O pecado como ruptura da aliança é o tema das Catequeses nn. 55-56 do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai, que reproduzimos a seguir.
Confira a introdução às suas Catequeses sobre o Creio, com os links para as demais meditações, clicando aqui.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
55.
Pecado: Ruptura da aliança com Deus
João Paulo II - 29 de outubro
de 1986
1. Nas Catequeses deste ciclo temos
continuamente diante dos olhos a verdade sobre o pecado original e, ao mesmo tempo,
buscamos contemplar a realidade do pecado na dimensão global da história do
homem. À sua maneira, a experiência histórica confirma o que é expresso pela Revelação:
o pecado está constantemente presente na vida do homem, é constantemente atual.
Do ponto de vista do conhecimento humano, este está presente como mal moral, do
qual se ocupa de modo mais direto a ética (filosofia moral). Mas se ocupam também
dele à sua maneira também outros ramos da ciência antropológica de caráter mais
descritivo, como a psicologia e a sociologia. Uma cosa é certa: o mal moral (assim
como o bem) pertence à experiência humana, e dela partem todas as
disciplinas que pretendem estudá-lo como objeto da experiência.
Parábola do filho pródigo (Murillo): Citada em alusão ao pecado como "abuso da liberdade" |
2. Ao mesmo tempo, porém, é preciso
constatar que fora da Revelação não somos capazes de compreender plenamente nem
de expressar adequadamente a essência do pecado (ou seja, do mal moral como
pecado). Somente no contexto da relação estabelecida com Deus pela fé a
realidade total do pecado se torna compreensível. À luz desta relação busquemos,
pois, desenvolver e aprofundar esta compreensão.
Quando se trata da Revelação, sobretudo
da Sagrada Escritura, a verdade sobre o pecado nela contida não pode ser apresentando
senão retornando ao “princípio”. Em certo sentido também o pecado “atual”,
pertencente à vida de cada homem, torna-se plenamente compreensível em referência
a esse “princípio”, ao pecado do primeiro homem. E não só porque aquilo que o Concílio
de Trento chama “inclinação ao pecado” (“fomes peccati”), consequência do
pecado original, é no homem a base e a fonte dos pecados pessoais, mas também porque
esse “primeiro pecado” dos primeiros padres permanece de certa forma como “modelo”
de todo pecado pessoal cometido pelo homem. O “primeiro pecado” era em si
mesmo também um pecado pessoal: por isso os distintos elementos da sua “estrutura”
se encontram de alguma forma em qualquer outro pecado do homem.
3. O Concílio Vaticano II recorda:
“Constituído por Deus em estado de justiça [santidade], o homem, seduzido pelo maligno...
abusou de sua liberdade, insurgindo-se contra Deus e desejando
alcançar sua meta fora de Deus” (Gaudium et spes, n. 13). Com estas
palavras o Concílio trata do pecado dos primeiros pais, cometido no estado de justiça
original. Mas também em cada pecado cometido por qualquer outro homem ao longo da
história, no estado de fragilidade moral hereditária, se refletem esses mesmos
elementos essenciais. Todo pecado, com efeito, entendido como ato pessoal do homem,
contém um particular “abuso da liberdade”, isto é, um mau uso da liberdade, do
livre-arbítrio. O homem, como ser criado, abusa da liberdade da sua vontade
quando a utiliza contra a vontade do próprio Criador; quando, em seu comportamento,
“insurge-se contra Deus”; quando busca “alcançar sua meta fora de Deus”.
4. Em todo pecado repetem-se os elementos
essenciais que desde o princípio constituem o mal moral do pecado à luz da
verdade revelada sobre Deus e sobre o homem. Apresentam-se em um grau de
intensidade distinto daquele do primeiro pecado, cometido no estado de justiça
original. Os pecados pessoais, cometidos depois do pecado original, são condicionados
pelo estado de inclinação hereditária ao mal (“fomes peccati”)
em certo sentido já desde o ponto de partida. Todavia, tal situação de debilidade
hereditária não suprime a liberdade do homem e, portanto, todo pecado
atual (pessoal) contém um verdadeiro abuso da liberdade contra a vontade de Deus. O
grau deste abuso, como sabemos, pode variar, e disso depende também os diversos
graus de culpa daquele que peca. Nesse sentido, é preciso aplicar uma medida
diversa para os pecados atuais quando se trata de avaliar o grau de maldade neles
contido. Daqui provém, portanto, a diferença entre pecado “grave” e pecado “venial”.
Se o pecado grave é ao mesmo tempo “mortal”, é porque causa a perda da graça
santificante naquele que o comete.
5. São Paulo, falando do pecado de
Adão, o descreve como “desobediência” (cf. Rm 5,19); o que o
Apóstolo afirma vale também para todo pecado “atual” que o homem comete. O homem
peca transgredindo o mandamento de Deus, portanto, é “desobediente” a Deus como
Legislador Supremo. Esta desobediência, à luz da Revelação, é ao mesmo tempo ruptura
da aliança com Deus. Deus, tal como o conhecemos pela Revelação, é de fato o Deus
da aliança, e precisamente como Deus da aliança é Legislador. Com efeito,
introduz sua lei no contexto da aliança com o homem, fazendo-a condição
fundamental dessa mesma aliança.
6. Assim era já naquela aliança
original que, como lemos no Gênesis, foi violada “no princípio” (Gn
3). Isto aparece ainda mais claramente na relação do Senhor Deus com Israel nos
tempos de Moisés. A aliança estabelecida com o povo eleito sob o
monte Sinai (cf. Ex 24,3-8) possui em si, como parte
constitutiva, os Mandamentos: o Decálogo (cf. Ex 20; Dt
5). Estes constituem os princípios fundamentais e inalienáveis do comportamento
de todo homem em relação a Deus e em relação às criaturas, sendo a primeira
destas o próprio homem.
7. Segundo o ensinamento de São
Paulo na Carta aos Romanos, tais princípios fundamentais e inalienáveis
de conduta, revelados no contexto da aliança do Sinai, na realidade estão “inscritos
no coração” de todo homem, mesmo de maneira independente da Revelação feita a
Israel. Escreve, com efeito, o Apóstolo: “Quando os gentios, embora não tenham
a Lei, cumprem o que a Lei prescreve guiados pelo senso natural, esses que não
têm a Lei tornam-se Lei para si mesmos. Mostram assim que a obra da Lei está inscrita
em seus corações: sua consciência testemunha juntamente com seus pensamentos,
que ora acusam ora defendem” (Rm 2,14-15).
Assim, a ordem moral validada por Deus
com a revelação da lei no âmbito da aliança, tem consistência na lei “inscrita nos
corações”, inclusive fora dos confins marcados pela lei mosaica e pela Revelação:
podemos dizer que está inscrita na própria natureza racional do homem, como
explica de modo excelente Santo Tomás quando fala da “lex naturae”, a “lei
natural” (cf. Summa Theologiae I-II, q. 91, a. 2; q. 94, aa.
5-6). O cumprimento desta lei determina o valor moral dos atos do homem: faz
com que sejam bons. Ao contrário, a transgressão da lei “inscrita nos corações”,
isto é, na própria natureza racional do homem, faz com que os atos humanos sejam
maus. São maus porque se opõem à ordem objetiva da natureza humana e
do mundo, atrás da qual está Deus, seu Criador. Portanto, também neste estado
de consciência moral iluminado pelos princípios da lei natural, um ato
moralmente mau é pecado.
8. O caráter do pecado destaca-se
ainda mais à luz da lei revelada. O homem possui agora maior consciência de transgredir
uma lei explícita e positivamente estabelecida por Deus e, portanto, também
a consciência de que se opõe à vontade de Deus e, neste sentido, “desobedece”.
Não se trata só da desobediência a um princípio abstrato de comportamento, mas
ao princípio no qual toma forma a autoridade “pessoal” de Deus: a um princípio no
qual se exprimem a sua sabedoria e a sua Providência. Toda a lei moral é
ditada por Deus devido à sua solicitude pelo verdadeiro bem da criação, particularmente
pelo bem do homem. Precisamente este bem foi inscrito por Deus na aliança estabelecida
com o homem: seja na primeira aliança com Adão; na aliança do Sinai, por meio
de Moisés; e, por último, na aliança definitiva, revelada em Cristo e estabelecida
no sangue da sua redenção (cf. Mc 14,24; Mt 26,28;
1Cor 11,25; Lc 22,20).
9. Visto neste contexto, o pecado
como “desobediência” à lei se manifesta melhor em seu caráter de “desobediência”
pessoal a Deus: a Deus como Legislador, que é ao mesmo tempo Pai que ama. Esta mensagem,
já expressa profundamente no Antigo Testamento (cf. Os 11,1-7),
encontrará sua enunciação mais plena na parábola do “filho pródigo” (cf. Lc 15,18-21).
Em todo caso, a desobediência a Deus, isto é, a oposição à sua vontade criadora
e salvífica, que inclui o desejo do homem de “alcançar sua meta fora de Deus”, é
um “abuso da liberdade” (Gaudium et spes, n. 13).
10. Quando Jesus Cristo, na véspera
da sua Paixão, fala do “pecado” sobre o qual o Espírito Santo deve “convencer o
mundo”, explica a essência desse pecado com as palavras: “Porque eles não creem
em mim” (Jo 16,7-9). Esse “não crer” em Deus é, em certo sentido, a
primeira e fundamental forma de pecado que o homem comete contra o Deus da
aliança. Esta forma de pecado havia se manifestado já no pecado original, do qual
se fala em Gn 3. A ela se referia, para exclui-la, também a lei dada na aliança
do Sinai: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da
casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,2-3).
A ela se referem também as palavras de Jesus no Cenáculo, todo o Evangelho e o
Novo Testamento.
11. Esta incredulidade, esta falta
de confiança em Deus que se revelou como Criador, Pai e Salvador, indica que,
pecando, o homem não só transgride o mandamento (a lei), mas que realmente
se insurge contra o próprio Deus, “desejando alcançar sua meta fora d’Ele”. Deste
modo, na raiz de todo pecado atual podemos encontrar o reflexo, talvez distante
- mas não menos real -, daquelas palavras que estão na base do primeiro pecado:
as palavras do tentador, que apresentam a desobediência a Deus como caminho
para “ser como Deus”; e para conhecer, como Deus, “o bem e o mal” (cf. Gn
3,4-5).
Mas, como dissemos anteriormente, também
no pecado atual, quando se trata de pecado grave (mortal), o homem escolhe a si
mesmo contra Deus, escolhe a criação contra o Criador, rejeita o amor do Pai como
o filho pródigo na primeira fase da sua louca aventura. Em certa medida todo
pecado do homem expressa esse “mysterium iniquitatis” (2Ts 2,7)
que Santo Agostinho resumiu nas palavras: “amor sui usque ad contemptum Dei”,
o amor de si até o desprezo de Deus (De Civitate Dei, XIV, 28; PL 41,
436).
56. O pecado do homem e o “pecado do mundo”
João Paulo II - 05 de novembro de 1986
1. Nas Catequeses deste ciclo
sobre o pecado, considerado à luz da fé, o objeto direto da análise é o pecado
atual (pessoal), mas sempre em referência ao primeiro pecado,
que deixou suas consequências em todo descendente de Adão, e que por isso é chamado
pecado original. Como consequência do pecado original, os homens nascem em um
estado de fragilidade moral hereditária e, se não correspondem à graça oferecida
por Deus à humanidade por meio da redenção realizada por Cristo, facilmente tomam
o caminho dos pecados pessoais.
O Concílio Vaticano II o indica quando
escreve, entre outras coisas: “Toda a vida dos homens, individual e coletiva, apresenta-se
como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. O homem
descobre-se então incapaz de, por si mesmo, debelar eficazmente os ataques do
mal... Mas o próprio Senhor veio para libertar e confortar o homem, renovando-o
interiormente” (Gaudium et spes, n. 13). Neste contexto de tensões e de
conflitos ligados à condição da natureza humana decaída, que deve ser situada qualquer
reflexão sobre o pecado pessoal.
2. Este possui essa característica
essencial de ser sempre o ato responsável de uma determinada pessoa, um ato incompatível
com a lei moral e, portanto, contrário à vontade de Deus. O que comporta e o que
inclui em si mesmo este ato o podemos descobrir com a ajuda da Bíblia. Já no
Antigo Testamento encontramos diversas expressões para indicar os diversos
momentos ou aspectos da realidade do pecado à luz da Divina Revelação.
Assim, às vezes este é chamado simplesmente “o mal” (“ra”): quem comete
pecado faz “o que é mau aos olhos do Senhor” (Dt 31,29). Por isso o
pecador, designado também como “ímpio” (“rasa”), é aquele que “se esquece
de Deus” (Sl 9,18), que “não quer conhecer a Deus” (Jó 21,14),
em quem “não há temor de Deus” (Sl 35,2), que “não confia no Senhor”
(cf. Sl 31,10), mais ainda, que “despreza a Deus” (Sl 9,34),
acreditando que “o Senhor não vê” (Sl 93,7) e que “não nos pedirá contas”
(Sl 9,34). O pecador (ímpio), ademais, é aquele que não tem medo
de oprimir os justos (cf. Sl 11,9), nem de “fazer mal
às viúvas e aos órfãos” (cf. Sl 81,4; 93,6), nem tampouco de “retribuir
o bem com o mal” (Sl 108,5). O oposto do pecador, na Sagrada
Escritura, é o homem justo (“sadiq”). Portanto, o pecado é, no sentido mais
amplo da palavra, a injustiça.
3. Esta injustiça, que tem muitas
formas, encontra sua expressão também no termo “pesa”, no qual está
presente a ideia de mal feito ao outro, àquele cujos direitos foram
violados com a ação que constitui precisamente o pecado. A mesma palavra, no
entanto, significa também “rebelião” contra os superiores, tanto mais grave se dirigida
contra Deus, como lemos nos Profetas: “Criei filhos e os fiz crescer, mas eles
se rebelaram contra mim” (Is 1,2; cf. Is 48,8-9; Ez 2,3).
Pecado, portanto, significa também
“injustiça” (“awon”, em grego ἀδικία). Segundo a Bíblia, esta palavra
destaca ao mesmo tempo o estado pecaminoso do homem, enquanto culpável do
pecado. Com efeito, etimologicamente significa “desvio do caminho certo”, ou então
“distorção” ou “deformação”: estar verdadeiramente fora da justiça! A consciência
deste estado de injustiça aflora naquela dolorosa confissão de Caim: “Minha
culpa é grande demais para suportá-la!” (Gn 4,13); e na do salmista:
“Minhas iniquidades subiram acima da minha cabeça, e como carga pesada me
oprimem demais” (Sl 37,5). A culpa - injustiça - comporta
ruptura com Deus, expressa com o termo “hata”, que etimologicamente
significa “falta contra alguém”. Daqui, pois, outra confissão do salmista: “Contra
ti eu pequei!” (Sl 50,6).
4. Sempre segundo a Sagrada Escritura,
o pecado, por sua essencial natureza de “injustiça”, é ofensa a Deus, ingratidão por
seus benefícios, até mesmo desprezo pela sua santíssima Pessoa. “Por
que desprezaste a Palavra do Senhor fazendo o que é mau a seus olhos?”, pergunta
o Profeta Natã a Davi depois do seu pecado (2Sm 12,9). O pecado é também uma
mancha e uma impureza. Por isso Ezequiel fala de “contaminação” com o pecado (cf. Ez 14,11),
especialmente com o pecado da idolatria, que muitas vezes é comparado ao “adultério”
pelos Profetas (cf. Os 2,4-7). Assim, também o salmista pede: “Asperge-me
com o hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais branco do que a neve” (Sl 50,9).
Nesse mesmo contexto podemos compreender
melhor as palavras de Jesus no Evangelho: “O que sai de alguém é o que o torna
impuro, pois é de dentro, do coração do homem, que saem as más intenções: fornicações,
roubos, homicídios, adultérios, cobiça, perversidades, fraude, arrogância, inveja,
calúnia, orgulho, insensatez. Todas essas coisas más saem de dentro, e são
elas que tornam alguém impuro” (Mc 7,20-23; cf. Mt 15,18-20).
Cabe observar que no léxico do Novo Testamento não são dados tantos nomes ao
pecado, correspondentes àqueles do Antigo: este é chamado sobretudo com a palavra
grega “anomia” (ἀνομία) - iniquidade, injustiça, oposição ao reino de Deus
(cf. Mc 7,23; Mt 13,41; 24,12; 1Jo 3,4).
Aparece também a palavra “hamartia” (ἁμαρτία) - erro, falta; ou então “opheilema” (ὀφείλημα)
- dívida, ofensa: “perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6,12; Lc 11,4).
5. Acabamos de ouvir as palavras
de Jesus que descrevem o pecado como algo que provém “do coração” do homem, do
seu interior. Essas palavras destacam o caráter essencial do pecado: nascendo
no interior do homem, na sua vontade, o pecado, por sua própria essência, é sempre
um ato da pessoa (“actus personae”). Um ato consciente e livre, no qual se
exprime o livre-arbítrio do homem. Somente com base neste princípio de liberdade
- e, por conseguinte, no fato da deliberação - se pode estabelecer seu valor moral.
Somente por esta razão podemos julgá-lo como mau no sentido moral, assim
como julgamos e aprovamos como bom um ato conforme à norma objetiva da moral e,
em última instância, à vontade de Deus. Apenas o que nasce do livre-arbítrio implica responsabilidade
pessoal: e só neste sentido um ato consciente e livre do homem que se oponha à norma
moral (à vontade de Deus), à lei, aos mandamentos e, em última instância, à consciência,
constitui uma culpa.
6. É nesse sentido individual e pessoal
que a Sagrada Escritura fala do pecado, já que, por princípio, este se
refere a um determinado sujeito, ao homem que é seu artífice. Mesmo
quando em algumas passagens aparece a expressão “pecado do mundo”, o sentido
anterior não é diminuído, ao menos no que diz respeito à causalidade e à responsabilidade
do pecado. O “mundo” como tal não pode ser artífice do pecado; só pode ser um
ser racional e livre que se encontra no mundo, isto é, o homem (ou, em outra
esfera de seres, também um espírito puro criado, isto é, um “anjo”, como vimos em
Catequeses anteriores).
A expressão “pecado do mundo” se encontra
no Evangelho segundo São João: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o
pecado do mundo” (Jo 1,29; a fórmula litúrgica diz: “os pecados do
mundo”) [1]. Na Primeira Carta do Apóstolo encontramos outra passagem
que diz assim: “Não ameis o mundo, nem o que há no mundo. (...) Porque tudo o que
há no mundo - o desejo da carne, o desejo dos olhos e a ostentação da riqueza -
não vem do Pai, mas do mundo" (1Jo 2,15-16). E com palavras ainda
mais drásticas: “Nós sabemos que somos de Deus, ao passo que o mundo inteiro está
sob o poder do Maligno” (1Jo 5,19).
7. Como entender estas expressões
sobre o “pecado do mundo”? As passagens citadas indicam claramente que aqui não
se trata do “mundo” como criação de Deus, mas como uma dimensão
específica, quase um espaço espiritual fechado a Deus, no qual, sobre
a base da liberdade criada, nasceu o mal. Este mal transferido para o “coração”
dos primeiros pais sob a influência da “antiga serpente” (cf. Gn 3; Ap 12,9)
- isto é, Satanás, “pai da mentira” - deu maus frutos desde o princípio da história
do homem. O pecado original deixou atrás de si aquela “inclinação para o pecado”
(“fomes peccati”), isto é, a tríplice concupiscência, que induz o homem
ao pecado. Por sua vez, os muitos pecados pessoais cometidos pelos homens formam
quase que um “ambiente de pecado”, que cria as condições para novos pecados pessoais,
e de alguma forma induz e atrai a si cada um dos homens. Portanto, o “pecado do
mundo” não se identifica com o pecado original, mas constitui quase que uma
síntese ou uma suma das suas consequências na história de cada uma das gerações
e, por conseguinte, de toda a humanidade. Daí resulta que carregam sobre si certa
marca de pecado também as várias iniciativas, tendências, realizações e instituições
humanas, inclusive naqueles “conjuntos” que constituem as culturas e as civilizações
e que condicionam a vida e o comportamento de cada um dos homens. Nesse sentido,
talvez poderíamos falar de pecado das estruturas, por uma espécie de “infecção”
que dos corações dos homens se propaga nos ambientes em que vivem e nas estruturas
pelas quais está regida e condicionada sua existência.
8. O pecado, com feito, embora
conservando seu caráter essencial de ato pessoal, possui ao mesmo tempo uma
dimensão social, da qual falei na Exortação Apostólica pós-sinodal sobre a
reconciliação e a penitência, publicada em 1984. Como escrevi nesse documento, “falar
de pecado social quer dizer, antes de tudo, reconhecer que, em virtude de uma
solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o
pecado de cada um repercute, de algum modo, sobre os outros. É esta a outra
face daquela solidariedade que, a nível religioso, se desenvolve no profundo e
magnífico mistério da comunhão dos santos, graças à qual se pode dizer que
«cada alma que se eleva, eleva o mundo». A esta lei da elevação corresponde,
infelizmente, a lei da descida, de tal modo que se pode falar de uma comunhão
no pecado, em razão da qual uma alma que se rebaixa pelo pecado arrasta consigo
a Igreja, e, de certa maneira, o mundo inteiro” (Reconciliatio
et Paenitentia, n. 16).
Depois a Exortação fala de pecados
que de modo particular merecem ser qualificados como “pecados sociais”, tema que
voltaremos a tratar no âmbito de outro ciclo de Catequeses.
9. De quanto dito resulta bastante
claro que o “pecado social” não é o mesmo que o bíblico “pecado do mundo”. E,
no entanto, devemos reconhecer que para compreender o “pecado do mundo” é
preciso levar em consideração não só a dimensão pessoal do pecado, mas também a
social. A Exortação Reconciliatio et Paenitentia continua: “Não
há nenhum pecado, mesmo o mais íntimo e secreto, o mais estritamente
individual, que diga respeito exclusivamente àquele que o comete. Todo pecado repercute,
com maior ou menor veemência, com maior ou menor dano, em toda a estrutura
eclesial e em toda a família humana. Segundo esta primeira acepção, a cada
pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o caráter de pecado social.” (ibid.).
Ao chegar a este ponto podemos concluir observando que a dimensão social do
pecado explica melhor porque o mundo se torna esse específico “ambiente”
espiritual negativo ao qual alude a Sagrada Escritura quando fala do “pecado do
mundo”.
Retorno do filho pródigo (Murillo): "Pai, pequei contra ti..." |
Nota:
[1] A atual tradução oficial para o
português do Brasil está no singular: “o pecado do mundo” (Missal Romano,
p. 503). A forma típica (em latim), por sua vez, está efetivamente no plural: “Ecce
Agnus Dei, ecce qui tollit peccáta mundi”.
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (29 de outubro e 05 de novembro de 1986).
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