Prosseguindo
com a série das Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e cânticos da Liturgia das Horas, propomos hoje suas reflexões sobre as Laudes da quinta-feira
da II semana do Saltério, proferidas nos dias 10 de abril (Sl 79), 17 de abril
(Is 12,1-6) e 24 de abril de 2002 (Sl 80).
36. Visitai, Senhor, a vossa vinha: Sl 79(80),2-20
10 de abril de 2002
1. O Salmo que agora foi entoado tem a tonalidade de um lamento e de uma súplica de todo o povo de Israel. A primeira parte emprega um célebre símbolo bíblico, o pastor. O Senhor é invocado como “pastor de Israel”, aquele que “apascentou José como um rebanho” (v. 2). Do alto da arca da aliança, sentado sobre os querubins, o Senhor guia o seu rebanho, isto é, o seu povo, e protege-o dos perigos.
Assim fizera durante a travessia do deserto. Mas agora parece estar ausente, quase adormecido ou indiferente. Ao rebanho que devia orientar e nutrir (cf. Sl 22) oferece apenas um pão embebido em lágrimas (v. 6). Os inimigos escarnecem este povo humilhado e ofendido; contudo, Deus não se mostra admirado, não “desperta” (v. 3), nem revela o seu poder, defendendo as vítimas da violência e da opressão. A repetida invocação da antífona (vv. 4.8) tenta fazer com que Deus abandone a sua atitude indiferente, fazendo com que ele volte a ser pastor e defesa do seu povo.
2. Na segunda parte da
oração, densa de tensão e, ao mesmo tempo, de confiança, encontramos outro
símbolo querido à Bíblia, o da vinha. É uma imagem que se compreende
facilmente, porque faz parte do panorama da terra prometida e é sinal de
fecundidade e de alegria.
Como ensina o profeta Isaías numa das suas mais nobres páginas poéticas (cf. Is 5,1-7), a vinha encarna Israel. Ela ilustra duas dimensões fundamentais: por um lado, dado que é plantada por Deus (cf. Is 5,2; Sl 79,9-10), a vinha representa o dom, a graça, o amor de Deus; por outro, ela precisa do trabalho do camponês, graças ao qual produz uvas que podem dar o vinho e, portanto, representa a resposta humana, o empenho pessoal e o fruto de obras justas.
3. Através da imagem da
vinha, o Salmo recorda as principais etapas da história hebraica: as suas
raízes, a experiência do êxodo do Egito, a entrada na terra prometida. A vinha
tinha alcançado o seu nível mais amplo de extensão sobre toda a região
palestina e para além dela, com o reino de Salomão. De fato, expandia-se dos
montes setentrionais do Líbano, com os seus cedros, até ao mar Mediterrâneo e
quase até ao grande rio Eufrates (vv. 11-12).
Mas o esplendor deste
florescimento foi interrompido. O Salmo recorda-nos que na vinha de Deus passou
a tempestade, isto é, Israel sofreu uma provação áspera, uma dura invasão que
devastou a terra prometida. O próprio Deus derrubou, como se fosse um invasor,
o muro que circundava a vinha, deixando assim que nela irrompessem os
saqueadores, representados pelo javali, um animal considerado, pelos costumes
antigos, violento e impuro. Ao poder do javali uniram-se todos os animais
selvagens, símbolo de uma horda inimiga que tudo devasta (vv. 13-14).
4. Então dirige-se a Deus o
premente apelo para que volte a manifestar-se em defesa das vítimas, rompendo o
seu silêncio: “Voltai-vos para nós, Deus do universo! Olhai dos altos céus e
observai. Visitai a vossa vinha e protegei-a!” (v. 15). Deus será ainda o protetor
da cepa vital desta vinha submetida a uma tempestade tão violenta, afastando
tudo o que procurara desenraizá-la e incendiá-la (vv. 16-17).
Neste ponto, o Salmo abre-se a uma esperança com tonalidades messiânicas. De fato, o versículo 18 reza assim: “Pousai a mão por sobre o vosso Protegido, o filho do homem que escolhestes para vós”. O pensamento dirige-se talvez, antes de tudo, para o rei davídico que, com o apoio do Senhor, orientará a reconquista da liberdade. Contudo, é implícita a confiança no futuro Messias, aquele “filho do homem” que será cantado pelo profeta Daniel (cf. Dn 7,13-14) e que Jesus assumirá como título predileto para definir a sua obra e a sua pessoa messiânica. Aliás, os Padres da Igreja serão unânimes ao indicar na vinha recordada pelo Salmo uma prefiguração profética de Cristo “videira verdadeira” (Jo 15,1) e da Igreja.
"Visitai, Senhor a vossa vinha" (Sl 79,15) Ícone de Jesus Cristo, "videira verdadeira" |
5. Sem dúvida, para que o rosto do Senhor volte a brilhar, é necessário que Israel se converta na fidelidade e na oração a Deus Salvador. É o que o salmista exprime ao afirmar: “não nos afastaremos mais de ti” (Sl 79,19).
Por conseguinte, o Salmo 79
é um cântico prevalentemente marcado pelo sofrimento, mas também por uma
confiança inabalável. Deus está sempre disposto a “voltar” para o seu povo, mas
é necessário que também o seu povo “volte” para Ele na fidelidade. Se nós nos convertemos
do pecado, o Senhor “se converterá” da sua intenção de castigar: é esta a
convicção do salmista, que tem o seu eco também nos nossos corações, abrindo-os
à esperança.
37. Exultação do povo redimido: Is 12,1-6
17 de abril de 2002
1. O hino que acabamos de proclamar faz parte, como cântico de alegria, da Liturgia das Laudes. Ele constitui uma espécie de selo de algumas páginas do Livro de Isaías que se tornaram célebres devido à sua leitura messiânica. Tratam-se dos capítulos 6-12, normalmente chamados “o Livro do Emanuel”. De fato, no centro de seus oráculos proféticos domina a figura de um soberano que, apesar de pertencer à histórica dinastia davídica, revela contornos transfigurados e recebe títulos gloriosos: “Conselheiro-Admirável, Deus-Poderoso, Pai-Eterno, Príncipe-da-Paz” (Is 9,5).
A figura concreta do rei de
Judá que Isaías promete como filho e sucessor de Acaz, o soberano daquela época
muito afastado dos ideais davídicos, é o sinal de uma promessa mais nobre: a do
rei-Messias que realizará em plenitude o nome de “Emanuel”, isto é,
“Deus-conosco”, tornando-se a presença divina perfeita na história humana. Compreende-se
facilmente, então, como o Novo Testamento e o cristianismo tenham intuído
naquele perfil real a fisionomia de Jesus Cristo, Filho de Deus que se fez
homem solidário conosco.
2. O hino a que agora fazemos referência (Is 12,1-6) é considerado pelos estudiosos, tanto pela qualidade literária como pelo seu tom geral, uma composição posterior em relação ao profeta Isaías, que viveu no século oitavo antes de Cristo. É quase uma citação, um texto à maneira de salmo, talvez de uso litúrgico, que é inserido neste ponto para servir de conclusão ao “Livro do Emanuel”. Com efeito, recorda alguns dos seus temas: a salvação, a confiança, a alegria, a ação divina, a presença entre o povo do “Santo de Israel”, expressão que indica tanto a transcendente “santidade” de Deus, como a sua proximidade amorosa e ativa, com a qual o povo de Israel pode contar.
Quem canta é uma pessoa que
fez uma triste experiência, sentida como um ato do juízo divino. Mas agora a
provação terminou; a cólera do Senhor é substituída pelo sorriso, com a
disponibilidade para salvar e confortar.
3. As duas estrofes do hino
marcam quase dois momentos. No primeiro (vv. 1-3), aberto pelo convite para
rezar: “Dou-vos graças, ó Senhor”, domina a palavra “salvação”, repetida três
vezes e aplicada ao Senhor: “Eis o Deus, meu Salvador... o Senhor é minha salvação...
o manancial da salvação”.
Recordamos, entre outras coisas, que o nome de Isaías, como o de Jesus, contém a raiz do verbo hebraico yasa’, que faz alusão à “salvação”. Por conseguinte, o nosso orante tem a certeza indiscutível de que na origem da libertação e da esperança se encontra a graça divina. É significativo observar que ele faz referência implícita ao grande acontecimento salvífico do êxodo da escravidão do Egito, porque menciona as palavras do cântico de libertação entoado por Moisés: “O Senhor é a minha força e meu louvor” (cf. Ex 15,2).
4. A salvação dada por Deus, capaz de suscitar a alegria e a confiança também no dia obscuro da provação, é representada pela imagem, clássica na Bíblia, da água: “Com alegria bebereis do manancial da salvação” (v. 3). O pensamento vai espiritualmente para a cena da mulher samaritana, quando Jesus lhe oferece a possibilidade de ter em si mesma uma “nascente de água a jorrar para a vida eterna” (Jo 4,14).
A este propósito, Cirilo de Alexandria comenta de maneira sugestiva: “Jesus chama água viva ao dom vivificante do Espírito, o único através do qual a humanidade, apesar de ter sido completamente abandonada, como os troncos nos montes, seca e privada, devido às insídias do diabo, de todas as espécies de virtudes, é restituída à antiga beleza da natureza... O Salvador chama água à graça do Espírito Santo, e se alguém participar d’Ele, terá em si mesmo a nascente dos ensinamentos divinos, de forma que não terá mais necessidade dos conselhos dos outros, e poderá exortar todos os que tem sede da Palavra de Deus. Eram assim, quando estavam nesta vida e na terra, os santos profetas, os apóstolos e os sucessores do seu ministério. A seu respeito foi escrito: com alegria bebereis do manancial da salvação” (Comentário ao Evangelho de João II, 4, Roma, 1994, pp. 272.275).
Infelizmente a humanidade abandona com frequência esta nascente que sacia todo o ser da pessoa, como realça com amargura o profeta Jeremias: “Abandonou-Me, a Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas rotas, que não podem reter as águas” (Jr 2,13). Também Isaías, poucas páginas atrás, tinha exaltado “as águas de Siloé que correm tranquilas”, símbolo do Senhor presente em Sião, e ameaçara o castigo da inundação das “águas abundantes e impetuosas do rio Eufrates” (Is 8,6-7), símbolo do poder militar e econômico e da idolatria, águas que, então, fascinavam Judá, mas que o teriam submergido.
5. Outro convite - “Direis naquele
dia” - abre a segunda estrofe (vv. 4-6), que é um apelo continuo ao louvor
jubiloso em honra do Senhor. Multiplicam-se os imperativos para cantar: “Louvai,
invocai, anunciai, proclamai, cantai, publicai, exultai”.
No centro do louvor está uma
única profissão de fé em Deus Salvador, que intervém na história e está ao lado
da sua criatura, partilhando as suas vicissitudes: “O nosso Deus... fez
prodígios e portentos... é grande em vosso meio o Deus Santo de Israel” (vv.
5.6). Esta profissão de fé tem também uma função missionária: “anunciai suas
maravilhas, entre os povos proclamai... publicai em toda a terra” (vv. 4.5). A
salvação obtida deve ser testemunhada no mundo, de maneira que toda a
humanidade corra para aquelas nascentes de paz, de alegria e de liberdade.
38. Solene renovação da Aliança: Sl 80(81),2-17
24 de abril de 2002
1. “Na lua nova soai a trombeta, na lua cheia, na festa solene” (v. 4). Estas palavras do Salmo 80, agora proclamado, remetem para uma celebração litúrgica segundo o calendário lunar do antigo Israel. É difícil definir com exatidão a festividade a que o Salmo se refere; é certo que o calendário litúrgico bíblico, embora comece com o fluxo das estações e portanto da natureza, se apresenta firmemente ancorado na história da salvação e, em particular, no principal acontecimento do êxodo da escravidão egípcia, ligado à lua cheia do primeiro mês (cf. Ex 12,2-6; Lv 23,5). Com efeito, foi ali que se revelou o Deus libertador e salvador.
Como afirma poeticamente o versículo 7 desse mesmo Salmo, foi Deus que tirou dos ombros do hebreu escravo no Egito a cesta repleta de tijolos, necessários para a construção das cidades de Pitom e Ramsés (cf. Ex 1,11.14). O próprio Deus pôs-se ao lado do povo oprimido e, com o seu poder, tirou e cancelou o sinal amargo da escravidão, a cesta dos tijolos cozidos ao sol, expressão dos trabalhos forçados a que eram obrigados os filhos de Israel.
2. Agora, sigamos a evolução
desse cântico da Liturgia de Israel. Ele abre-se com um convite à festa, ao
cântico, à música: trata-se da convocação oficial da assembleia litúrgica,
segundo o antigo preceito do culto, nascido já na terra do Egito, com a
celebração da Páscoa (vv. 2-6). Depois deste apelo, ergue-se a voz do próprio
Senhor, através do oráculo do sacerdote no templo de Sião, e estas
palavras divinas hão de ocupar todo o resto do Salmo (vv. 6-17).
O tema que se desenvolve é
simples e inclui dois polos ideais. Por um lado, há o dom divino da liberdade
que foi oferecida a Israel oprimido e infeliz: “Na angústia a mim
clamaste, e te salvei” (v. 8). Existe uma referência também ao apoio que o
Senhor ofereceu a Israel, a caminho no deserto, ou seja, ao dom da água em
Meriba, num contexto de dificuldade e de provação.
3. Por outro lado, porém,
juntamente com o dom divino, o salmista introduz outro elemento significativo.
A religião bíblica não é um monólogo solitário de Deus, uma ação sua destinada
a ficar inerte. Pelo contrário, é um diálogo, uma palavra acompanhada de uma
resposta, um gesto de amor que exige adesão. Por isso, reserva-se um
amplo espaço aos convites que Deus dirige a Israel.
O Senhor convida, em primeiro lugar, à observância do primeiro mandamento, fundamento de todo o Decálogo, ou seja, a fé no único Senhor e Salvador, e a rejeição dos ídolos (cf. Ex 20,3-5). O discurso do sacerdote em nome de Deus é cadenciado pelo verbo “escutar”, querido ao Livro do Deuteronômio, que exprime a adesão obediente à Lei do Sinai e constitui um sinal da resposta de Israel ao dom da liberdade. Com efeito, no nosso Salmo ouve-se repetir: “Ouve, meu povo... Israel, ah! se quisesses me escutar (...) meu povo não ouviu a minha voz, Israel não quis saber de obedecer-me... Quem me dera que meu povo me escutasse!” (vv. 9.12.14).
É somente através da fidelidade na escuta e na obediência que o povo pode receber plenamente os dons do Senhor. Infelizmente, é com amargura que Deus deve dar-se conta das numerosas infidelidades de Israel. O caminho no deserto, a que o Salmo faz alusão, está totalmente constelado de tais atos de rebelião e de idolatria, que alcançarão o seu ápice na configuração do bezerro de ouro (cf. Ex 32,1-4).
4. A última parte do Salmo (vv.
14-17) tem uma tonalidade melancólica. Efetivamente, nele Deus exprime um
desejo que até agora não foi satisfeito: “Quem me dera que meu povo me escutasse!
Que Israel andasse sempre em meus caminhos!” (v. 14).
Porém, esta melancolia inspira-se no amor e está ligada a um profundo desejo de cumular de bens o povo eleito. Se Israel caminhasse pelas sendas do Senhor, Ele poderia dar imediatamente a vitória sobre os seus inimigos (v. 15) e nutri-lo com “a flor do trigo” e saciá-lo “com o mel que sai da rocha” (v. 17). Seria um alegre banquete de pão fresquíssimo, acompanhado do mel que parece correr das rochas da terra prometida, representando a prosperidade e o completo bem-estar, como não raro se repete na Bíblia (cf. Dt 6,3; 11,9; 26,9.15; 27,3; 31,20). Com a apresentação desta maravilhosa perspectiva, evidentemente o Senhor procura obter a conversão do seu povo, uma resposta de amor sincero e efetivo ao seu amor, mais generoso do que nunca.
Na leitura cristã, a oferta divina revela a sua amplitude. Com efeito, Orígenes oferece-nos esta interpretação: o Senhor “fê-los entrar na terra prometida; não os nutriu com o maná, como no deserto, mas com a semente que caiu na terra (cf. Jo 12,24-25), que renasceu... Cristo é a semente; Ele é também a rocha que, no deserto, saciou o povo de Israel com a água. Em sentido espiritual, saciou-o com o mel, e não com a água, a fim de que quantos acreditarem e receberem este alimento, sintam o mel na sua boca” (Homilia sobre o Salmo 80, n. 17, em: Orígenes-Jerônimo, 74 Homilias sobre o Livro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 204-205).
5. Como sempre na história
da salvação, a última palavra no contraste entre Deus e o povo pecador nunca é
o juízo e o castigo, mas o amor e o perdão. Deus não deseja julgar nem
condenar, mas salvar e libertar a humanidade do mal. Ele continua a repetir-nos
as palavras que lemos no Livro do Profeta
Ezequiel: “Porventura sentirei prazer com a morte do injusto... O que eu
quero é ele se converta dos seus maus caminhos, e viva (...) Por que motivo
deveríeis morrer, casa de Israel? Eu não sinto prazer com a morte de
ninguém. Oráculo do Senhor Deus. Convertei-vos e tereis a vida” (Ez 18,23.31-32).
A Liturgia torna-se o lugar privilegiado onde escutar o apelo divino à conversão e voltar ao abraço do Deus “misericordioso e clemente, lento a encolerizar-se, mas cheio de bondade e de fidelidade” (Ex 34,6).
"Com alegria bebereis do manancial da salvação" (Is 12,3) Jesus e a Samaritana junto ao poço (Palma il Giovane) |
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