quinta-feira, 2 de março de 2023

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 32

O pecado como ruptura da aliança é o tema das Catequeses nn. 55-56 do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai, que reproduzimos a seguir.

Confira a introdução às suas Catequeses sobre o Creio, com os links para as demais meditações, clicando aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

55. Pecado: Ruptura da aliança com Deus
João Paulo II - 29 de outubro de 1986

1. Nas Catequeses deste ciclo temos continuamente diante dos olhos a verdade sobre o pecado original e, ao mesmo tempo, buscamos contemplar a realidade do pecado na dimensão global da história do homem. À sua maneira, a experiência histórica confirma o que é expresso pela Revelação: o pecado está constantemente presente na vida do homem, é constantemente atual. Do ponto de vista do conhecimento humano, este está presente como mal moral, do qual se ocupa de modo mais direto a ética (filosofia moral). Mas se ocupam também dele à sua maneira também outros ramos da ciência antropológica de caráter mais descritivo, como a psicologia e a sociologia. Uma cosa é certa: o mal moral (assim como o bem) pertence à experiência humana, e dela partem todas as disciplinas que pretendem estudá-lo como objeto da experiência.

Parábola do filho pródigo (Murillo):
Citada em alusão ao pecado como "abuso da liberdade"

2. Ao mesmo tempo, porém, é preciso constatar que fora da Revelação não somos capazes de compreender plenamente nem de expressar adequadamente a essência do pecado (ou seja, do mal moral como pecado). Somente no contexto da relação estabelecida com Deus pela fé a realidade total do pecado se torna compreensível. À luz desta relação busquemos, pois, desenvolver e aprofundar esta compreensão.
Quando se trata da Revelação, sobretudo da Sagrada Escritura, a verdade sobre o pecado nela contida não pode ser apresentando senão retornando ao “princípio”. Em certo sentido também o pecado “atual”, pertencente à vida de cada homem, torna-se plenamente compreensível em referência a esse “princípio”, ao pecado do primeiro homem. E não só porque aquilo que o Concílio de Trento chama “inclinação ao pecado” (“fomes peccati”), consequência do pecado original, é no homem a base e a fonte dos pecados pessoais, mas também porque esse “primeiro pecado” dos primeiros padres permanece de certa forma como “modelo” de todo pecado pessoal cometido pelo homem. O “primeiro pecado” era em si mesmo também um pecado pessoal: por isso os distintos elementos da sua “estrutura” se encontram de alguma forma em qualquer outro pecado do homem.

3. O Concílio Vaticano II recorda: “Constituído por Deus em estado de justiça [santidade], o homem, seduzido pelo maligno... abusou de sua liberdade, insurgindo-se contra Deus e desejando alcançar sua meta fora de Deus” (Gaudium et spes, n. 13). Com estas palavras o Concílio trata do pecado dos primeiros pais, cometido no estado de justiça original. Mas também em cada pecado cometido por qualquer outro homem ao longo da história, no estado de fragilidade moral hereditária, se refletem esses mesmos elementos essenciais. Todo pecado, com efeito, entendido como ato pessoal do homem, contém um particular “abuso da liberdade”, isto é, um mau uso da liberdade, do livre-arbítrio. O homem, como ser criado, abusa da liberdade da sua vontade quando a utiliza contra a vontade do próprio Criador; quando, em seu comportamento, “insurge-se contra Deus”; quando busca “alcançar sua meta fora de Deus”.

4. Em todo pecado repetem-se os elementos essenciais que desde o princípio constituem o mal moral do pecado à luz da verdade revelada sobre Deus e sobre o homem. Apresentam-se em um grau de intensidade distinto daquele do primeiro pecado, cometido no estado de justiça original. Os pecados pessoais, cometidos depois do pecado original, são condicionados pelo estado de inclinação hereditária ao mal (“fomes peccati”) em certo sentido já desde o ponto de partida. Todavia, tal situação de debilidade hereditária não suprime a liberdade do homem e, portanto, todo pecado atual (pessoal) contém um verdadeiro abuso da liberdade contra a vontade de Deus. O grau deste abuso, como sabemos, pode variar, e disso depende também os diversos graus de culpa daquele que peca. Nesse sentido, é preciso aplicar uma medida diversa para os pecados atuais quando se trata de avaliar o grau de maldade neles contido. Daqui provém, portanto, a diferença entre pecado “grave” e pecado “venial”. Se o pecado grave é ao mesmo tempo “mortal”, é porque causa a perda da graça santificante naquele que o comete.

5. São Paulo, falando do pecado de Adão, o descreve como “desobediência” (cf. Rm 5,19); o que o Apóstolo afirma vale também para todo pecado “atual” que o homem comete. O homem peca transgredindo o mandamento de Deus, portanto, é “desobediente” a Deus como Legislador Supremo. Esta desobediência, à luz da Revelação, é ao mesmo tempo ruptura da aliança com Deus. Deus, tal como o conhecemos pela Revelação, é de fato o Deus da aliança, e precisamente como Deus da aliança é Legislador. Com efeito, introduz sua lei no contexto da aliança com o homem, fazendo-a condição fundamental dessa mesma aliança.

6. Assim era já naquela aliança original que, como lemos no Gênesis, foi violada “no princípio” (Gn 3). Isto aparece ainda mais claramente na relação do Senhor Deus com Israel nos tempos de Moisés. A aliança estabelecida com o povo eleito sob o monte Sinai (cf. Ex 24,3-8) possui em si, como parte constitutiva, os Mandamentos: o Decálogo (cf. Ex 20; Dt 5). Estes constituem os princípios fundamentais e inalienáveis do comportamento de todo homem em relação a Deus e em relação às criaturas, sendo a primeira destas o próprio homem.

7. Segundo o ensinamento de São Paulo na Carta aos Romanos, tais princípios fundamentais e inalienáveis de conduta, revelados no contexto da aliança do Sinai, na realidade estão “inscritos no coração” de todo homem, mesmo de maneira independente da Revelação feita a Israel. Escreve, com efeito, o Apóstolo: “Quando os gentios, embora não tenham a Lei, cumprem o que a Lei prescreve guiados pelo senso natural, esses que não têm a Lei tornam-se Lei para si mesmos. Mostram assim que a obra da Lei está inscrita em seus corações: sua consciência testemunha juntamente com seus pensamentos, que ora acusam ora defendem” (Rm 2,14-15).
Assim, a ordem moral validada por Deus com a revelação da lei no âmbito da aliança, tem consistência na lei “inscrita nos corações”, inclusive fora dos confins marcados pela lei mosaica e pela Revelação: podemos dizer que está inscrita na própria natureza racional do homem, como explica de modo excelente Santo Tomás quando fala da “lex naturae”, a “lei natural” (cf. Summa Theologiae I-II, q. 91, a. 2; q. 94, aa. 5-6). O cumprimento desta lei determina o valor moral dos atos do homem: faz com que sejam bons. Ao contrário, a transgressão da lei “inscrita nos corações”, isto é, na própria natureza racional do homem, faz com que os atos humanos sejam maus. São maus porque se opõem à ordem objetiva da natureza humana e do mundo, atrás da qual está Deus, seu Criador. Portanto, também neste estado de consciência moral iluminado pelos princípios da lei natural, um ato moralmente mau é pecado.

8. O caráter do pecado destaca-se ainda mais à luz da lei revelada. O homem possui agora maior consciência de transgredir uma lei explícita e positivamente estabelecida por Deus e, portanto, também a consciência de que se opõe à vontade de Deus e, neste sentido, “desobedece”. Não se trata só da desobediência a um princípio abstrato de comportamento, mas ao princípio no qual toma forma a autoridade “pessoal” de Deus: a um princípio no qual se exprimem a sua sabedoria e a sua Providência. Toda a lei moral é ditada por Deus devido à sua solicitude pelo verdadeiro bem da criação, particularmente pelo bem do homem. Precisamente este bem foi inscrito por Deus na aliança estabelecida com o homem: seja na primeira aliança com Adão; na aliança do Sinai, por meio de Moisés; e, por último, na aliança definitiva, revelada em Cristo e estabelecida no sangue da sua redenção (cf. Mc 14,24; Mt 26,28; 1Cor 11,25; Lc 22,20).

9. Visto neste contexto, o pecado como “desobediência” à lei se manifesta melhor em seu caráter de “desobediência” pessoal a Deus: a Deus como Legislador, que é ao mesmo tempo Pai que ama. Esta mensagem, já expressa profundamente no Antigo Testamento (cf. Os 11,1-7), encontrará sua enunciação mais plena na parábola do “filho pródigo” (cf. Lc 15,18-21). Em todo caso, a desobediência a Deus, isto é, a oposição à sua vontade criadora e salvífica, que inclui o desejo do homem de “alcançar sua meta fora de Deus”, é um “abuso da liberdade” (Gaudium et spes, n. 13).

10. Quando Jesus Cristo, na véspera da sua Paixão, fala do “pecado” sobre o qual o Espírito Santo deve “convencer o mundo”, explica a essência desse pecado com as palavras: “Porque eles não creem em mim” (Jo 16,7-9). Esse “não crer” em Deus é, em certo sentido, a primeira e fundamental forma de pecado que o homem comete contra o Deus da aliança. Esta forma de pecado havia se manifestado já no pecado original, do qual se fala em Gn 3. A ela se referia, para exclui-la, também a lei dada na aliança do Sinai: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,2-3). A ela se referem também as palavras de Jesus no Cenáculo, todo o Evangelho e o Novo Testamento.

11. Esta incredulidade, esta falta de confiança em Deus que se revelou como Criador, Pai e Salvador, indica que, pecando, o homem não só transgride o mandamento (a lei), mas que realmente se insurge contra o próprio Deus, “desejando alcançar sua meta fora d’Ele”. Deste modo, na raiz de todo pecado atual podemos encontrar o reflexo, talvez distante - mas não menos real -, daquelas palavras que estão na base do primeiro pecado: as palavras do tentador, que apresentam a desobediência a Deus como caminho para “ser como Deus”; e para conhecer, como Deus, “o bem e o mal” (cf. Gn 3,4-5).
Mas, como dissemos anteriormente, também no pecado atual, quando se trata de pecado grave (mortal), o homem escolhe a si mesmo contra Deus, escolhe a criação contra o Criador, rejeita o amor do Pai como o filho pródigo na primeira fase da sua louca aventura. Em certa medida todo pecado do homem expressa esse “mysterium iniquitatis” (2Ts 2,7) que Santo Agostinho resumiu nas palavras: “amor sui usque ad contemptum Dei”, o amor de si até o desprezo de Deus (De Civitate Dei, XIV, 28; PL 41, 436).

56. O pecado do homem e o “pecado do mundo”
João Paulo II - 05 de novembro de 1986

1. Nas Catequeses deste ciclo sobre o pecado, considerado à luz da fé, o objeto direto da análise é o pecado atual (pessoal), mas sempre em referência ao primeiro pecado, que deixou suas consequências em todo descendente de Adão, e que por isso é chamado pecado original. Como consequência do pecado original, os homens nascem em um estado de fragilidade moral hereditária e, se não correspondem à graça oferecida por Deus à humanidade por meio da redenção realizada por Cristo, facilmente tomam o caminho dos pecados pessoais.
O Concílio Vaticano II o indica quando escreve, entre outras coisas: “Toda a vida dos homens, individual e coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. O homem descobre-se então incapaz de, por si mesmo, debelar eficazmente os ataques do mal... Mas o próprio Senhor veio para libertar e confortar o homem, renovando-o interiormente” (Gaudium et spes, n. 13). Neste contexto de tensões e de conflitos ligados à condição da natureza humana decaída, que deve ser situada qualquer reflexão sobre o pecado pessoal.

2. Este possui essa característica essencial de ser sempre o ato responsável de uma determinada pessoa, um ato incompatível com a lei moral e, portanto, contrário à vontade de Deus. O que comporta e o que inclui em si mesmo este ato o podemos descobrir com a ajuda da Bíblia. Já no Antigo Testamento encontramos diversas expressões para indicar os diversos momentos ou aspectos da realidade do pecado à luz da Divina Revelação. Assim, às vezes este é chamado simplesmente “o mal” (“ra”): quem comete pecado faz “o que é mau aos olhos do Senhor” (Dt 31,29). Por isso o pecador, designado também como “ímpio” (“rasa”), é aquele que “se esquece de Deus” (Sl 9,18), que “não quer conhecer a Deus” (Jó 21,14), em quem “não há temor de Deus” (Sl 35,2), que “não confia no Senhor” (cf. Sl 31,10), mais ainda, que “despreza a Deus” (Sl 9,34), acreditando que “o Senhor não vê” (Sl 93,7) e que “não nos pedirá contas” (Sl 9,34). O pecador (ímpio), ademais, é aquele que não tem medo de oprimir os justos (cf. Sl 11,9), nem de “fazer mal às viúvas e aos órfãos” (cf. Sl 81,4; 93,6), nem tampouco de “retribuir o bem com o mal” (Sl 108,5). O oposto do pecador, na Sagrada Escritura, é o homem justo (“sadiq”). Portanto, o pecado é, no sentido mais amplo da palavra, a injustiça.

3. Esta injustiça, que tem muitas formas, encontra sua expressão também no termo “pesa”, no qual está presente a ideia de mal feito ao outro, àquele cujos direitos foram violados com a ação que constitui precisamente o pecado. A mesma palavra, no entanto, significa também “rebelião” contra os superiores, tanto mais grave se dirigida contra Deus, como lemos nos Profetas: “Criei filhos e os fiz crescer, mas eles se rebelaram contra mim” (Is 1,2; cf. Is 48,8-9; Ez 2,3).
Pecado, portanto, significa também “injustiça” (“awon”, em grego ἀδικία). Segundo a Bíblia, esta palavra destaca ao mesmo tempo o estado pecaminoso do homem, enquanto culpável do pecado. Com efeito, etimologicamente significa “desvio do caminho certo”, ou então “distorção” ou “deformação”: estar verdadeiramente fora da justiça! A consciência deste estado de injustiça aflora naquela dolorosa confissão de Caim: “Minha culpa é grande demais para suportá-la!” (Gn 4,13); e na do salmista: “Minhas iniquidades subiram acima da minha cabeça, e como carga pesada me oprimem demais” (Sl 37,5). A culpa - injustiça - comporta ruptura com Deus, expressa com o termo “hata”, que etimologicamente significa “falta contra alguém”. Daqui, pois, outra confissão do salmista: “Contra ti eu pequei!” (Sl 50,6).

4. Sempre segundo a Sagrada Escritura, o pecado, por sua essencial natureza de “injustiça”, é ofensa a Deus, ingratidão por seus benefícios, até mesmo desprezo pela sua santíssima Pessoa. “Por que desprezaste a Palavra do Senhor fazendo o que é mau a seus olhos?”, pergunta o Profeta Natã a Davi depois do seu pecado (2Sm 12,9). O pecado é também uma mancha e uma impureza. Por isso Ezequiel fala de “contaminação” com o pecado (cf. Ez 14,11), especialmente com o pecado da idolatria, que muitas vezes é comparado ao “adultério” pelos Profetas (cf. Os 2,4-7). Assim, também o salmista pede: “Asperge-me com o hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais branco do que a neve” (Sl 50,9).
Nesse mesmo contexto podemos compreender melhor as palavras de Jesus no Evangelho: “O que sai de alguém é o que o torna impuro, pois é de dentro, do coração do homem, que saem as más intenções: fornicações, roubos, homicídios, adultérios, cobiça, perversidades, fraude, arrogância, inveja, calúnia, orgulho, insensatez. Todas essas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam alguém impuro” (Mc 7,20-23; cf. Mt 15,18-20). Cabe observar que no léxico do Novo Testamento não são dados tantos nomes ao pecado, correspondentes àqueles do Antigo: este é chamado sobretudo com a palavra grega “anomia” (ἀνομία) - iniquidade, injustiça, oposição ao reino de Deus (cf. Mc 7,23; Mt 13,41; 24,12; 1Jo 3,4). Aparece também a palavra “hamartia” (ἁμαρτία) - erro, falta; ou então “opheilema” (ὀφείλημα) - dívida, ofensa: “perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6,12; Lc 11,4).

5. Acabamos de ouvir as palavras de Jesus que descrevem o pecado como algo que provém “do coração” do homem, do seu interior. Essas palavras destacam o caráter essencial do pecado:  nascendo no interior do homem, na sua vontade, o pecado, por sua própria essência, é sempre um ato da pessoa (“actus personae”). Um ato consciente e livre, no qual se exprime o livre-arbítrio do homem. Somente com base neste princípio de liberdade - e, por conseguinte, no fato da deliberação - se pode estabelecer seu valor moral. Somente por esta razão podemos julgá-lo como mau no sentido moral, assim como julgamos e aprovamos como bom um ato conforme à norma objetiva da moral e, em última instância, à vontade de Deus. Apenas o que nasce do livre-arbítrio implica responsabilidade pessoal: e só neste sentido um ato consciente e livre do homem que se oponha à norma moral (à vontade de Deus), à lei, aos mandamentos e, em última instância, à consciência, constitui uma culpa.

6. É nesse sentido individual e pessoal que a Sagrada Escritura fala do pecado, já que, por princípio, este se refere a um determinado sujeito, ao homem que é seu artífice. Mesmo quando em algumas passagens aparece a expressão “pecado do mundo”, o sentido anterior não é diminuído, ao menos no que diz respeito à causalidade e à responsabilidade do pecado. O “mundo” como tal não pode ser artífice do pecado; só pode ser um ser racional e livre que se encontra no mundo, isto é, o homem (ou, em outra esfera de seres, também um espírito puro criado, isto é, um “anjo”, como vimos em Catequeses anteriores).
A expressão “pecado do mundo” se encontra no Evangelho segundo São João: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29; a fórmula litúrgica diz: “os pecados do mundo”) [1]. Na Primeira Carta do Apóstolo encontramos outra passagem que diz assim: “Não ameis o mundo, nem o que há no mundo. (...) Porque tudo o que há no mundo - o desejo da carne, o desejo dos olhos e a ostentação da riqueza - não vem do Pai, mas do mundo" (1Jo 2,15-16). E com palavras ainda mais drásticas: “Nós sabemos que somos de Deus, ao passo que o mundo inteiro está sob o poder do Maligno” (1Jo 5,19).

7. Como entender estas expressões sobre o “pecado do mundo”? As passagens citadas indicam claramente que aqui não se trata do “mundo” como criação de Deus, mas como uma dimensão específica, quase um espaço espiritual fechado a Deus, no qual, sobre a base da liberdade criada, nasceu o mal. Este mal transferido para o “coração” dos primeiros pais sob a influência da “antiga serpente” (cf. Gn 3; Ap 12,9) - isto é, Satanás, “pai da mentira” - deu maus frutos desde o princípio da história do homem. O pecado original deixou atrás de si aquela “inclinação para o pecado” (“fomes peccati”), isto é, a tríplice concupiscência, que induz o homem ao pecado. Por sua vez, os muitos pecados pessoais cometidos pelos homens formam quase que um “ambiente de pecado”, que cria as condições para novos pecados pessoais, e de alguma forma induz e atrai a si cada um dos homens. Portanto, o “pecado do mundo” não se identifica com o pecado original, mas constitui quase que uma síntese ou uma suma das suas consequências na história de cada uma das gerações e, por conseguinte, de toda a humanidade. Daí resulta que carregam sobre si certa marca de pecado também as várias iniciativas, tendências, realizações e instituições humanas, inclusive naqueles “conjuntos” que constituem as culturas e as civilizações e que condicionam a vida e o comportamento de cada um dos homens. Nesse sentido, talvez poderíamos falar de pecado das estruturas, por uma espécie de “infecção” que dos corações dos homens se propaga nos ambientes em que vivem e nas estruturas pelas quais está regida e condicionada sua existência.

8. O pecado, com feito, embora conservando seu caráter essencial de ato pessoal, possui ao mesmo tempo uma dimensão social, da qual falei na Exortação Apostólica pós-sinodal sobre a reconciliação e a penitência, publicada em 1984. Como escrevi nesse documento, “falar de pecado social quer dizer, antes de tudo, reconhecer que, em virtude de uma solidariedade humana tão misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um repercute, de algum modo, sobre os outros. É esta a outra face daquela solidariedade que, a nível religioso, se desenvolve no profundo e magnífico mistério da comunhão dos santos, graças à qual se pode dizer que «cada alma que se eleva, eleva o mundo». A esta lei da elevação corresponde, infelizmente, a lei da descida, de tal modo que se pode falar de uma comunhão no pecado, em razão da qual uma alma que se rebaixa pelo pecado arrasta consigo a Igreja, e, de certa maneira, o mundo inteiro” (Reconciliatio et Paenitentia, n. 16).
Depois a Exortação fala de pecados que de modo particular merecem ser qualificados como “pecados sociais”, tema que voltaremos a tratar no âmbito de outro ciclo de Catequeses.

9. De quanto dito resulta bastante claro que o “pecado social” não é o mesmo que o bíblico “pecado do mundo”. E, no entanto, devemos reconhecer que para compreender o “pecado do mundo” é preciso levar em consideração não só a dimensão pessoal do pecado, mas também a social. A Exortação Reconciliatio et Paenitentia continua: “Não há nenhum pecado, mesmo o mais íntimo e secreto, o mais estritamente individual, que diga respeito exclusivamente àquele que o comete. Todo pecado repercute, com maior ou menor veemência, com maior ou menor dano, em toda a estrutura eclesial e em toda a família humana. Segundo esta primeira acepção, a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o caráter de pecado social.” (ibid.). Ao chegar a este ponto podemos concluir observando que a dimensão social do pecado explica melhor porque o mundo se torna esse específico “ambiente” espiritual negativo ao qual alude a Sagrada Escritura quando fala do “pecado do mundo”.

Retorno do filho pródigo (Murillo):
"Pai, pequei contra ti..."

Nota:
[1] A atual tradução oficial para o português do Brasil está no singular: “o pecado do mundo” (Missal Romano, p. 503). A forma típica (em latim), por sua vez, está efetivamente no plural: “Ecce Agnus Dei, ecce qui tollit peccáta mundi”.

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (29 de outubro e 05 de novembro de 1986).

Nenhum comentário:

Postar um comentário