E isto é exatamente a “Ordenação sacerdotal” e o “Sacerdócio”» [20].


Notas
[1] Catecismo da Igreja Católica, n. 1352.
[2] Papa Vigílio, Ep. ad Profuturum, 5: PL 69,18
[3] Cipriano de Cartago, Ep. 63,16-17: CSEL 3,714-715.
[4] Bento XVI, Homilia durante a Celebração Eucarística na Esplanade des Invalides, Paris (13 de setembro de 2008).
[5] cf. Joseph Ratzinger, Introduzione allo spirito della liturgia. San Paolo: Cinisello Balsamo, 2001, pp. 155-166.
[6] Catecismo da Igreja Católica, n. 1352.
[7] ibid., n. 1353
[8] ibid.
[9] ibid., n. 1354.
[10] ibid..
[11] Ambrósio de Milão, De Sacramentis, IV, 5,21-22; 6,26-27: CSEL 73,55 e 57.
[12] Na sua Carta aos Bispos de todo o mundo para apresentar o Motu Proprio” sobre o uso da Liturgia Romana anterior à reforma de 1970 (7 de julho de 2007), o Papa Bento XVI indica que o Missal antigo poderia ser enriquecido com a inserção de «novos santos e alguns dos novos prefácios».
[13] João Paulo II, Carta Apostólica Dominicae Cenae (24 de fevereiro de 1980), n. 2.
[14] Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática sobre a Igreja Lumen Gentium, n. 10.
[15] João Paulo II, Encíclica Ecclesia de Eucharistia (17 de abril de 2003), n. 28.
[16] Pio XII, Encíclica Mediator Dei (20 de novembro de 1947), nn. 85-87.
[17] Concílio Vaticano II, Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 48.
[18] Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, n. 10.
[19] J. Ratzinger, Introduzione allo spirito della liturgia, p. 211.
[20] J. Ratzinger, Das Fest des Glaubens. Versuche zur Theologie des Gottesdienstes. Johannes: Einsiedeln, 1993 (III ed.), pp. 84-85 (J. Ratzinger, Theologie der Liturgie. Die sakramentale Begründung christlicher Existenz. Gesammelte Schriften, 11. Freiburg: Herder, 2008, p. 626).

Tradução livre nossa a partir do texto italiano.

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