Dando sequência aos textos sobre a relação entre o sacerdote e a Celebração Eucarística publicados pela Santa Sé durante o Ano Sacerdotal (2009-2010), publicamos hoje a quinta reflexão, sobre a Oração Eucarística:
Departamento das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice
O sacerdote e o Cânon da Missa ou Oração Eucarística
O coração e ápice da Santa Missa
A Oração
Eucarística, conhecida na tradição oriental como Anáfora (oferta), é de fato o «coração» e o «ápice» da celebração
da Santa Missa, como explica o Catecismo
da Igreja Católica [1]. Na tradição romana, a Oração Eucarística recebeu o
nome de Canon Missae (Cânon da Missa), expressão que se encontra nos primeiros
Sacramentários e que remonta pelo menos ao Papa Vigílio (537-555), o qual fala
de «prex canonica» [2].
A Anáfora ou
Cânon é uma longa oração que tem a forma de ação de graças (eucharistia), guiada pelo exemplo do
próprio Cristo durante a Última Ceia, quando Jesus tomou o pão e o cálice de
vinho e «deu graças» (Mt 26,27; Mc 14,23; Lc 22,19; 1Cor 11,23). São Cipriano
de Cartago (morto em 258), uma das testemunhas mais importantes da tradição
latina, forneceu uma formulação clássica do ligame inseparável entre a
celebração litúrgica e o evento da instituição da Eucaristia no Cenáculo,
quando enfatizou o fato de que o celebrante deve imitar de perto os atos e as
palavras que o Senhor usou naquela ocasião, e das quais depende a validade do
sacramento [3].
O Papa Bento XVI
expressou esta verdade essencial da fé em uma homilia proferida em Paris
durante sua Viagem Apostólica de 2008:
«O pão que nós partimos
é comunhão no Corpo de Cristo; o cálice de ação de graças que nós abençoamos é
comunhão no Sangue de Cristo. Revelação extraordinária, que nos vem de Cristo e
nos é transmitida pelos Apóstolos e por toda a Igreja há quase dois mil anos:
Cristo instituiu o sacramento da Eucaristia na noite de Quinta-Feira Santa. Ele
quis que o seu sacrifício estivesse de novo presente, de modo incruento, todas
as vezes que um sacerdote repete as palavras da consagração sobre o pão e o
vinho. Milhões de vezes desde há vinte séculos, na mais humilde das capelas
como na mais grandiosa das basílicas ou das catedrais, o Senhor ressuscitado
entregou-Se ao seu povo, tornando-Se assim, segundo a fórmula de Santo
Agostinho, “mais íntimo a nós do que nós
mesmos” (cf. Confissões III, 6.11)» [4].
As exatas
palavras da «ação de graças» de Cristo - exceto aquelas da instituição, com as
quais o Senhor estabeleceu o sacrifício da Nova Aliança - não nos foram
transmitidas e por isso dentro da Tradição Apostólica se desenvolve uma
variedade de ritos que são historicamente associados com as sedes primaciais
mais importantes, que foram nomeadas no sexto cânon do Concílio de Niceia
(325): Roma, Alexandria, Antioquia e, um pouco mais tarde, Bizâncio [5].
Elementos essenciais da Oração Eucarística
Os elementos
essenciais da Oração Eucarística são apresentados sinteticamente no Catecismo:
- No Prefácio «a Igreja dá graças ao Pai, por
meio de Cristo, no Espírito Santo, por todas as suas obras, pela criação, a
redenção e a santificação. Deste modo toda a comunidade se une ao louvor
incessante que a Igreja celeste, os anjos e todos os santos cantam ao Deus três
vezes Santo» [6].
- Na Epiclese, a Igreja «reza ao Pai para
enviar o seu Santo Espírito (ou a força da sua bênção) sobre o pão e o vinho, a
fim de que se tornem, pela sua força, o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo e para
que aqueles que participam da Eucaristia sejam um só corpo e um só espírito
(algumas tradições litúrgicas situam a epiclese depois da Anamnese)» [7].
- No coração da
Oração Eucarística, ou seja, na Narrativa
da Instituição, «a eficácia das palavras e das ações de Cristo e a força do
Espírito Santo torna sacramentalmente presentes sob as espécies do pão e do
vinho o seu Corpo e o seu Sangue, o seu sacrifício oferecido sobre a cruz uma
vez por todas» [8].
- À Narrativa da
Instituição segue a Anamnese, na qual
«a Igreja faz memória da Paixão, da Ressurreição e do Retorno glorioso de Jesus
Cristo; ela apresenta ao Pai a oferta do seu Filho que nos reconcilia com Ele» [9].
- Nas Intercessões, se «manifesta que a
Eucaristia é celebrada em comunhão com toda a Igreja do céu e da terra, dos
vivos e dos defuntos, e na comunhão com os pastores da Igreja, o Papa, o Bispo
da diocese, o seu presbitério e os seus diáconos, e todos os Bispos do mundo
com as suas Igrejas» [10].
Da antiguidade
tardia até a reforma litúrgica efetuada depois do Concílio Vaticano II, o Canon Missae era a única Oração
Eucarística do Rito Romano, e é ainda assim para a Forma Extraordinária deste
rito, celebrada de acordo com o Missale
Romanum de 1962. Na editio typica
do Missal publicada em 1970, o Cânon Romano foi conservado com algumas
modificações secundárias (e com a redução dos gestos rubricais) como a primeira
de quatro Orações Eucarísticas. As novas Orações Eucarísticas contêm elementos
seja da tradição latina que das orientais. Sucessivamente, foram acrescentadas
ao Missal ainda outras Orações Eucarísticas.
O Canon Missae remonta à segunda metade do
século IV, período no qual a Liturgia latina romana começo a desenvolver-se
plenamente. No seu De Sacramentis,
que consiste em uma série de catequeses proferidas aos recém-batizados por
volta do ano 390, Santo Ambrósio cita extensivamente trechos da Oração
Eucarística utilizada naquele tempo na sua cidade [11]. Os trechos citados
representam as primeiras formulações das orações Quam oblationem, Qui pridie,
Unde et memores, Supra quae, e Supplices te
rogamus do Cânon que se encontra nos primeiros Sacramentários romanos.
Na mais antiga
tradição romana, o Cânon inicia com aquilo que nós hoje chamamos de Prefácio,
um ato solene de ação de graças a Deus pelos seus inumeráveis benefícios,
especialmente pela sua obra de salvação. O Sanctus
foi introduzido em um momento sucessivo, separando assim o Prefácio das orações
que se seguem. É uma característica própria do Rito Romano que o texto do
Prefácio varie de acordo com o tempo litúrgico ou a festa celebrada. As
coleções mais antigas de Missas continham vários Prefácios, que haviam sido
bastante reduzidos já no início da Idade Média, de modo que o Missale Romanum de 1570 mantém apenas
onze. Sucessivamente se acrescentaram outros e certamente representa um dos
ganhos da obra mais recente de reforma litúrgica ter enriquecido o corpus dos Prefácios escolhendo-os das
fontes antigas [12].
A oração sacerdotal
Como escreveu
João Paulo II na sua Carta Apostólica Dominicae Cenae nos primeiros anos do seu pontificado, a
Eucaristia é «a principal e central razão de ser do sacramento do
sacerdócio, nascido efetivamente no momento da instituição da Eucaristia e
junto com ela» [13]. A Oração Eucarística é de fato a oração sacerdotal por
excelência, como ensina o Concílio Vaticano II: o sacerdote ordenado «cumpre o
sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome de todo o
povo» [14]. O sacerdote, que recebendo o sacramento da Ordem é conformado a
Cristo Sumo Sacerdote, age e fala representando Cristo Cabeça. É por esta razão
- escreve João Paulo II na sua última Encíclica, Ecclesia de Eucharistia - que «no Missal Romano é prescrito que
seja unicamente o sacerdote a recitar a Oração Eucarística, enquanto o povo se
associa com a fé e com o silêncio» [15].
Na consagração
da Eucaristia, o sacerdote ordenado não age nunca sozinho, mas sempre no e com
o Corpo Místico de Cristo, a Igreja, cujos membros, através das virtudes
infusas da fé e da caridade, participam na ação de Cristo Cabeça representados
pelo sacerdote enquanto ministro. O Papa Pio XII, na sua Encíclica Mediator Dei, afirma que também os fiéis
«oferecem a Vítima divina, se bem que em um sentido diverso» em relação a como
a oferece o sacerdote. Este ensinamento é confirmado em referência aos escritos
sobre a Missa do Papa Inocêncio III e de São Roberto Belarmino. Pio XII chama a
atenção também para o fato de que as orações litúrgicas de oferta são muitas
vezes na primeira pessoa do plural, como acontece também em diversas partes do
Cânon da Missa [16]. O Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Sagrada Liturgia,
segue a Mediator Dei quando proclama
que os fiéis, ao participar do Mistério da fé, ou seja, da Santa Eucaristia, «rendam
graças a Deus, oferecendo a Vítima imaculada não apenas pelas mãos do
sacerdote, mas junto com ele, e aprendam a oferecer a si mesmos» [17]. Como
ensina, pois, a Constituição Dogmática conciliar sobre a Igreja, «os fiéis, em
virtude do seu sacerdócio real, concorrem na oferta da Eucaristia» [18].
Através do caráter indelével que receberam no Batismo, os fiéis participam no
sacerdócio de Cristo e, portanto, também na oferta sacrifical que Ele faz de si
mesmo ao Pai no Espírito Santo.
Este ensinamento
do Magistério da Igreja oferece também o fundamento para uma renovada e mais
profunda compreensão da participatio
actuosa (participação ativa) dos fiéis na Liturgia, participação que não é
apenas exterior, mas também e sobretudo interior. A partir desta perspectiva se
compreende melhor também porque desde a época carolíngia até a reforma do
Vaticano II, e também hoje na Forma Extraordinária do Rito Romano, o sacerdote
celebrante reza o Cânon em silêncio. Como explicou o então Cardeal Joseph Ratzinger,
assim fazendo não se nega a comunhão diante de Deus:
«Não é verdade
que a recitação em voz alta, ininterrupta, da Oração Eucarística seja a
condição para a participação de todos neste ato central da Celebração
Eucarística. A minha proposta de então era: de um lado a educação litúrgica
deve fazer sim que os fiéis conheçam o significado essencial e o endereço
fundamental do Cânon; de outro, as primeiras palavras de cada oração deveriam
ser pronunciadas em voz alta como um convite a toda a comunidade, de modo que,
depois, a oração silenciosa de cada um faça própria a entoação e possa trazer a
dimensão pessoal àquela comunitária e aquela comunitária à dimensão pessoal.
Quem experimentou pessoalmente a unidade da Igreja no silêncio da Oração
Eucarística, experimentou o que é o silêncio verdadeiramente pleno, que
representa ao mesmo tempo um forte e penetrante grito dirigido a Deus, uma
oração plena de espírito. Assim nós rezamos verdadeiramente todos juntos o
Cânon, embora em conexão com a missão particular do serviço sacerdotal» [19].
Para o
sacerdote, a Celebração Eucarística é o momento mais importante do dia. Todas
as outras atividades, todos os outros aspectos da sua existência sacerdotal
devem estar intimamente ligados à oferta do Santo Sacrifício. Aqui encontramos
o coração do sacerdócio e também de toda a natureza sacramental da Igreja, como
o então teólogo Joseph Ratzinger havia dito tão bem:
«Para que o evento acontecido em um tempo passado se faça presente, devem, portanto, ser pronunciadas as palavras: Este é o meu Corpo - Este é o meu Sangue. Mas nestas palavras se supõe que fale o “Eu” de Jesus Cristo. Só Ele pode dizer estas coisas; são as Suas palavras. Nenhum homem pode pretender declarar o “Eu” de Jesus Cristo como próprio. Nenhum pode aqui dizer de modo apropriado “Eu” e “Meu”. E, no entanto, isso deve ser dito, se o mistério da salvação não é mais um passado distante. Portanto, isso só pode ser dito a partir de um múnus [Vollmacht] que ninguém pode dar a si mesmo - um múnus que nem mesmo uma comunidade ou muitas comunidades podem transmitir, mas que só pode fundar-se sobre a autoridade “sacramental” dada à Igreja inteira pelo próprio Jesus Cristo. (...) E isto é exatamente a “Ordenação sacerdotal” e o “Sacerdócio”» [20].
Notas
[1] Catecismo da Igreja Católica, n. 1352.
[2] Papa Vigílio,
Ep. ad Profuturum, 5: PL 69,18
[3] Cipriano de Cartago,
Ep. 63,16-17: CSEL 3,714-715.
[4] Bento XVI, Homilia durante a Celebração Eucarística na Esplanade des Invalides, Paris (13 de setembro
de 2008).
[5] cf. Joseph
Ratzinger, Introduzione allo spirito
della liturgia. San Paolo: Cinisello Balsamo, 2001, pp. 155-166.
[6] Catecismo da Igreja Católica, n. 1352.
[7] ibid., n. 1353
[8] ibid.
[9] ibid., n. 1354.
[10] ibid..
[11] Ambrósio de
Milão, De Sacramentis, IV, 5,21-22;
6,26-27: CSEL 73,55 e 57.
[12] Na sua Carta aos Bispos de todo o mundo para apresentar o “Motu Proprio” sobre o uso da Liturgia
Romana anterior à reforma de 1970 (7 de julho de 2007), o Papa Bento XVI indica
que o Missal antigo poderia ser enriquecido com a inserção de «novos santos e
alguns dos novos prefácios».
[13] João Paulo II, Carta
Apostólica Dominicae Cenae (24 de fevereiro de 1980),
n. 2.
[14] Concílio Vaticano II, Constituição Dogmática sobre a
Igreja Lumen Gentium, n. 10.
[15] João Paulo II, Encíclica
Ecclesia de Eucharistia (17 de abril de
2003), n. 28.
[16] Pio XII, Encíclica
Mediator Dei (20 de novembro de 1947), nn.
85-87.
[17] Concílio Vaticano II, Constituição sobre a Sagrada
Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 48.
[18] Concílio Vaticano II, Lumen
Gentium, n. 10.
[19] J.
Ratzinger, Introduzione allo spirito
della liturgia, p. 211.
[20] J.
Ratzinger, Das Fest des Glaubens.
Versuche zur Theologie des Gottesdienstes. Johannes: Einsiedeln, 1993 (III
ed.), pp. 84-85 (J. Ratzinger, Theologie
der Liturgie. Die sakramentale Begründung christlicher Existenz. Gesammelte
Schriften, 11. Freiburg: Herder, 2008, p. 626).
Tradução livre nossa a partir do texto italiano.
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