Nesta
postagem propomos as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e o
cântico das Laudes da quarta-feira da II semana do Saltério, proferidas nos
dias 13 de março (Sl 76), 20 de março (1Sm 2,1-10) e 03 de abril de 2002 (Sl
96).
33. Lembrando as maravilhas
do Senhor: Sl 76(77),2-21
13 de março de 2002
1. A Liturgia, ao inserir
nas Laudes de uma
manhã o Salmo 76, que acabamos de proclamar, deseja recordar-nos que o início
do dia nem sempre é luminoso. Assim como alvorecem dias tenebrosos, nos quais o
céu está coberto de nuvens e ameaçado pela tempestade, assim também a nossa
vida conhece dias repletos de lágrimas e de receio. Por isso, já no alvorecer a
oração se torna lamento, súplica e invocação de ajuda.
O nosso Salmo é,
precisamente, uma oração que se eleva a Deus com insistência, profundamente
animada pela confiança, aliás, pela certeza da intervenção divina. De fato,
para o salmista o Senhor não é um imperador impassível, confinado no seu
luminoso céu, indiferente às nossas vicissitudes. Desta impressão, que por
vezes nos oprime o coração, surgem perguntas tão amarguradas que fazem vacilar
a fé: “Deus está desmentindo o seu amor e a sua eleição? Esqueceu-se dos tempos
em que nos amparava e nos fazia felizes?”. Como veremos, estas perguntas
desaparecerão devido a uma renovada confiança em Deus, Redentor e Salvador.
2. Sigamos, então, o
desenvolvimento desta oração que começa com uma tonalidade dramática, na
angústia, para depois, pouco a pouco, se abrir à serenidade e à esperança. Eis
diante de nós, em primeiro lugar, a lamentação sobre o presente triste e sobre
o silêncio de Deus (vv. 2-11). É dirigido ao céu, aparentemente mudo, um
brado que pede ajuda, as mãos elevam-se em súplica, o coração desfalece
devido às aflições. Nas noites em que não se dorme, feitas de lágrimas e de
orações, “volta ao coração” um cântico, como diz o v. 7, uma estrofe
desconfortada ressoa continuamente no fundo da alma.
Quando o sofrimento chega ao
ápice e se deseja afastar o cálice do sofrimento (cf. Mt 26,39), as palavras explodem e
tornam-se perguntas dilacerantes, como já se disse (vv. 8-11). Este brado
interpela o mistério de Deus e do seu silêncio.
3. O salmista pergunta por
que é que o Senhor o recusa, por que mudou o seu rosto e o seu modo de agir,
esquecendo o amor, a promessa de salvação e a ternura misericordiosa. “A mão de
Deus”, que realizara os prodígios salvíficos do êxodo, parece estar paralisada
(v. 11). E este é um verdadeiro e próprio “tormento”, que faz vacilar a fé de
quem reza.
Se fosse assim, Deus seria
irreconhecível, se tornaria um ser cruel ou uma presença como a dos ídolos, que
não sabem salvar porque são incapazes, indiferentes e impotentes. Nos
versículos da primeira parte do Salmo 76 encontra-se todo o drama da fé no
tempo das provações e do silêncio de Deus.
4. Mas há motivos de
esperança. É o que sobressai na segunda parte da súplica (vv. 12-21),
semelhante a um hino destinado a repropor a confirmação corajosa da própria fé
também nos dias tenebrosos do sofrimento. Canta-se o passado de salvação, que
teve a sua epifania de luz na criação e na libertação da escravidão do Egito. O
presente amargo é iluminado pela experiência salvífica do passado, que é uma
semente lançada na história: ela não morreu, mas simplesmente foi sepultada,
para depois germinar (cf. Jo 12,24).
Por conseguinte, o salmista
recorre a um importante conceito bíblico, o do “memorial”, que não é apenas uma
vaga recordação confortadora, mas é a certeza de uma ação divina que nunca virá
a faltar: “recordando os grandes feitos do passado, vossos prodígios eu
relembro, ó Senhor” (v. 12).
Professar a fé nas obras de
salvação do passado faz ter fé em tudo o que o Senhor é constantemente e,
portanto, também no tempo presente. “São santos, ó Senhor, vossos caminhos... Sois
o Deus que operastes maravilhas” (vv. 14-15). Assim, o presente, que parecia
não ter futuro nem luz, é iluminado pela fé em Deus e aberto à esperança.
"Abriu-se em pleno mar vosso caminho... Como um rebanho conduzistes vosso povo" (Sl 76,20-21) (Passagem do Mar Vermelho - Ivan Aivazovsky) |
5. Para apoiar esta fé, o
salmista provavelmente cita um hino mais antigo, talvez cantado na Liturgia do
templo de Sião (vv. 17-20). É uma clamorosa teofania na qual o Senhor entra na
história, agitando a natureza e sobretudo as águas, símbolo da confusão, do mal
e do sofrimento. É muito bonita a imagem do caminho de Deus sobre as águas,
sinal do seu triunfo sobre as forças negativas: “Abriu-se em pleno mar vosso
caminho e a vossa estrada, pelas águas mais profundas; mas ninguém viu os
sinais dos vossos passos” (v. 20). E o pensamento dirige-se para Cristo que
caminha sobre as águas, símbolo eloquente da sua vitória sobre o mal (cf. Jo 6,16-20).
Por fim, recordando que Deus
guiou o seu povo “como um rebanho”, pela mão de “Moisés e Aarão” (v. 21), o Salmo
leva-nos implicitamente a uma certeza: Deus nos conduzirá de novo à salvação. A
sua mão poderosa e invisível estará conosco através da mão visível dos pastores
e dos guias por Ele estabelecidos. O Salmo, que começou com um brado de
sofrimento, no final suscita sentimentos de fé e de esperança no grande pastor
das nossas almas (cf. Hb 13,21; 1Pd 2,25).
34. Os humildes se alegram em
Deus: 1Sm 2,1-10
20 de março de 2002
1. Uma voz feminina
orienta-nos hoje na oração de louvor ao Senhor da vida. De fato, na narração do Primeiro Livro de Samuel, é
Ana quem entoa o hino que acabamos de proclamar, depois de ter oferecido ao
Senhor o seu menino, o pequeno Samuel. Ele será profeta em Israel e assinalará
com a sua ação a passagem do povo hebraico para uma nova forma de
governo, a monarquia, que terá como protagonistas o desventurado rei Saul
e o glorioso rei Davi. Ana deixará atrás de si uma história de sofrimentos
porque, como diz a narração, o Senhor “tinha-a feito estéril” (1Sm 1,5).
No antigo Israel a mulher
estéril era considerada como um ramo seco, uma presença morta, também porque
impedia que o marido tivesse uma continuidade na recordação das gerações
seguintes, um fato importante numa visão ainda incerta e obscura do além.
2. Mas Ana tinha posto a sua
confiança no Deus da vida e rezara da seguinte forma: “Senhor dos
exércitos, se Vos dignardes olhar para a aflição da Vossa serva e Vos
lembrardes de mim; se não Vos esquecerdes da Vossa escrava e lhe derdes um
filho varão, eu o consagrarei ao Senhor durante todos os dias da minha vida”
(v. 11). E Deus ouviu o brado desta mulher humilhada, dando-lhe precisamente
Samuel: o ramo seco produziu um rebento vivo (cf. Is 11,1); o que era impossível aos
olhos humanos tornou-se uma realidade palpitante naquela criança que iria ser
consagrada ao Senhor.
O cântico de agradecimento,
que veio aos lábios desta mãe, será retomado e reelaborado por outra mãe,
Maria, que, permanecendo virgem, irá gerar por obra do Espírito de Deus. Com
efeito, o Magnificat da Mãe de Jesus
deixa entrever em filigrana o cântico de Ana que, precisamente por isso, é
chamado “o Magnificat do Antigo
Testamento”.
3. Na realidade, os
estudiosos fazem notar que o autor sagrado pôs nos lábios de Ana uma espécie de
salmo real, cheio de citações ou alusões a outros salmos.
Sobressai em primeiro plano
a imagem do rei hebraico, invadido por adversários mais poderosos, mas que no
final é salvo e triunfa porque, ao seu lado, o Senhor quebra o arco dos fortes
(v. 4). É significativo o final do cântico quando, numa solene epifania, entra
em cena o Senhor: “Os inimigos do Senhor serão vencidos; sobre eles faz
troar o seu trovão, o Senhor julga os confins de toda a terra. O Senhor dará a
seu Rei a realeza e exaltará o seu Ungido com poder” (v. 10). Em hebraico, a
última palavra é precisamente “Messias”, isto é “ungido”, que permite
transformar esta oração real em cântico de esperança messiânica.
4. Desejaríamos realçar dois
temas neste hino de agradecimento que exprime os sentimentos de Ana. O primeiro
dominará também o Magnificat de Maria
e é a transformação do destino realizada por Deus. Os fortes são humilhados, os
fracos “se vestiram de vigor”; os saciados vão desesperadamente à procura de
alimento e os famintos sentam-se para um banquete suntuoso; o pobre é arrancado
da poeira e recebe um “lugar de muita honra e distinção” (vv. 4.8).
É fácil sentir nesta antiga
oração a orientação das sete ações que Maria vê realizar na história por Deus
Salvador: “Demonstrou o poder de seu
braço, dispersou os orgulhosos; derrubou os poderosos de seus tronos e
os humildes exaltou; de bens saciou os famintos, e despediu, sem nada, os ricos. Acolheu Israel, seu servidor” (Lc 1,51-54).
É uma profissão de fé
pronunciada pelas duas mães em relação ao Senhor da história, que se manifesta
em defesa dos últimos, dos pobres e infelizes, dos ofendidos e dos humilhados.
5. Outro tema que desejamos
esclarecer relaciona-se ainda mais com a figura de Ana: “Muitas vezes deu
à luz a que era estéril, mas a mãe de muitos filhos definhou” (v.
5). O Senhor que inverte os destinos é também aquele que está na origem da vida
e da morte. O seio estéril de Ana era semelhante a um túmulo; e não obstante
Deus fez germinar nele a vida, porque Ele “tem em Suas mãos a alma de todo o
ser vivente, e o sopro de vida de todos os homens” (Jó 12,10). Em continuidade,
canta-se logo a seguir: “É o Senhor quem dá a morte e dá a vida, faz descer à
sepultura e faz voltar” (1Sm 2,6).
A esperança já não diz
respeito apenas à vida do menino que nasce, mas também à que Deus pode fazer
desabrochar depois da morte. Desta forma, abre-se um horizonte quase “pascal”
de ressurreição. Isaías cantará: “Os vossos mortos reviverão, os seus cadáveres
ressuscitarão, despertarão jubilosos os que jazem no sepulcro! Porque o vosso
orvalho é um orvalho de luz, e a terra das sombras dará à luz” (Is 26,19).
35. A glória do Senhor como
juiz: Sl 96(97),1-12
03 de abril de 2002
1.
A luz, a alegria e a paz, que no Tempo Pascal inundam a comunidade dos
discípulos de Cristo e se difundem por toda a criação, invadem este nosso
encontro, que tem lugar no clima intenso da Oitava de Páscoa. É o triunfo de
Cristo sobre o mal e sobre a morte, que celebramos durante estes dias. Com a
sua Morte e a sua Ressurreição, é estabelecido definitivamente o reino de
justiça e de amor desejado por Deus.
É
precisamente ao tema do reino de Deus que se refere a Catequese de hoje,
dedicada à reflexão sobre o Salmo 96. Este Salmo começa com a solene
proclamação: “Deus é Rei!
Exulte a terra de alegria, e as ilhas numerosas rejubilem!”, e
distingue-se como uma celebração do Rei divino, Senhor do cosmos e da história. Portanto, poderíamos dizer que nos
encontramos na presença de um salmo “pascal”.
Sabemos
como o anúncio do reino de Deus era importante na pregação de Jesus. Não é
apenas o reconhecimento da dependência do ser criado em relação ao Criador; é
também a convicção de que no interior da história estão inseridos um projeto,
um desígnio e uma trama de harmonias e de bens, desejados por Deus. Tudo isto
se realizou plenamente na Páscoa da Morte e da Ressurreição de Jesus.
2.
Agora percorramos o texto do Salmo, que a Liturgia nos propõe na celebração das
Laudes. Imediatamente depois da aclamação do Senhor Rei, que ressoa como um
toque de trombeta, abre-se diante do orante uma grandiosa epifania divina.
Referindo-se ao uso de citações ou alusões a outros trechos dos Salmos ou dos
Profetas, sobretudo de Isaías, o
salmista delineia a irrupção no cenário do mundo do grande Rei, que aparece
circundado por uma série de ministros ou forças cósmicas: as nuvens, as trevas,
o fogo e os relâmpagos.
Ao
lado deles, outra série de ministros personifica a sua ação histórica: a
justiça, o direito e a glória. O seu ingresso no cenário faz a criação
estremecer. A terra exulta em todos os lugares, também nas ilhas, consideradas
como a área mais remota (v. 1). O mundo inteiro é iluminado por relâmpagos de
luz e a terra estremece (v. 4). Os montes que, segundo a cosmologia bíblica,
encarnam as realidades mais antigas e sólidas, derretem-se como se fossem de
cera (v. 5), como já cantava o profeta Miquéias: “Olhai, o Senhor sai do seu
lugar e desce... desfazem-se as montanhas e os vales derretem-se como cera
junto do fogo” (Mq 1,3-4). Nos céus
ressoam hinos angélicos que exaltam a justiça, ou seja, a obra de salvação
levada a cabo pelo Senhor para os justos. Enfim, toda a humanidade contempla a
revelação da glória divina, ou seja, da misteriosa realidade de Deus (v. 6),
enquanto os “inimigos” isto é, os iníquos e os injustos, cedem perante a força
irresistível do juízo do Senhor (v. 3).
3.
Depois da teofania do Senhor do universo, o Salmo descreve dois tipos de reação
diante do grande Rei e do seu ingresso na história. Por um lado, os idólatras e
os ídolos caem por terra, confusos e derrotados; por outro, os fiéis reunidos
em Sião para a celebração litúrgica em honra do Senhor, elevam com alegria um
hino de louvor. A cena dos “adoradores de estátuas” (vv. 7-9) é essencial: os
ídolos prostram-se diante do único Deus e os seus seguidores cobrem-se de
vergonha. Os justos assistem exultantes ao juízo divino, que elimina a mentira
e a falsa religiosidade, fontes de miséria moral e de escravidão. Eles entoam
uma profissão de fé luminosa: “Porque vós sois o Altíssimo, Senhor, muito acima
do universo que criastes, e de muito superais todos os deuses” (v. 9).
4.
Ao quadro que descreve a vitória sobre os ídolos e sobre os seus adoradores
opõe-se aquele que poderíamos definir como o maravilhoso “dia dos fiéis” (vv.
10-12). Com efeito, fala-se de uma luz que se levanta para o justo (v.
11): é como se despontasse uma aurora de alegria, de festa e de
esperança, também porque como se sabe a luz é símbolo de Deus (cf. 1Jo 1,5).
O
profeta Malaquias declarava: “Para vós que temeis o Senhor brilhará o sol da
justiça” (Ml 3,20). À luz, associa-se
a felicidade: “Uma luz já se levanta para os justos, e a alegria, para os retos
corações. Homens justos, alegrai-vos no Senhor, celebrai e bendizei seu santo
nome!” (vv. 11-12).
O
reino de Deus é uma fonte de paz e de serenidade, pois aniquila o império das
trevas. Uma comunidade judaica contemporânea de Jesus cantava: “A
injustiça vacila diante da justiça, como as trevas se afastam da luz; a
injustiça desaparecerá para sempre e a justiça, como o sol, se mostrará como
princípio de ordem do mundo” (Livro dos mistérios de Qumran: 1 Q 27, I, 5-7).
5.
Antes de deixar o Salmo 96, é importante encontrar nele, para além da face do
Senhor Rei, também o rosto do fiel. Ele é descrito com sete traços, sinal de
perfeição e de plenitude. Aqueles que esperam a vinda do grande Rei divino
odeiam o mal e amam o Senhor, são os hasidim, ou seja, os
fiéis (v. 10), caminham pela senda da justiça e são retos de coração (v. 11),
alegram-se diante das obras de Deus e dão graças ao santo nome do Senhor (v.
12). Peçamos ao Senhor que estes traços espirituais brilhem também em nosso
rosto.
"Exulta no Senhor meu coração..." (1Sm 2,1) O cântico de Ana, mãe do profeta Samuel, o "Magnificat do AT" |
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