Continuando com suas meditações sobre alguns salmos dentro das suas Catequeses sobre a oração, após o Sl 3 o Papa Bento XVI refletiu sobre o Salmo 21 (22).
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Papa Bento XVI
Audiência Geral
Quarta-feira, 14 de setembro de 2011
A oração (13):
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Sl 21)
Queridos irmãos e irmãs,
Na Catequese de hoje
gostaria de meditar sobre um Salmo com fortes implicações cristológicas, que
sobressai continuamente nas narrações da Paixão de Jesus, com a sua dupla
dimensão de humilhação e glória, de morte e vida. É o Salmo 21 (22) - 21 segundo a tradição greco-latina, 22 segundo a
tradição judaica -, uma oração intensa e comovedora, de uma densidade humana e
de uma riqueza teológica que fazem dele um dos Salmos mais recitados e
estudados de todo o Saltério. Trata-se de uma longa composição poética, e
meditaremos de modo particular sobre a sua primeira parte, centrada na
lamentação, para aprofundar algumas dimensões significativas da oração de
súplica a Deus.
Crucificação (El Greco, detalhe) |
Este Salmo
apresenta a figura de um inocente perseguido e circundado de adversários que
desejam a sua morte; e ele recorre a Deus em uma lamentação dolorosa que, na
certeza da fé, se abre misteriosamente ao louvor. Na sua oração, a realidade
angustiante do presente e a memória consoladora do passado alternam-se, em uma
difícil tomada de consciência acerca da sua situação desesperada que, no
entanto, não quer renunciar à esperança. O seu clamor inicial é um apelo
dirigido a um Deus que parece distante, que não responde e parece tê-lo
abandonado:
«Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonastes?
E ficais longe
de meu grito e minha prece?
Ó meu Deus,
clamo de dia e não me ouvis,
clamo de noite e
para mim não há resposta!» (vv. 2-3).
Deus cala-se, e
este silêncio dilacera a alma do orante, que chama incessantemente, mas sem
encontrar uma resposta. Os dias e as noites sucedem-se, em uma busca incansável
de uma palavra, de uma ajuda que não chega; Deus parece tão distante, tão
esquecido, tão ausente! A oração pede escuta e resposta, solicita um contato,
procura uma relação que possa conferir conforto e salvação. Mas se Deus não
responde, o grito de ajuda perde-se no vazio e a solidão torna-se insustentável.
E, no entanto, o orante do nosso Salmo, no seu brado, chama três vezes o Senhor
«meu» Deus, em um extremo gesto de confiança e de fé. Não obstante qualquer
aparência, o salmista não pode acreditar que o vínculo com o Senhor se tenha interrompido
totalmente; e enquanto pergunta o porquê do presumível abandono
incompreensível, afirma que o «seu» Deus não pode abandoná-lo.
Como se sabe, o
clamor inicial do Salmo, «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?», é
citado pelos Evangelhos de Mateus e de Marcos como o grito
lançado por Jesus agonizante na Cruz (cf. Mt 27,46; Mc 15,34). Ele
manifesta toda a desolação do Messias, Filho de Deus, que enfrenta o drama da
morte, uma realidade totalmente oposta ao Senhor da vida. Abandonado por quase
todos os seus, traído e renegado pelos discípulos, circundado por quantos o
insultam, Jesus encontra-se sob o peso esmagador de uma missão que deve passar
pela humilhação e o aniquilamento. Por isso, clama ao Pai, e o seu sofrimento
assume as palavras dolorosas do Salmo. Mas o seu grito não é desesperado, como o
do salmista, que na sua súplica percorre um caminho atormentado, mas que no
final acaba numa perspectiva de louvor, na confiança da vitória divina. E dado
que no uso hebraico citar o início de um Salmo implicava uma referência ao
poema inteiro, a prece dilacerante de Jesus, embora mantenha a sua carga de
sofrimento indizível, abre-se à certeza da glória. «Não tinha o Messias de
sofrer estas coisas para entrar na sua glória?», dirá o Ressuscitado aos discípulos
de Emaús (Lc 24,26). Na sua Paixão,
em obediência ao Pai, o Senhor Jesus atravessa o abandono e a morte para
alcançar a vida e para a doar a todos os fiéis.
A este grito
inicial de súplica, no nosso Salmo 21, segue-se em um contraste doloroso a
recordação do passado:
«Foi em vós que
esperaram nossos pais;
esperaram e vós
mesmo os libertastes.
Seu clamor subiu
a vós e foram salvos;
em vós confiaram
e não foram enganados» (vv. 5-6).
Aquele Deus que
hoje parece tão distante ao salmista é, no entanto, o Senhor misericordioso que
Israel sempre experimentou na sua história. O povo ao qual o orante pertence
foi objeto do amor de Deus, e pode dar testemunho da sua fidelidade. A começar
pelos Patriarcas, e depois no Egito e durante a longa peregrinação pelo deserto,
na permanência na terra prometida em contato com populações agressivas e
inimigas, até ao obscurecimento do exílio, toda a história bíblica foi uma
história de clamores de ajuda da parte do povo e de respostas salvíficas da
parte de Deus. E o salmista faz referência à fé inabalável dos seus Pais, que
«confiaram» - esta palavra é repetida três vezes - sem jamais permanecer
confundidos. Agora, no entanto, parece que esta série de invocações confiantes
e de respostas divinas se interrompeu; a situação do salmista parece desmentir
toda a história da salvação, tornando ainda mais dolorosa a realidade presente.
Mas Deus não
pode desmentir-se, e eis então que a oração volta a descrever a situação penosa
do orante, para induzir o Senhor a ter piedade e a intervir, como sempre tinha
feito no passado. O salmista define-se «um verme e não um homem; o opróbrio e o
desprezo das nações» (v. 7), é escarnecido, zombado (v. 8) e ferido
precisamente na fé: «Ao Senhor se confiou, Ele o liberte e agora o salve, se é
verdade que Ele o ama!» (v. 9). Sob os golpes ultrajantes da ironia e do
desprezo, parece quase que o perseguido perde as suas conotações humanas, como
o Servo sofredor delineado no Livro de
Isaías (cf. Is 52,14; 53,2b-3).
E como o justo oprimido do Livro da
Sabedoria (cf. Sb 2,12-20), como Jesus no Calvário (cf.
Mt 27,39-43), o salmista vê posta em
dúvida a sua relação com o seu Senhor, na evidência cruel e sarcástica daquilo
que o faz sofrer: o silêncio de Deus, a sua aparente ausência. E, no entanto,
Deus esteve presente na existência do orante com uma proximidade e uma ternura
inquestionáveis. O salmista recorda-o ao Senhor: «Desde a minha concepção me
conduzistes, e no seio maternal me agasalhastes. Desde quando vim à luz vos fui
entregue» (vv. 10-11a). O Senhor é o Deus da vida, que faz nascer e acolhe o
recém-nascido, cuidando dele com carinho paterno. E se antes recordara a
fidelidade de Deus na história do povo, agora o orante volta a evocar a própria
história pessoal de relação com o Senhor, remontando ao momento particularmente
significativo do início da sua vida. E ali, não obstante a desolação do
presente, o salmista reconhece uma proximidade e um amor divinos tão radicais
que agora pode exclamar, em uma confissão cheia de fé e geradora de esperança:
«Desde o ventre de minha mãe sois o meu Deus!» (v. 11b).
Agora a
lamentação torna-se uma súplica intensa: «Não fiqueis longe de mim, porque
padeço; ficai perto, pois não há quem me socorra!» (v. 12). A única proximidade
que o salmista sente e que o amedronta é a dos seus inimigos. Portanto, é
necessário que Deus se aproxime e que o socorra, porque os inimigos circundam e
rodeiam o orante, e são como touros poderosos, como leões que abrem as fauces
para rugir e despedaçar (vv. 13-14). A angústia altera a percepção do perigo, aumentando-o.
Os adversários parecem invencíveis, tornaram-se animais ferozes e extremamente
perigosos, enquanto o salmista é como um pequeno verme, impotente, sem qualquer
defesa. Mas estas imagens utilizadas no Salmo servem também para dizer que quando
o homem se torna brutal e agride o irmão, algo de animalesco prevalece sobre
ele, que parece perder qualquer semblante humano; a violência tem sempre algo
de bestial em si, e só a intervenção salvífica de Deus pode restituir o homem à
sua humanidade. Agora, para o salmista, objeto de uma agressão tão feroz,
parece que não existe mais salvação, e a morte começa a tomar posse dele: «Eu
me sinto como a água derramada, e meus ossos estão todos deslocados (...). Minha
garganta está igual ao barro seco, minha língua está colada ao céu da boca
(...). Eles repartem entre si as minhas vestes e sorteiam entre si a minha
túnica» (vv. 15.16.19). Com imagens dramáticas, que voltamos a encontrar nas
narrações da Paixão de Cristo, descreve-se a decomposição do corpo do condenado,
o calor insuportável que atormenta o moribundo e que encontra eco no pedido de
Jesus: «Tenho sede» (Jo 19,28), para
chegar ao gesto definitivo dos algozes que, como os soldados aos pés da Cruz,
repartem entre si as vestes da vítima, já considerada morta (cf. Mt 27,35; Mc 15,24; Lc 23,34; Jo 19,23-24).
Eis então,
imperioso, novamente o pedido de socorro: «Vós, porém, ó meu Senhor, não
fiqueis longe, ó minha força, vinde logo em meu socorro! (...) Arrancai-me da
goela do leão» (vv. 20.22a). Trata-se de um grito que abre os céus, porque
proclama uma fé, uma certeza que vai além de toda a dúvida, de toda a escuridão
e de toda a desolação. E a lamentação transforma-se, deixando espaço ao louvor
no acolhimento da salvação: «Anunciarei o vosso nome a meus irmãos e no meio da
assembleia hei de louvar-vos!» (v. 23). Assim, o Salmo abre-se à ação de
graças, ao grande hino final que abrange todo o povo, os fiéis do Senhor, a
assembleia litúrgica e as gerações vindouras (vv. 24-32). O Senhor acorreu em
ajuda, salvou o pobre e mostrou o seu rosto de misericórdia. Morte e vida
cruzaram-se em um mistério inseparável, e a vida triunfou; o Deus da salvação
manifestou-se como Senhor incontestado, que todos os confins da terra celebrarão
e diante do qual todas as famílias dos povos se prostrarão. É a vitória da fé,
que pode transformar a morte em dom da vida, o abismo da dor em fonte de
esperança.
Caríssimos
irmãos e irmãs, este Salmo levou-nos ao Gólgota, aos pés da Cruz de Jesus, para
reviver a sua Paixão e compartilhar a alegria fecunda da Ressurreição.
Portanto, deixemo-nos invadir pela luz do Mistério Pascal, mesmo na aparente
ausência de Deus, também no silêncio de Deus e, como os discípulos de Emaús,
aprendamos a discernir a verdadeira realidade, para além das aparências,
reconhecendo o caminho da exaltação precisamente na humilhação, e a plena
manifestação da vida na morte, na cruz. Assim, depositando toda a nossa
confiança e a nossa esperança em Deus Pai, em cada angústia também nós poderemos
suplicar-lhe com fé, e o nosso grito de ajuda se transformará em cântico de
louvor.
O Papa venera a Cruz |
Fonte: Santa Sé.
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