Cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
02 de abril de 2021
“Primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29)
Em 03 de outubro
passado, junto à tumba de São Francisco, em Assis, o Santo Padre assinava a sua
Encíclica sobre a fraternidade, Fratres omnes (Fratelli tutti). Em pouco tempo, ela fez
renascer em tantos corações a aspiração quanto a este valor universal, trouxe à
luz tantas feridas contra ela no mundo de hoje, indicou algumas vias para se
chegar a uma verdadeira e justa fraternidade humana e exortou todos - pessoas e
instituições - a trabalhar por ela.
A Encíclica é
endereçada idealmente a um público vastíssimo, dentro e fora da Igreja: na
prática, a toda a humanidade. Toca muitas esferas da vida: da privada à pública,
da religiosa à social e política. Devido a este seu horizonte universal, ela
evita - justamente - restringir o discurso ao que é próprio e exclusivo dos
cristãos. Contudo, pelo final da Encíclica, há um parágrafo em que o fundamento
evangélico da fraternidade é resumido em poucas, mas vibrantes palavras.
Afirma:
“Outros bebem de
outras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está
no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, ‘para o pensamento cristão e para a
ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério
sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação
de todos’” (Fratelli tutti, n. 277).
O mistério da
cruz que estamos celebrando nos obriga a nos concentrarmos justamente neste
fundamento cristológico da fraternidade, que foi inaugurado na morte de Cristo.
No Novo
Testamento, “irmão” significa, em sentido primordial, a pessoa nascida do mesmo
pai e da mesma mãe. “Irmãos”, em segundo lugar, são chamados os membros do
mesmo povo e nação. Assim Paulo afirma estar disposto a se tornar anátema,
separado de Cristo, em vantagem de seus irmãos segundo a carne, os israelitas (cf. Rm
9,3). Claro que, nestes contextos, como em outros casos, “irmãos” abrange
homens e mulheres, irmãos e irmãs.
Neste
alargamento de horizonte, chega-se a chamar de irmão cada pessoa humana, pelo
fato de ser tal. Irmão é aquele que a Bíblia chama de “próximo”. “Quem não ama
o próprio irmão...” (1Jo 2,9)
significa: quem não ama o seu próximo. Quando Jesus diz: “Todas as vezes que
fizestes isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o
fizestes” (Mt 25,40), compreende toda
pessoa humana necessitada de ajuda.
Mas, ao lado
destes significados antigos e conhecidos, no Novo Testamento a palavra “irmão”
tende sempre mais a indicar uma categoria particular de pessoas. Irmãos entre
si são os discípulos de Jesus, aqueles que acolhem seus ensinamentos. “Quem é
minha mãe, e quem são meus irmãos? (...) Todo aquele que faz a vontade do meu
Pai, que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,48-50).
Nesta linha, a
Páscoa marca uma etapa nova e decisiva. Graças a ela, Cristo se torna “o
primogênito entre muitos irmãos” (Rm
8,29). Os discípulos se tornam irmãos em sentido novo e profundíssimo:
compartilham não apenas o ensinamento de Jesus, mas também seu Espírito, sua
nova vida de ressuscitado. É significativo que, somente após sua Ressurreição,
pela primeira vez, Jesus chama os seus discípulos de “irmãos”: “Vai dizer aos
meus irmãos - diz a Maria Madalena - que eu subo para junto do meu Pai e vosso
Pai, meu deus e vosso Deus” (Jo
20,17). “Pois tanto o Santificador, quanto os santificados - lê-se na Carta aos
Hebreus - todos procedem de um só. Por esta razão, Ele (Cristo) não se
envergonha de chamá-los irmãos” (Hb
2,11).
Depois da
Páscoa, este é o uso mais comum do termo “irmão”; indica o irmão de fé, membro
da comunidade cristã. Irmãos “de sangue”, também neste caso, mas do sangue de
Cristo! Isso faz da fraternidade de Cristo algo de único e transcendente, em
relação a qualquer outro gênero de fraternidade, e deve-se ao fato de que
Cristo é também Deus. Ela não substitui os demais tipos de fraternidade,
baseados na família, nação ou raça, mas coroa-os. Todos os seres humanos são
irmãos enquanto criaturas do mesmo Deus e Pai. A isso, a fé cristã acrescenta
uma segunda e decisiva razão. Somos irmãos não apenas a título de criação, mas
também de redenção; não só porque todos temos o mesmo Pai, mas porque todos
temos o mesmo irmão, Cristo, “primogênito entre muitos irmãos”.
À luz de tudo
isso, devemos fazer agora algumas reflexões atuais. A fraternidade se constrói
exatamente como se constrói a paz, isto é começando de perto, a partir de nós,
não com grandes esquemas, com metas ambiciosas e abstratas. Isto significa que
a fraternidade universal começa para nós com a fraternidade na Igreja Católica.
Deixo de lado, por uma vez, também a segunda esfera, que é a fraternidade entre
todos os fiéis em Cristo, ou seja, o ecumenismo.
A fraternidade
católica está dilacerada! A túnica de Cristo foi cortada em pedaços pelas
divisões entre as Igrejas; mas - o que não é menos grave - cada pedaço da
túnica, por sua vez, é frequentemente dividido em outros pedaços. Naturalmente,
falo do elemento humano dela, porque a verdadeira túnica de Cristo, seu corpo
místico animado pelo Espírito Santo, ninguém jamais poderá dilacerar. Aos olhos
de Deus, a Igreja é “una, santa, católica e apostólica”, e assim permanecerá
até o fim do mundo. Isto, contudo, não desculpa as nossas divisões, mas as
torna ainda mais culpáveis e deve nos impulsionar, com mais força, a
restaurá-las.
Qual é a causa
mais comum das divisões entre os católicos? Não é o dogma, não são os
sacramentos e os ministérios: coisas estas que, por singular graça de Deus,
mantemos íntegras e unânimes. É a opção política, quando ela se sobrepõe àquela
religiosa e eclesial e desposa uma ideologia, esquecendo completamente o
sentido e o dever da obediência na Igreja.
É isto, em
certas partes do mundo, o verdadeiro fator de divisão, ainda que tácito ou
indignadamente. Isto é um pecado, no sentido mais estrito do termo. Significa
que o “o reino deste mundo” se tornou mais importante, no próprio coração, do
que o Reino de Deus. Creio que sejamos todos chamados a fazer um sério exame de
consciência sobre isso e a nos convertermos. Esta é, por excelência, a obra
daquele cujo nome é “diabolos”, isto
é, o divisor, o inimigo que semeia o joio, como o define Jesus em sua parábola
(cf. Mt 13,25).
Devemos aprender
do Evangelho e do exemplo de Jesus. Ao redor dele, havia uma forte polarização
política. Existiam quatro partidos: fariseus, saduceus, herodianos e zelotes.
Jesus não ficou do lado de nenhum deles e resistiu energicamente à tentativa de
ser arrastado para uma parte ou outra. A comunidade cristã primitiva o seguiu
fielmente nesta opção. Este é um exemplo sobretudo para os pastores que devem
ser pastores de todo o rebanho, não apenas de uma parte dele. São eles, por
isso, os primeiros a ter que fazer um sério exame de consciência e se perguntar
para onde estão conduzindo o próprio rebanho: se à própria parte (ou ao próprio
“partido”), ou à parte de Jesus. O Concílio Vaticano II confia aos leigos,
antes de tudo, a tarefa de traduzir as indicações sociais, econômicas e
políticas do Evangelho em diferentes opções, desde que sejam sempre respeitosas
e pacíficas.
Se há um dom ou
carisma próprio que a Igreja Católica deve cultivar em benefício de todas as
Igrejas, este é a unidade. A recente viagem do Santo Padre ao Iraque nos fez
ver concretamente o que significa, para quem está oprimido ou afligido por
guerras e perseguição, sentir-se parte de um corpo universal, com alguém que
pode fazer o resto do mundo escutar o próprio grito e fazer renascer a
esperança. Ainda uma vez, cumpriu-se o mandato de Cristo a Pedro: “Confirma os
teus irmãos” (Lc 22,32).
Àquele que
morreu na cruz “para reconduzir à unidade os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52) elevemos, neste dia, “com
coração contrito e espírito humilde”, a oração que a Igreja dirige em cada
Missa antes da Comunhão:
Senhor Jesus
Cristo, dissestes aos vossos Apóstolos: Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha
paz. Não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima vossa Igreja; dai-lhe,
segundo o vosso desejo, a paz e a unidade. Vós, que sois Deus, com o Pai e o
Espírito Santo. Amém.
Fonte: Vatican News
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