quinta-feira, 9 de março de 2023

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 33

Quase concluindo o ciclo de Catequeses sobre Deus Pai, em sua meditação n. 57 o Papa São João Paulo II reflete sobre o pecado como alienação do homem.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

57. O pecado como alienação do homem
João Paulo II - 12 de novembro de 1986

1. As considerações sobre o pecado feitas neste ciclo de Catequeses exigem que voltemos sempre àquele primeiro pecado do qual se fala em Gn 3. São Paulo se refere a ele como a “desobediência” do primeiro Adão (cf. Rm 5,19), em direta conexão com a transgressão do mandamento do Criador sobre a “árvore do conhecimento do bem e do mal”. Ainda que uma leitura superficial do texto possa dar a impressão de que a proibição se referia a uma coisa irrelevante (“não deveis comer do fruto da árvore”), quem o analisa mais profundamente facilmente se convence de que o conteúdo aparentemente irrelevante da proibição simboliza uma questão fundamental. E isso aparece nas palavras do tentador que, para persuadir o homem a agir contra a proibição do Criador, o seduz com esta instigação: “No dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis Deus, conhecedores do bem e do mal” (Gn 3,5).

O pecado de Adão e Eva (Andrea Mantegna)

2. Sob esta luz é possível entender que a árvore do conhecimento e a proibição de comer seus frutos tinham por finalidade recordar ao homem que ele não é “como Deus”: é só uma criatura! Sim, uma criatura particularmente perfeita, porque feita “à imagem e semelhança de Deus”, mas sempre e somente uma criatura. Esta era a verdade fundamental do ser humano. O mandamento que o homem recebeu no princípio incluía esta verdade expressa em forma de advertência: Lembra-te de que és uma criatura chamada à amizade com Deus, e só Ele é teu Criador; não queiras ser o que não és! Não queiras ser “como Deus”. Atua segundo o que és, até porque esta já é uma medida mui alta: a medida da “imagem e semelhança de Deus”. Esta te distingue entre as criaturas do mundo visível, te coloca sobre elas. Mas ao mesmo tempo a medida da imagem e semelhança de Deus te obriga a agir em conformidade com o que és. Portanto, sê fiel à aliança que o Deus Criador fez contigo, criatura, desde o princípio.

3. Precisamente esta verdade - e, portanto, o princípio primordial do comportamento humano - não só foi posta em dúvida pelas palavras do tentador referidas em Gn 3, mas também radicalmente “contestada”. Pronunciando essas palavras tentadoras, a “serpente antiga”, como lhe chama o Apocalipse (Ap 12,9), formula pela primeira vez um critério de interpretação ao qual em seguida o homem pecador recorrerá muitas vezes, na tentativa de se afirmar e mesmo de criar para si uma ética sem Deus: isto é, o critério segundo o qual Deus é “alienante” para o homem, de modo que se este quer ser ele mesmo, deve acabar com Deus (cf. Feuerbach, Marx, Nietzsche).

4. A palavra “alienação” apresenta diversos matizes de significado. Em todos os casos indica a “usurpação” de algo que é propriedade de outro. O tentador de Gn 3 diz pela primeira vez que o Criador “usurpou” o que pertence ao homem-criatura! O atributo do homem seria, pois, o “ser como Deus”, o que deveria significar a exclusão de qualquer dependência de Deus. Desse pressuposto metafísico deriva logicamente a rejeição de toda religião como incompatível com o que o homem é. Com efeito, as filosofias ateias (ou antiteístas) sustentam que a religião é uma forma fundamental de alienação, mediante a qual o homem se priva ou se deixa despojar do que pertence exclusivamente ao seu ser humano. Inclusive ao criar para si uma ideia de Deus, o homem aliena a si mesmo, porque renuncia em favor desse Ser perfeito e feliz por ele imaginado ao que é originária e principalmente sua propriedade. A religião, por sua vez, acentua, conserva e alimenta este estado de autodespojamento em favor de um Deus de criação “idealista” e por isso é um dos principais coeficientes da “expropriação” do homem, da sua dignidade, dos seus direitos.

5. Desta falsa teoria, tão contraria aos dados da história e da psicologia religiosa, gostaria de salientar aqui que ela apresenta várias analogias com a narração bíblica da tentação e da queda. É significativo que o tentador (“a serpente antiga”) de Gn 3 não questione a existência de Deus, nem sequer negue diretamente a realidade da criação; é verdade que naquele momento histórico essas eram demasiado óbvias para o homem. Em vez disso, apesar dessa obviedade, o tentador - na própria experiência de criatura rebelde por livre escolha - busca enxertar na consciência do homem já “no princípio”, quase “em germe”, aquilo que constitui o núcleo da ideologia da “alienação”. E com isso realiza uma radical inversão da verdade sobre a criação em sua essência mais profunda. No lugar do Deus que concede ao mundo a existência, do Deus Criador, as palavras do tentador em Gn 3 apresentam um Deus “usurpador” e “inimigo” da criação, e especialmente do homem. Em realidade precisamente o homem é o destinatário de um particular dom divino, sendo criado “à imagem e semelhança de Deus”. Dessa forma a verdade é expulsa pela não-verdade; é transformada em mentira, porque manipulada pelo “pai da mentira”, tal como o Evangelho chama aquele que realizou esta falsificação no “princípio” da história humana: “Ele é homicida desde o princípio... porque nele não há verdade. Quando ele fala mentira, fala o que é próprio dele, porque ele é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44).

6. Ao buscar a fonte dessa “mentira, que se encontra no princípio da história como raiz do pecado no mundo dos seres criados e dotados de liberdade à imagem do Criador, vêm sempre à mente as palavras do grande Agostinho: “Amor sui usque ad contemptum Dei”, o amor de si até o desprezo de Deus (De Civitate Dei, XIV, 28: PL 41, 438). A mentira primordial tem sua fonte no ódio, que leva ao desprezo de Deus: “contemptus Dei”.
Esta é a medida da negatividade moral que se refletiu no primeiro pecado do homem. Isto nos permite compreender melhor o que São Paulo ensina quando qualifica o pecado de Adão como “desobediência” (Rm 5,19). O Apóstolo não fala de ódio direto a Deus, mas de “desobediência”, de oposição à vontade do Criador. Este permanecerá o caráter principal do pecado na história humana. Sob o peso desta herança a vontade do homem, debilitada e inclinada ao mal, estará permanentemente exposta à influência do “pai da mentira”. Isto pode ser visto nas diversas épocas da história. Em nossos tempos, atestam-no as diversas formas de negação de Deus, desde o agnosticismo ao ateísmo e mesmo ao antiteísmo. De diversos modos está inscrita nelas a ideia do caráter “alienante” da religião e da moral, que encontra na religião a própria raiz, tal como o “pai da mentira” havia sugerido no princípio.

7. Mas se queremos olhar para a realidade sem preconceitos e chamar as coisas pelo nome, devemos dizer francamente que, à luz da Revelação e da fé, a teoria da alienação deve ser derrubada. O que leva à alienação do homem é precisamente o pecado, é unicamente o pecado! É o pecado que, desde o “princípio”, faz com que o homem seja de certa forma “deserdado” de sua própria humanidade. O pecado “tira” ao homem, de diversos modos, aquilo que determina sua verdadeira dignidade: a imagem e semelhança de Deus. Cada pecado de certa forma “reduz” esta dignidade! Quanto mais o homem se torna “escravo do pecado” (Jo 8,34), menos desfruta da liberdade dos filhos de Deus. Ele deixa de ser senhor de si mesmo, como exige a própria estrutura do seu ser pessoa, isto é, criatura racional, livre, responsável.
A Sagrada Escritura sublinha eficazmente este conceito de alienação, ilustrando sua tríplice dimensão: a alienação do pecador de si mesmo (cf. Sl 57,4: “alienati sunt peccatores ab utero”), de Deus (cf. Ez 14,7: “[qui] alienatus fuerit a me”; Ef 4,18: “alienati a vita Dei”) e da comunidade (cf. Ef 2,12: “alienati a conversatione Israel”).

8. O pecado, portanto, não só é “contra” Deus, mas também contra o homem. Como ensina o Concílio Vaticano II: “O pecado... diminui o próprio homem, impedindo-o de conseguir a plenitude” (Gaudium et spes, n. 13). É uma verdade que não necessita ser provada com elaboradas argumentações: basta simplesmente constatá-la. Ademais, não oferecem uma eloquente confirmação disso tantas obras da literatura, do cinema, do teatro? Nelas o homem aparece debilitado, confundido, privado de um centro interior, enfurecido contra si e contra os outros, dominado por antivalores, esperando alguém que nunca chega, quase como prova de que, uma vez perdido o contato com o Absoluto, acaba perdendo a si mesmo.
É suficiente, portanto, referir-se à experiência, tanto à interior como à histórico-social em suas várias formas, para convencer-se de que o pecado é uma imensa “força destrutora”: destrói com sutil e inexorável virulência o bem da convivência entre os homens e as sociedades humanas. Precisamente por isso podemos falar com razão do “pecado social” (cf. Reconciliatio et Paenitentia, n. 16). Porém, dado que na base da dimensão social do pecado se encontra sempre o pecado pessoal, é preciso sobretudo evidenciar aquilo que o pecado destrói em cada homem, seu sujeito e artífice, considerado na sua concretude de pessoa.

9. A este respeito merece ser citada uma observação de Santo Tomás de Aquino, segundo o qual, do mesmo modo que em cada ato moralmente bom o homem como tal se torna melhor, assim também com cada ato moralmente mau o homem como tal se torna pior (cf. Summa Theologiae I-II q. 55, a. 3; q. 63, a. 2). O pecado, portanto, destrói no homem aquele bem que é essencialmente humano, de certa forma “tira” ao homem aquele bem que lhe é próprio, “usurpa” o homem a si mesmo. Neste sentido, “todo aquele que comete pecado é escravo do pecado”, como afirma Jesus no Evangelho de João (Jo 8,34). É precisamente isto que contém o conceito de “alienação”. O pecado, portanto, é a verdadeira “alienação” do ser humano racional e livre. É próprio do ser racional tender à verdade e existir na verdade. No lugar da verdade sobre o bem, o pecado introduz a não-verdade: o verdadeiro bem é eliminado por ele pecado em favor de um bem “aparente”, que não é um bem verdadeiro, tendo o verdadeiro bem sido eliminado em favor do “falso”.
A alienação que ocorre no pecado toca a esfera cognoscitiva, mas através do conhecimento atinge a vontade. E o que sucede então no terreno da vontade foi expresso talvez do modo mais exato por São Paulo ao escrever: “Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero. Ora, se faço aquilo que não quero, então já não sou eu que estou agindo, mas o pecado que habita em mim. (...) Quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. (...) Infeliz que eu sou!” (Rm 7,19-20.21.24).

10. Como podemos ver, a real “alienação” do homem - a alienação de um ser feito à imagem de Deus, racional e livre - nada mais é que “a escravidão do pecado” (Rm 3,9). E este aspecto do pecado é enfatizado com toda força pela Sagrada Escritura. O pecado não só é “contra” Deus, mas ao mesmo tempo é “contra” o homem.
Ora, se é verdade que o pecado implica, segundo sua própria lógica e segundo a Revelação, castigos adequados, o primeiro destes castigos é constituído pelo próprio pecado. Mediante o pecado o homem castiga a si mesmo! No pecado está já imanente o castigo; alguém chega a dizer: já está o inferno, como privação de Deus! “Será a mim que ofendem? - pergunta Deus por meio do Profeta Jeremias - Não é acaso a si mesmos que ofendem, para sua própria vergonha?” (Jr 7,19). “Tua maldade falará contra ti, tuas rebeliões te reprovarão” (Jr 2,19). E o Profeta Isaías lamenta: “Murchamos todos como uma folha, e as nossas maldades como o vento nos arrebatam.... Escondeste de nós a tua face e nos abandonaste ao capricho de nossa iniquidade” (Is 64,5-6).

11. Precisamente esta “entrega (e autoentrega) do homem à sua iniquidade” explica da forma mais eloquente o significado do pecado como alienação do homem. No entanto, o mal não é completo ou irremediável enquanto o homem tiver consciente dele, enquanto conservar o sentido do pecado. Mas quando falta também isto, é praticamente inevitável a queda total dos valores morais, e se faz terrivelmente iminente o risco da perdição definitiva. É por isso que devem sempre ser retomadas e meditadas com grande atenção aquelas graves palavras de Pio XII (uma expressão que se tornou quase proverbial): “O pecado do século é a perda do sentido do pecado” (Discorsi e Radiomessaggi, VIII, 1946, 288).

O pecado de Adão e Eva (Hans Thoma)
Note-se a morte que estende um véu sobre os primeiros pais

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (12 de novembro de 1986). 

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