sexta-feira, 17 de março de 2023

Dom Vittorio Viola: Reflexão sobre a Reconciliação

Entre a sexta-feira e o sábado da III semana da Quaresma (neste ano de 2023 nos dias 17 e 18 de março) celebra-se a iniciativa “24 horas para o Senhor”.

O subsídio pastoral para este ano, com o tema “Tem piedade de mim, que sou pecador” (Lc 18,13), traz uma reflexão sobre o Sacramento da Reconciliação proferida por Dom Vittorio Francesco Viola, O. F. M., Secretário do Dicastério para o Culto Divino (pp. 6-11), que reproduzimos a seguir:

Reflexão sobre o Sacramento da Reconciliação
Dom Vittorio Francesco Viola, O. F. M.,
Secretário do Dicastério para o Culto Divino

A parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14) contrapõe duas atitudes opostas do homem perante Deus. A primeira é a daquele que “presume ser justo” e, portanto, não tem qualquer necessidade de ser perdoado: pelo contrário, na sua relação com Deus, tem a pretensão de um prêmio, que ele exige como um direito que lhe é devido. A segunda é a de quem se sabe pecador: a única coisa que pode fazer é humilhar-se, batendo no peito e confiar na misericórdia de Deus como um dom absolutamente gratuito.

Celebração do Sacramento da Reconciliação
(24 horas para o Senhor 2022)

Em relação a ambos, Deus tem um único desejo, que se deve confrontar com a liberdade que Ele nos deu: o Pai, rico de misericórdia, nada mais deseja do que abraçar, erguer, regenerar, restituir a dignidade de filho, libertar de todas as cadeias, trazer para a vida, salvar cada homem. Precisamente para revelar o rosto misericordioso do Pai, o Verbo se fez carne e veio habitar entre nós (Jo 1,14). Escrevia São João Paulo II em sua Encíclica Dives in misericordia: «[Cristo] não somente fala [da misericórdia divina] e a explica com o uso de comparações e parábolas, mas sobretudo Ele mesmo encarna-a e personifica-a. Ele mesmo é, em certo sentido, a misericórdia. Para quem a vê n’Ele - e n’Ele a encontra - Deus torna-se particularmente “visível” como Pai “rico em misericórdia” (Ef 2,4)» (n. 2). A paternidade de Deus que, desde o dia do nosso pecado no Jardim do Éden, pensávamos ter irremediavelmente perdido, ainda que guardando dela no coração uma pungente saudade, nos é restituída através do Filho.

Os Evangelhos contam como o encontro com o Verbo Encarnado acontece em várias circunstâncias e de formas muito diferentes, cruzando os caminhos, muitas vezes tortuosos e inesperados, da vida do homem. A adúltera é arrastada perante Ele depois de ter sido apanhada no seu pecado; o paralítico é descido sobre Ele do telhado devido à engenhosidade dos seus amigos; Zaqueu sobe a uma árvore no desejo de vê-Lo, para depois descer apressadamente e hospedá-lo em sua casa. A mulher em casa de Simão, conhecida por todos como pecadora, atira-se aos seus pés para lavá-los com lágrimas. O ladrão encontra-o na hora decisiva, por causa da mesma sentença de morte, para se encontrar com Ele pouco tempo depois no Seu Reino.

Quem quer que tenha se aproximado de Jesus com os mesmos sentimentos e atitudes que o publicano, confessando a sua culpa, sempre “voltou para casa justificado” (Lc 18,14). A sentença de condenação é substituída pela absolvição com uma fórmula completa, não porque o fato do nosso pecado não exista, mas porque é consumido no fogo do amor de Deus. A Redenção leva a cumprimento o projeto original para o qual fomos criados e ao qual Deus permaneceu fiel apesar das nossas infidelidades, ou seja, a possibilidade de participarmos na comunhão de amor das Pessoas da Santíssima Trindade.

A questão decisiva é apenas uma: como podemos nós também, hoje, fazer a experiência concreta do encontro com Ele, para receber o dom da reconciliação e viver na liberdade de filhos de Deus? Sem um encontro real com o Senhor que salva, a consciência do nosso pecado acabaria por ser uma prisão sem estrada de saída.

Também a nós “deve” ser dada a oportunidade de nos humilharmos perante Deus com os gestos concretos de penitência e com as palavras de um verdadeiro pedido de perdão. Acima de tudo, precisamos experimentar a misericórdia de Deus tal como aconteceu nos dias da Encarnação, através dos gestos e palavras de perdão de Jesus. Tudo isto nos é verdadeiramente dado, de forma sacramental, na celebração do Sacramento da Reconciliação.

O Concílio Vaticano II ajudou-nos a redescobrir o significado teológico da Liturgia, ou seja, o lugar que esta ocupa na dinâmica da fé. No capítulo I da Constituição Sacrosanctum Concilium (SC) são expostos os princípios gerais para a reforma e promoção da sagrada Liturgia. Recordo-os, em síntese extrema: a ação celebrativa é o momento atual, o hoje da história da salvação; a Igreja está no mundo não só para anunciar a Páscoa do Senhor, mas para atuá-la na celebração dos sacramentos. Na ação celebrativa Cristo está verdadeiramente presente de muitos modos, tornando assim possível o encontro com Ele. Não uma memória d’Ele, mas a possibilidade, sob forma sacramental, de encontrá-Lo, como a adúltera, como o paralítico, como Zaqueu, como a mulher na casa de Simão, como o ladrão na cruz. Através de sinais sensíveis, através de “ritos e preces” (SC n. 48), a Igreja, em virtude da presença e ação do Espírito, exerce a função sacerdotal de Jesus Cristo, atualiza o poder salvífico da sua Páscoa, oferecendo a todos os fiéis, na sua participação na ação ritual, a possibilidade de serem alcançados pela eficácia da obra da Redenção, a possibilidade de serem salvos.

Com base nestes princípios gerais, o Concílio esperava que o rito e as fórmulas da Penitência fossem revistos para que expressassem mais claramente a natureza e o efeito do sacramento (SC n. 72). A implementação desta indicação teve de enfrentar um percurso longo e difícil. Isto não surpreende se considerarmos o complexo desenvolvimento ritual da celebração do Sacramento da Reconciliação, que no caminho da Igreja assumiu formas muito diferentes, antes de chegar à codificação do Ritual de Paulo V (1614) em uso até ao Concílio Vaticano II.


Ao implementar a reforma da celebração desse sacramento, foram observados alguns princípios, extraídos dos documentos conciliares.

A Constituição Lumen gentium, ao tratar do sacerdócio comum exercido nos sacramentos, afirma: «Aqueles que se aproximam do Sacramento da Penitência obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa a Ele feita e, ao mesmo tempo, reconciliam-se com a Igreja, que tinham ferido com o seu pecado, a qual, pela caridade, exemplo e oração, trabalha pela sua conversão» (n. 11).

O mesmo tema é retomado pelo Decreto Presbyterorum ordinis, falando dos presbíteros como ministros da santificação com os sacramentos, particularmente a Eucaristia: [Os presbíteros] «introduzem os homens no Povo de Deus pelo Batismo; pelo Sacramento da Penitência, reconciliam os pecadores com Deus e com a Igreja» (n. 5).

Também o Decreto Christus Dominus recorda aos párocos «que o Sacramento da Penitência contribui muitíssimo para fomentar a vida cristã» e exorta-os a que «mostrem, por isso, facilidade em ouvir confissões» (n. 30).

Os Praenotanda do Ritual da Penitência aprovado por São Paulo VI a 02 de dezembro de 1973 são uma ótima síntese da compreensão da celebração do sacramento à luz dos princípios reafirmados pelo Concílio.

Os elementos fundamentais aos quais era necessário fazer referência na revisão do rito podem ser sintetizados assim: a história da salvação como revelação e atuação do mistério da reconciliação; o pecado como ofensa a Deus e ferida no corpo eclesial; a dupla dimensão da reconciliação, com Deus e com a Igreja; o envolvimento da comunidade cristã no processo de conversão.

A sua implementação ritual depressa se revelou complexa. Não podemos repercorrer aqui, ainda que em síntese, a amplitude das questões que surgiram e as motivações que inspiraram a intervenção da reforma. Mesmo a escolha de manter a terminologia transmitida pela tradição, tentando redefinir os termos à luz da teologia conciliar, não se revelou simples. Pensando na finalidade deste subsídio, me limitarei a algumas considerações úteis para melhorar a qualidade da participação litúrgica na celebração do sacramento, uma participação que, como deseja o Concílio, deve ser plena, consciente, ativa (SC n. 14), frutuosa (n. 11) [e piedosa (n. 48)].

Antes de tudo é oportuno recordar que a Igreja celebra o perdão dos pecados e a reconciliação no Batismo, na Eucaristia e no Sacramento da Penitência. O objetivo comum, nomeadamente o perdão dos pecados, funda a relação íntima que existe entre as distintas peculiaridades desses sacramentos (cf. Praenotanda, n. 3).

Além disso, a Igreja é chamada a viver uma profunda dimensão penitencial que perpassa toda a sua vida: desta forma, exprime o seu ser em um processo de conversão contínua, até ao dia do regresso do Senhor. A atitude penitencial da vida cristã não é um modo de ganhar a misericórdia de Deus, mas de exprimir o nosso desejo de pertencer ao amor trinitário, não só em palavras, mas na prática concreta da oferta do sofrimento unido ao da Cruz de Cristo, das obras de misericórdia e das obras de caridade, até que Cristo seja formado em nós (Gl 4,19). Esta atitude exprime-se também na Liturgia e, em particular, no Sacramento da Penitência (cf. Praenotanda, nn. 4-5).


Uma compreensão errada leva-nos por vezes a aproximarmo-nos do Sacramento da Penitência com a mesma atitude interior de quem entra em uma sala de tribunal sabendo que é culpado. A parábola do pai misericordioso (Lc 15,11-32) ensina-nos que o filho que regressa à casa não encontra um tribunal penal, mas a festa que expressa a alegria do pai pelo filho encontrado. O lugar da celebração do sacramento é a sala do banquete nupcial, onde a comunidade celebra a Páscoa, a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, na experiência alegre da sua misericórdia que perdoa. A nossa confissão devolve-nos a pureza da veste branca do Batismo, o traje expressamente exigido para participar na festa.

Sejamos claros: Deus faz um julgamento, a cruz do seu Filho julga o nosso pecado, desmascara as nossas culpas, chama-as pelo nome, mostra a inconsistência das nossas justificações autoabsolventes. Este julgamento é certamente o olhar mais penetrante que se possa ter sobre o nosso mundo interior e que nenhuma introspeção psicológica, por mais útil que seja, poderá alguma vez igualar. Diz o Salmo 138: «Examina-me, Senhor, e vê o meu coração; põe-me à prova para saber os meus pensamentos. Vê se é errado o meu caminho e guia-me pelo caminho eterno» (Sl 138,23-24). Este olhar, contudo, não é o de um juiz impiedoso que aplica uma lei com implacável firmeza, mas é, antes, o de um pai bom e misericordioso que, como na parábola, está ansioso por abraçar novamente o seu filho. Se tivéssemos de lutar para nos libertarmos da ideia de uma sala de tribunal, tentemos ao menos considerar que é um tribunal muito especial, no qual o juiz tem a firme intenção de querer absolver-nos e o nosso advogado tem o excelente argumento da sua fidelidade em nossa defesa: «Se alguém pecar, temos junto do Pai um advogado, Jesus Cristo, o Justo» (1Jo 2,1).

A forma ritual que melhor expressa a dimensão eclesial deste sacramento é certamente a “Celebração da reconciliação de vários penitentes com confissão e absolvição individual”. No entanto, também a “Celebração da reconciliação de um só penitente”, mais frequente, se celebrada segundo as indicações do ritual atual, preserva a mesma dimensão. Ser membros do mesmo corpo estabelece um vínculo tão profundo que, para além de uma corresponsabilidade na culpa, também nos permite experimentar uma cooperação na penitência (cf. Praenotanda, n. 5).

Na celebração do sacramento, cada fiel exerce o seu sacerdócio batismal nos atos próprios do penitente: contrição, confissão e satisfação (cf. Praenotanda, n. 6). Esta terminologia tridentina, retomada pelo atual ritual, é aprofundada e compreendida no seu significado mais profundo. Apenas um exemplo: depois de definir a contrição segundo o ditame do Concílio de Trento (a dor e a detestação do pecado cometido, com o propósito de não pecar mais no futuro), a definição é ampliada com uma citação da Constituição Apostólica Paenitemini de São Paulo VI, que descreve a metanoia (conversão) como “aquela mudança íntima e radical, por efeito da qual o homem começa a pensar, a julgar e a reordenar a sua vida, movido pela santidade e bondade de Deus, tal como nos foi manifestada e dada em plenitude no seu Filho”.

Na estrutura ritual do Sacramento da Penitência, um elemento fundamental - infelizmente ainda demasiado negligenciado na prática - é a proclamação da Palavra. Um dos méritos da reforma querida pelo Concílio é certamente o de ter tornado mais evidente que “na Liturgia, o rito e a palavra estão intimamente unidos” (SC n. 35). A Palavra de Deus permite-nos perscrutar o nosso coração e conhecer o nosso pecado, chama-nos à conversão, proclama a misericórdia de Deus que se realiza no perdão sacramental (cf. Praenotanda, n. 12).

Uma consideração final. O n. 10 dos Praenotanda oferece-nos uma descrição do ministério do confessor, que mostra toda a riqueza da celebração deste sacramento. Ele é chamado como um médico para “saber distinguir as doenças da alma a fim de trazer remédios adequados” e como um juiz para avaliar tudo com sabedoria; deve ser um homem de Deus especialista no discernimento dos espíritos, que é “o conhecimento íntimo da obra de Deus no coração dos homens”; deve revelar, nas palavras e nos gestos, o coração misericordioso do Pai e o cuidado do Bom Pastor que vai em busca da ovelha perdida para trazê-la de volta ao aprisco.

O Papa Francisco escreveu na Bula Misericordiae vultus: “Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado” (n. 2).

É no Sacramento da Reconciliação que podemos fazer uma experiência viva da misericórdia de Deus para conosco.

Dom Vittorio Francesco Viola, O.F.M.

Fonte: Dicastério para a Evangelização: Seção para as questões fundamentais da evangelização no mundo.

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