quinta-feira, 8 de abril de 2021

Homilias do Patriarca de Lisboa: Semana Santa 2021

Confira nesta postagem as homilias do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, proferidas durante as seis celebrações da Semana Santa deste ano de 2021 na Sé de Lisboa: a Missa do Domingo de Ramos, a Missa Crismal, a Missa da Ceia do Senhor, a Celebração da Paixão do Senhor, a Vigília Pascal e a Missa do Domingo de Páscoa.

Homilia do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor
A vitória de Deus
Sé de Lisboa, 28 de março de 2021

A entrada de Jesus em Jerusalém, naquele dia de hoje, correspondeu imediatamente às antigas expetativas de muitos, alvoroçados pelo que ouviam dizer dele e do que fizera. Na verdade, tanto se contava, há dois ou três anos já, da Galileia à Judeia, tão ao encontro de antigas profecias... E o que Ele mesmo dissera, ecoando palavras e promessas que a tradição guardava, dos antigos reis aos profetas, deixando entender que nele se cumpriam...
Por isso irrompiam as exclamações. Ali vinha Ele, montado num jumentinho, como se profetizara do Messias Rei que chegaria: “Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino do nosso pai David que está a chegar. Hosana nas alturas!” (Mc 11,9-10).
Compreende-se e aceita-se que assim fosse, sobretudo quando a situação daquele povo era exatamente o contrário. Sob um império pagão que o oprimia, à mercê de governadores cruéis como Pilatos, tudo contradizia o que fora séculos atrás, jamais esquecidos. Isso mesmo acicatava a esperança de muitos e até provocava a revolta de alguns, que de tempos a tempos se insurgiam contra o domínio romano. 
Facilmente encontravam seguidores. Faziam-no mesmo em revolta armada, duramente reprimida depois. Anos mais tarde, foi uma dessas revoltas que levou os romanos a arrasarem o templo, como Jesus avisara. E não foi a última, até à destruição da cidade inteira, no século seguinte... Talvez haja uma referência a tais despistes messiânicos na conhecida frase de Jesus: «o Reino do Céu tem sido objeto de violência e os violentos apoderam-se dele à força» (Mt 11,12). 
A confusão existia, mesmo no círculo dos discípulos. Dias depois, no Getsêmani, ainda aconteceria assim, aquando da prisão de Jesus: «Um dos que estavam com Jesus levou a mão à espada, desembainhou-a e feriu um servo do Sumo Sacerdote, cortando-lhe uma orelha. Jesus disse-lhe: “Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada morrerão à espada”» (Mt 26,51-52). Lição difícil de aprender...
Como igualmente sabemos, os próprios romanos suspeitavam das intenções de Jesus e Pilatos condenou-o por isso, como atesta o título que lhe mandou pôr na cruz, mesmo que Jesus rejeitasse qualquer conotação bélica ou política da sua realeza.
Mas era assim a expectativa vulgar. Não a intenção de Jesus, como nunca o fora, aliás. Lembramos o que sucedera tempos antes, quando o quiseram fazer rei, depois da multiplicação dos pães: «Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para fazê-lo rei, retirou-se de novo, sozinho, para o monte» (Jo 6,15).
Mas, não sendo essa a intenção de Jesus, era bem a expectativa de muitos. Terá sido até o motivo da decepção do Iscariotes, que passou de discípulo a traidor. E também doutros, que o aclamaram com ramos e daí a dias lhe pediram a morte no pretório de Pilatos? Fica a pergunta, certamente para eles, mas não só para eles...

Na verdade, não foi apenas naquela altura que aconteceram despistes e decepções em relação a Jesus e ao que esperavam dele. Dois mil anos de Cristo no mundo, como a ressurreição lhe alargou a presença, acrescentam numerosos exemplos àqueles primeiros dias - outros tantos alertas para nós.
Não faltaram nem faltam situações de perseguição, em que os mártires testemunham o modo vitorioso de Cristo, ganhando a vida que com ele entregam. Mas noutros sobrevém a decepção duma vitória meramente humana e pouco duradora. Como não faltam situações de torpor espiritual; ou de revestimento, assim dito, “cristão” de sociedades e épocas, em que o contraste evangélico se dilui e ofusca. Como se o fim dos tempos viesse cedo demais, sendo tanto o que falta ultimar em Cristo! Este engano, tão repetido, ontem e ainda hoje, deu sempre azo a frustrações e abandonos. Às vezes com boa vontade, mas não com vontade convertida.
Primeiro, o Evangelho há de chegar a toda a terra - alargada aos confins do mundo inteiro. Mundo que espiritualmente ultrapassa qualquer geografia, para tocar o mais profundo e decisivo da alma de cada um. E falta tanto, sobretudo porque muitos que o escutaram não tiveram “ouvidos para ouvir”. Lembremos o aviso de Jesus: «Este Evangelho do Reino será proclamado em todo o mundo, para se dar testemunho diante de todos os povos. E então virá o fim» (Mt 24,14). Uma meta que havemos de alcançar, se convertermos o desejo em missão.
Expectativas mundanas e expectativas divinas, realmente tão diferentes. De Deus há, isso sim, a vontade permanente de nos reaver como filhos. Para tal, teve de fazer da sua própria Palavra criadora uma Palavra redentora, que superasse, na humanidade e por dentro dela, toda a distância que alongamos d’Ele. Assim aconteceu em Cristo, que se fez um de nós para nos fazer de Deus.

Caminho tão difícil, que passou pela morte, para preenchê-la de vida, sendo essa a vitória de Deus. Essa sim era o último inimigo a vencer - não os romanos ou outro que fosse, para um messianismo demasiado fácil, como tantos esperavam com aquelas aclamações dúbias e inconstantes.
Nos dias que se seguem, meditaremos de novo e ainda mais nos derradeiros que Jesus passou na terra, para que tudo se ultimasse nele, finalmente nele e ao seu único modo. Em tempos tão difíceis como estes, entre tanto sofrimento passado e tanta interrogação para o futuro, fixemo-nos na cruz onde expirou, para que o seu Espírito se espalhasse em toda a terra, como vários sinais hoje o confirmam. Assim os oferece a abnegação de muitos e assim os reconhecemos gratamente nós.
Não os procuremos por de fora, mas aí mesmo onde se somam diariamente gestos solidários, saúdes cuidadas, solidões acompanhadas e trabalhos mantidos. Em tudo o que houver de vida entregue, aí mesmo a cruz triunfa agora. A cruz de Cristo, que salva a cruz do mundo. 
Era a única vitória que Deus queria, como Jesus a conseguiu e o Espírito a difunde. Só esta perpetuará os ramos e os hosanas deste dia!


Homilia da Missa Crismal
A última alínea do programa pastoral de Cristo
Sé de Lisboa, 01 de abril de 2021

Caríssimos irmãos sacerdotes e todo o Povo de Deus do Patriarcado de Lisboa:
Tendo-vos muito presentes nesta Missa Crismal, é especialmente a vós, presbíteros, que me dirijo agora. Não sois muitos aqui, em virtude das restrições que a pandemia nos impõe. Mas estais por todos os outros, do clero secular e regular da Diocese. E é também a vós que esta celebração particularmente respeita, para que, através do vosso ministério, chegue a todo o Povo Sacerdotal que servis.
É este, aliás, o movimento geral da história sagrada, quando a ação divina se difunde sempre pela participação de alguém, para isso mesmo vocacionado: a promessa por Abraão; a lei por Moisés; a profecia pela sucessão dos que a proferiram; o apostolado pelos Doze e por Paulo... É também neste sentido que a graça divina se torna “sacramental”, como acontece convosco, caríssimos padres.
Assim o disse a Exortação Apostólica pós-sinodal Pastores dabo vobis (n. 15), tão marcante que foi e continua a ser: «Este é o modo típico e próprio pelo qual os ministros ordenados [nos graus episcopal e presbiteral] participam do único sacerdócio de Cristo. O Espírito Santo, mediante a unção sacerdotal da Ordem, configura-os, por um título novo e específico, a Jesus Cabeça e Pastor, confirma-os e anima-os com a sua caridade pastoral e coloca-os na Igreja na condição de servidores do anúncio do Evangelho a toda a criatura e da plenitude da vida cristã para todos os batizados».
Faz-nos bem retomar este e outros trechos que, sendo oficiais, não são menos existenciais e dirigidos à vida e ao ânimo de cada um de nós. Não são critérios funcionais do mundo, são razões de ser, que hão de passar por nós e nos definem.
O trecho aproxima-nos diretamente do que ouvimos há pouco, quer no passo de Isaías quer na sua apropriação por Jesus na sinagoga de Nazaré. Não é demais chamar-lhe o “programa pastoral de Cristo”, com um enunciado que devemos saber de cor, para que seja nosso também: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor».
Alínea por alínea, este programa tem um sentido global, dirigindo-se a todas as pessoas no corpo e no espírito, como o Evangelho demonstra: pobrezas, cativeiros, cegueiras e opressões eram e continuam a ser de muito diversificado tipo e sempre requerem uma resposta inteira, que conta conosco na primeira linha. 
No tempo que atravessamos e em que necessidades de toda a ordem se agravaram, com doenças e solidões, com interrupções de trabalhos e dificuldades de ensino, em confinamentos tantas vezes precários e sobrelotados, quero reconhecer a agradecer os muitos exemplos de solidariedade que sacerdotes, instituições e comunidades cristãs deram e continuam a dar, juntando-se assim a tudo quanto se tem realizado por parte da sociedade em geral.
Ungidos pelo Espírito que movia Jesus, importa podermos dizer de nós, com verificação certa e crescente, o mesmo que Ele disse de si naquele dia: «Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Estamos em Missa Crismal, para benzer os óleos que assim mesmo se tornarão sacramentais. Mas estamos também para que o Espírito nos confirme como sinais vivos de Cristo Sacerdote e Pastor. Assim o direis daqui a pouco, na renovação das promessas sacerdotais.

Este ano, fixo-me na última alínea do programa pastoral de Cristo, como o ouvimos: «O Espírito do Senhor enviou-me a proclamar o ano da graça do Senhor».
Refere-se à instituição antiga do Jubileu, sempre por cumprir. Assim estipulava o Levítico: «Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam. Este ano será para vós um Jubileu; cada um de vós voltará à sua propriedade e à sua família. [...] Nenhuma terra será vendida definitivamente porque a terra pertence-me e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25,10.23).
Resgate de pessoas e terras, para que tudo voltasse ao princípio e a partir de Deus, único e absoluto Senhor. Nunca terá acontecido tal e qual, nem perto disso, mas o trecho lá estava, a aguardar cumprimento. E, porque faltou reconhecer a Deus como único Senhor, acabou o povo por definhar também, numa longa história de apropriações indevidas e muita frustração. Até que Jesus se ofereceu inteiramente ao Pai, para que a humanidade se reencontrasse em Deus. 
Com Jesus, começava a realizar-se o “ano da graça do Senhor”. Sentiam-no quantos se aproximavam dele, sendo plenamente correspondidos e até ultrapassados nas expetativas que tinham. Sentimo-lo nós, que herdamos a sua vida, distribuída agora pelas mãos do Pai, essas mesmas a que se entregou na cruz. E hão de senti-lo muitos outros, na medida em que correspondamos à unção do seu Espírito, para que a redenção do mundo passe por nós também, como sacramentos sacerdotais de Cristo.
O “ano da graça” finalmente realizado, com Jesus e à sua volta. Com Ele, tudo foi de Deus e por isso tudo foi para todos. Ungido pelo Espírito, realizou-o por fim, libertando de múltiplos cativeiros tanta gente que dele se abeirou. Só assim se cumpriu o anunciado jubileu, o ano da graça do Senhor. Assim na altura, como há de continuar agora, neste tempo difícil que vivemos e para o diferente futuro que almejamos. 
Almejamos uma terra em que realmente caibam todos, com o que a existência de cada um requer, de companhia e cuidado, da concepção à morte natural. Este desígnio clama por solidariedade total, particular e pública, na humanidade comum. No que nos respeita, como sacramentos de Cristo Pastor, inclui clareza de doutrina e estímulo permanente, junto dos que estão na primeira linha dos problemas e da respetiva solução.
Adivinha-se muito o que há de vir. Há quem preveja euforias, depois de tempos tão pesados. Há quem manifeste mais cautela e baixe a expectativa e o prognóstico. Há quem duvide que alguma coisa mude, além do aspecto sanitário... Seja como for, a nova normalidade terá de ser certamente mais capaz, de todos para todos. O mundo global só sobreviverá assim.

Com Jesus, pensaremos noutro modo de sermos sociedade, outro modo de viver e conviver, não só na quantidade que baste, mas sobretudo na qualidade que humanize. Mais justos, dando a cada um o que lhe é devido. Mais comedidos, para não faltar a ninguém. Mais educados, para fruir sem desgaste e consumir sem desperdício. Porque, na verdade, nada em nós começa e nada em nós acaba. Viveremos em ação de graças e cuidando da criação inteira. Não como donos, que não somos, mas como administradores responsáveis e solícitos, para salvaguardar e acrescentar um bem que seja realmente comum.
Isto sim, havemos de ser. A nós, sacramentos de Cristo Sacerdote e Pastor, cumpre-nos muito especialmente levar o Povo que servimos a ser, a seu modo, sacerdotal e pastoral também, louvando a Deus e cuidando do mundo.
Na última etapa da recepção sistemática da Constituição Sinodal de Lisboa, que estamos a cumprir, muitas ações se multiplicaram para “sairmos com Cristo ao encontro de todas as periferias” - onde, aliás, Ele nos espera, nas pessoas que precisam ser mais olhadas e atendidas. A pandemia impediu ou adiou a realização de várias ações previstas e outras se fizeram de modo diferente. Prossigamos, pois, para que o ano da graça anunciado na sinagoga de Nazaré continue agora e com renovado empenho.
Lembremos o que nos escreveu o Papa Francisco, precisamente no texto que desencadeou o nosso Sínodo Diocesano: «Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade» (Evangelii Gaudium, n. 187).
Dou graças a Deus por verificar o cumprimento deste ditame em várias comunidades e instâncias sociocaritativas, como realidade habitual. Também para a iniciação e a vivência propriamente cristãs de pessoas e grupos. A Palavra esclarece, a Oração anima e a Caridade realiza. Faltando um destes elementos, nem chegaríamos, creio bem, a começar.
Continuemos a cumprir o “programa pastoral de Cristo”, para que este tempo, mesmo tão sofrido, se converta em “ano da graça do Senhor”.

Homilia da Missa Vespertina da Ceia do Senhor
Um diálogo que continua
Sé de Lisboa, 01 de abril de 2021

«Pedro insistiu: “Nunca consentirei que me laves os pés”. Jesus respondeu-lhe: “Se não tos lavar, não terás parte comigo”». Acabamos de ouvir este diálogo, com o que o antecedeu e continuou. “Continuou” no sentido mais amplo, porque continua hoje e assim continuará sempre. Dá sentido pleno a esta Missa Vespertina da Ceia do Senhor e a toda a vida eclesial que nela se concentra.
A insistência de Jesus em lavar os pés a Pedro revela o modo como o próprio Deus nos serve, para nos ensinar a fazer assim e só assim. A resistência de Pedro é a mesma que mantemos quanto a reconhecer como Deus é e não como O imaginamos, ou nos projetamos. Grande alienação, de fato, que nos alheia da verdade de Deus, dos outros e de nós próprios.
Humildade e verdade são irmãs gêmeas e nunca vai uma sem a outra. A humildade mantém-nos na verdade. A nossa verdade, de sermos realmente pequenos, frágeis e insuficientes - e nem precisaríamos que a atual pandemia o lembrasse.
Vejamo-lo positivamente, pois pequenez e fragilidade são outras tantas aberturas aos outros e a Deus, para só assim nos mantermos e sermos realmente “pessoas”: dos outros, com os outros e para os outros, sem autossuficiência descabida. É nesta interdependência total, humildemente aceite e ativada, que nos demonstramos “imagem e semelhança” de Deus uno e trino: Deus Pai só o é em relação a Deus Filho, como o Filho em relação ao Pai; e o Espírito é Vida que deles procede, na mútua interdependência que Os define.
Deus, que assim se vislumbra, também assim atua, criando-nos para se rever em nós, como nós em Deus. Por isso se apresenta finalmente em Jesus, como quem serve e nos quer igualmente servidores, que se ganham na partilha.
Nestes tempos difíceis que vivemos, tenho recolhido e agradecido vários testemunhos de realização feliz de muitos que servem, cuidam e realmente se interessam pelo bem dos outros. São exemplos diários e em todos os setores se verificam. Na saúde, na família, no voluntariado, na atenção pastoral reforçada e criativa. É uma felicidade autêntica, daquela que o próprio Jesus referiu: «A felicidade está mais em dar do que em receber» (At 20,35).
Importante será mantermos esta mesma disposição depois de vencida a pandemia, para a continuarmos a exercitar em relação a tudo quanto falta e é tamanho, rumo a um mundo mais fraterno, solidário e inclusivo. Importante será reconhecermos que só com os outros e para os outros seremos inteiramente nós, na humildade e no serviço.

Reconheçamos que é mais fácil de enunciar do que de aprender, esta humildade verdadeira, ou verdade humilde. Deixemos que estes dias no-la ensinem, pela força do Evangelho que escutamos. Contemplemos Deus Filho e nosso irmão, naquele Lava-Pés sempre instrutivo. Deixemo-nos também lavar por Ele, na água sublime do seu Espírito. Assim mesmo, na humildade divina, que nos cria sem ruído e nos salva dando a vida.
Aprendamos de vez. Pedro rendeu-se ao gesto de Jesus e acabou por realizá-lo mais à frente, quando em Roma chegou a sua hora. Entre os discípulos a quem Jesus lavou os pés, também estavam Tiago e João, que aí se lembrariam do que Jesus lhes dissera noutro passo, quando, nada entendendo do seu Reino, lhe pediram dois lugares cimeiros. Não deixemos de lembrar o que Jesus lhes respondeu: «Não sabeis o que pedis [...]. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servidor. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão» (Mt 20,26-28).
É hora de reaprendermos, sempre e mais. Deixemos ressoar no coração as palavras finais do Lava-Pés: «Jesus então disse-lhes: “Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque o sou. Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também». Aceitemos Deus como Ele é e convertamo-nos ao seu modo de ser e estar conosco.
A escuta atenta da Palavra de Deus e a celebração sacramental autêntica vão ensinando-nos a ser como Cristo no mundo. Farão de nós “cristãos” substantivos e não adjetivados apenas. Na leitura que escutamos há pouco, poucas frases bastaram para São Paulo transmitir aos coríntios o gesto e o significado da Eucaristia. Os símbolos dispensam acréscimos que distraiam, como a caridade vale sem mais e só por si.

Celebrando também a instituição da Eucaristia e do Sacerdócio que a oferece, reparemos como é na simplicidade dos sinais que Jesus perpetua a sua presença, assim mesmo real e universalmente projetada. Ouçamos o Papa Francisco num passo tão belo como esclarecedor: «A criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. [...] No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. Na Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo, centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico» (Laudato si’, n. 236). Tanto que acontece e a partir de tão pouco... Também por aqui entrevemos a simplicidade de Deus e de como atua no mundo.
Deslumbremo-nos com a humildade divina e não a ofusquemos com nada que a iluda. Guardemos a autenticidade litúrgica dos primeiros séculos cristãos, como quis o Concílio que recebemos, gratos e convictos.
Sim, “Ele está no meio de nós”, como quis estar na Ceia e na Cruz. Daí mesmo esplende e só assim nos salva. Não atrasemos a nossa rendição ao essencial, não demoremos em estar no mundo, servidores e essenciais também.


Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
A Cruz que nos atrai e impele
Sé de Lisboa, 02 de abril de 2021

Nos dias que vivemos e no tempo que sofremos - e muitos bem duramente, por si e pelos seus - cabe perguntar por que estamos aqui e assim reunidos, presencial ou midiaticamente. Nesta Sexta-Feira Santa da Paixão do Senhor, guardando os trechos proclamados, para em seguida adorarmos a Cruz em que Jesus morreu, naquela “hora nona” em que continuamos. Por quê?
Sabemos como o acontecimento se impôs, apesar de tudo. Apesar de ter sido tão cruel e de pouca gente dar por ele, na tarde em que foi. Fora da cidade, um entre mais condenados, com alguns soldados e um pequeno grupo de fiéis. Mais uma das muitas crucifixões romanas, ainda que especialmente atormentada. Tinha tudo para ser rapidamente esquecida, aquela cruz, por ser apenas mais uma e por ser sinal de maldição para qualquer judeu que fosse: “Maldito aquele que morre no madeiro!”.
E, no entanto, impôs-se. Não passaram muitos anos até Paulo exclamar que toda a sua glória estava ali, definindo-se a si mesmo com a cruz: «Quanto a mim, de nada me quero gloriar, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo» (Gl 6,14).
Não nos pareça isto pouco, ou uma referência ocasional. Na verdade, um dos primeiros milagres do cristianismo histórico foi precisamente a aceitação da cruz - e mais pelos primeiros cristãos do que pelo próprio Cristo. Como ouvimos há pouco, «Ele dirigiu preces e súplicas, com grandes clamores e lágrimas, Àquele que o podia livrar da morte, e foi atendido na sua piedade». Atendido, porque venceu a morte; mas não dispensado de sofrê-la assim, para nos acompanhar e salvar na cruz da vida, de cada um e de todos.
Estamos no cerne do realismo cristão, mas não chegaríamos aqui só por nós, mais atreitos que somos a fugir do que a permanecer, quando a vida dói.

Jesus dissera antes: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair» (Jo 6,43). É este o princípio da resposta, quando procuramos o porquê de aqui estarmos hoje. É Deus Pai que nos chama à cruz do seu Filho, porque dela brota a vida, a jorrar do lado aberto. Porque nela Jesus também “expira”, para que o seu Espírito nos inclua na vida que com o Pai compartilha e em nós se projeta.
Pouco antes, no Pretório de Pilatos, Jesus respondera como ouvimos: «O meu reino não é deste mundo». Na verdade, nunca fora nem quisera ser. Mas tal não significa que não seja doutro modo e mais profundo. Como disse a seguir: «Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».
É assim que Jesus reina desde então, atraindo e segurando os que se reveem na verdade que Ele é e escutam a sua voz que os reclama. É esta a razão de estarmos aqui. Razão única, bastante e decisiva.
Há verdade quando a mente se adequa ao objeto. O que nos explica aqui, centrados na Paixão de Cristo, é essa espantosa coincidência do que nela vemos com o que somos realmente, como humanidade sofrida e esperançosa. Como canta um hino, “abraçamos a cruz da vida à luz pura do Seu rosto”.
Desfigurado estava e muito o “mais belo dos filhos dos homens”, aplicando-se a ele o que ouvimos ao Profeta: «Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto». Porém, manifestava-se na objetividade absoluta da dor que sofria e da misericórdia que derramava sobre os circunstantes.
Eram poucos, mas suficientes para nos representarem a todos: a Mãe e algumas mulheres, o discípulo e até os próprios algozes, que “não sabiam o que faziam”. Aquela objetividade total, onde se figurou o drama humano, de qualquer espaço ou tempo, atrai-nos a mente e o coração e não nos deixa sair de ao pé da cruz, que assim mesmo nos salva.
É deste modo que Cristo reina em nós, pela verdade com que nos atrai e abrange. E assim nos podemos interpretar, a nós e ao próprio mundo, no quinhão que a todos toca de dor e de esperança.

É um reinado em exercício, sempre que escutamos a sua voz e lhe correspondemos de verdade. E onde esta voz ressoa, também o disse e explicou: Foi na cruz, onde disse que tinha sede. E continua, onde nos pede de comer e de beber, onde nos solicita acolhimento ou agasalho, onde nos clama do hospital ou da prisão. Demos a cada um destes clamores o sentido que deva ter, mas não lhes reduzamos a importância essencial e determinante (cfMt 25,37-40). São as fronteiras inclusivas do Reino de Cristo e só dentro delas nos podemos manter como realmente seus.
No fim da grande oração que se segue, pedirei a Deus que “ouça as súplicas dos que O invocam nas tribulações, para que todos tenham a alegria de encontrar nas dificuldades o auxílio da sua misericórdia”.
Sabemos bem que Deus ouve. Mas a sua resposta liga-se à que nós próprios dermos ao que nos pede em Cristo, presente em quem sofre. Quando adorarmos a cruz, ouçamos a sua voz a ressoar em tanto clamor deste mundo e com a firme disposição de lhe correspondermos agora. Atendendo assim, seremos com Cristo a resposta de Deus.
Como ouvimos: «Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: «Tudo está consumado. E, inclinando a cabeça, expirou». Deu-nos o Espírito que aqui nos traz e daqui nos impele, da cruz para o mundo e do mundo para Deus.

Homilia na Vigília Pascal
Melhores e diferentes, para o futuro que há de ser
Sé de Lisboa, 03 de abril de 2021

Ouvimos nesta vigília muitas passagens bíblicas, quase do princípio ao fim da história que nos revela Deus e nos revela a nós, no sentido primeiro e último do que havemos de ser a partir d’Ele.
Ouvimo-las certamente “de coração tranquilo”, como pediu a admonição. Digamos mesmo de coração convertido à Palavra que nos salva. Fixo-me nas primeiras e últimas passagens. A do Livro do Gênesis, logo a abrir: «No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia...». E a do Evangelho de Marcos, agora mesmo, nas palavras daquele jovem vestido de branco, dirigidas a Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé: «Procurais Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui. Vede o lugar onde O tinham depositado» - o lugar era o túmulo vazio.
Terra vazia no princípio da criação e túmulo vazio no princípio da nova criação. Dois lugares iniciais e imprescindíveis para que uma e outra continuem a acontecer, na absoluta disponibilidade ao que Deus quiser e como Deus quiser.
Assim como a criação é obra divina, mas conta com a nossa colaboração para guardá-la e cultivá-la, a ressurreição de tudo em Cristo é obra de Deus, que se repercutirá em nós e por nós no mundo, se nos mantivermos exclusivamente seus.
O percurso humano de Jesus recapitula e recria, pela inteira obediência a Deus Pai, o que foi a história do seu Povo, padrão da história da humanidade em geral - passada, presente ou futura que seja. Foi assim, pela sua obediência inteira, que “até o vento e o mar lhe obedeceram”, os destruidores da criação foram vencidos e a própria morte deu lugar à vida. 
É assim que nos ressuscita também, pelo mesmo Espírito que O moveu a Ele e, com o Batismo, nos moverá a nós. Não é algo que se acrescente, é o tudo de Deus que nos recria. No enunciado das bem-aventuranças, a primeira é precisamente a dos “pobres em espírito”, ou seja, dos que, esvaziados de si, Deus pode finalmente tomar e refazer.
Não se trata duma concorrência mal compreendida, entre nós e Deus. Trata-se da verdade das coisas, entre o absoluto divino e a relatividade humana, que há de ser entendida como única possibilidade de existirmos, distintos de Deus. Mas sobretudo princípio para o que havemos de ser, quando formos inteiramente seus, alargando em nós a humanidade que Jesus assumiu. Fê-lo para ressuscitá-la, pelas “mãos do Pai” a que inteiramente se entregou. Compreendendo a liberdade como possibilidade de ser, não há liberdade maior do que a de sermos com Deus, em Deus e a partir de Deus.
Na série de leituras que ouvimos esta noite, não se tratou doutro assunto senão este: da criação divina à recriação em Cristo, passando pelas resistências nossas e a vontade persistente de Deus em nos retomar, como os profetas lembraram, Cristo realizou e Paulo explicou: «Fomos sepultados com Ele pelo Batismo, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova». Do sepulcro vazio que as mulheres encontraram ressurgiu Cristo, como ressurgimos nós, quando no Batismo se sepulta o que nos definha sem Deus.

Mais lhes disse aquele jovem vestido de branco, às mulheres que procuravam o cadáver de Jesus: «Ressuscitou: não está aqui». Não estava ali, só ali, como o tinham sepultado, porque passara a estar absolutamente e doutro modo, em todo o espaço e tempo, como o experimentamos e repetimos tantas vezes: “Ele está no meio de nós”, aqui e agora, em todo o lado e sempre.
Corpo é relação e o corpo ressuscitado de Cristo permite-lhe a ligação a todos, para nos ressuscitar também. Aqui e agora, na grande Galileia do mundo de toda a gente, em que se adianta, para nos esperar mais além.
Um além que nos desapega do que tenhamos já, para irmos ao seu encontro, na interpelação de cada instante. Durante a pandemia que nos chegou tão duramente, recolhi muitos testemunhos de abnegação, de pessoas que nos mais diversos setores serviram realmente os outros, no que à saúde, à companhia, ao trabalho e à sobrevivência diz respeito. Os que mais me impressionaram, também em linguagem crente, foram os que persistiram em fazê-lo, mesmo sem nada ou quase nada de seu, quanto a possibilidades e meios, técnicos ou outros. Foram pelo coração e a vida reapareceu.
Isto mesmo sucedeu nas comunidades cristãs, quer pelo esforço e criatividade dos seus ministros, quer por múltiplas iniciativas dos crentes, por si ou associados com outros, nas organizações sociocaritativas ou criadas ad hoc e com especial protagonismo juvenil. Partiram realmente para a Galileia dos outros, assim mesmo “vendo” o Ressuscitado nos surpreendentes sinais da sua presença.

Foi com parábolas que Jesus nos falou do que mais importa saber, de si próprio e do Pai, de nós e dos outros. Tudo tão concreto como expressivo de realidades absolutas. Assim se sucedem na vida de todos os dias os sinais de ressurreição, interpretáveis à luz da Páscoa de Cristo.
Dos muitos testemunhos orais ou escritos que recebi, transcrevo apenas um, por ilustrar com fatos o que acima indiquei. Trata-se duma profissional de saúde, a trabalhar num hospital em sobrecarga e no pico da pandemia. Mais uma vez partiu de casa, pouco fiada nas suas forças para tão grande desafio. Relatando o que aconteceu nesse dia, transmite-nos três surpresas, quase parábolas do Ressuscitado, que assim mesmo encontrou em quem serviu: «Continuei a atender doentes e eis que um deles, um jovem com uma máscara na cara, ao despedir-se de mim, diz: “Nos tempos que correm, não posso deixar de agradecer a sua amabilidade, a total disponibilidade com que me atendeu. Sabe, não está a ver, mas estou a sorrir para si” [...] Logo a seguir, atendo uma senhora com oitenta anos. Tinha vindo sozinha porque não tinha ninguém com ela. Ao sair, vira-se para mim e diz: “Vou rezar por si. Deus a proteja e guarde. Rezo por todos, mas agora especialmente por si, para que mantenha essa calma que consegue transmitir.” Passado pouco tempo, surge uma jovem com uma máscara amarela onde estava desenhado um enorme sorriso vermelho. Ao dar de caras com ela, assustei-me. Ela reparou e disse: “Não se assuste. Este sorriso é para si”».
Não nos pareçam coisas pequenas, indistintas quase. São, isso sim, manifestação segura da realidade pascal. Estou certo de que este ano difícil evidenciou muitas “visões” do Ressuscitado, a quem esteve atento aos outros e através deles experimentou a sua presença viva e vivificante. Para nós crentes, é confirmação da Palavra ouvida e acolhida. Sabemo-lo com outros, para testemunharmos a todos a Ressurreição de Cristo nos dramas do mundo.
Assim mesmo a esperança se preenche e tudo se recria. Isto mesmo nos refará melhores e diferentes, para o futuro que há de ser.


Homilia no Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor
Revivendo a madrugada pascal
Sé de Lisboa, 04 de abril de 2021

Nesta manhã pascal, onde a Palavra, o rito e mesmo um sobressalto de alma nos despertam tanto, deixai-me interrogar, ainda assim, se o comentário que acabamos de ouvir ao Evangelista não poderá aplicar-se um tanto a cada um de nós: «Na verdade ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus havia de ressuscitar dos mortos».
Aqueles discípulos tinham seguido Jesus, ouvido o que dissera e avisara, aludindo até a antigas profecias... E, no entanto, mesmo diante do túmulo vazio, ainda não tinham entendido.
Assim foi com eles. E agora conosco? Não estamos na mesma situação, com dois milênios passados e repletos de testemunhos da ressurreição. Somaram-se, logo a seguir, os primeiros mártires, que ninguém conseguiu calar, tão forte era a certeza. Como se entendem eles e os seguintes, tantos milhares até hoje? Donde continuam a brotar o apostolado e a missão, do primeiro anúncio à nova evangelização que progride, aqui ou ali, com novo ardor, novos métodos e novas expressões?
A resposta só pode ser a mesma, de há dois milênios para cá: tudo brota da Ressurreição de Cristo, que dá ao que disse e fez uma atualidade permanente, universal e criativa. Nada mais o explicaria suficientemente.
Estamos hoje aqui, como muitos outros por esse mundo além, mesmo em tempo pandêmico, em torno de Alguém vivo e vivificante - e não apenas em memória de algum falecido ilustre, a quem a “lei da morte”, que é o esquecimento, já teria atingido.
Sim, temos razão sobeja para entender melhor a Ressurreição de Cristo; mais até do que as personagens do primeiro embate e naquela altura. A meditação cristã tem-nos feito ver a coincidência absoluta com as antigas profecias e a própria aspiração da humanidade em geral.

Mas não é propriamente de compreensão que se trata, como coisa nossa e no habitual critério. Trata-se precisamente do contrário. Somos nós a ser “compreendidos” por Deus, digamos assim, na medida em que nos abarca e envolve no último gesto da sua misericórdia, fazendo-nos viver a Ressurreição do seu Filho.
Disse-o paradigmaticamente o Apóstolo Paulo, como também ouvimos: «Vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus». E desenvolveu noutro passo o que lhe acontecera a ele: «Quando aprouve a Deus - que me escolheu desde o seio de minha mãe e me chamou pela sua graça - revelar o seu Filho em mim, para que O anuncie como Evangelho entre os gentios...» (Gl 1,15-16). Dizem-nos os entendidos que o “em mim”, também pode traduzir-se por “a mim”, no sentido objetivo de tal revelação; mas sublinhando sempre o influxo íntimo e determinante que teve no Apóstolo e na missão a que se entregou. Só a vida nos faz viver e só o Ressuscitado nos torna em Evangelho vivo.
Foi à luz deste fato total que Paulo interpretou e compreendeu tudo o que a Escritura anunciara e ele bem conhecia, versado que era. É assim também que nós compreendemos o que nos foi transmitido e a vida acrescentou. Isto aqui nos trouxe e daqui nos transporta, para oferecer a todos a Páscoa que vivemos.
Assim aconteceu com Pedro e com o outro discípulo, quando depois entenderam a Escritura antiga. Assim será conosco, que não cessaremos de procurar Aquele que já nos encontrou, como realidade absoluta e a perfazer em cada um. Vida que poderemos resumir como Paulo também resumiu a sua, num precioso passo: «Assim posso conhecê-lo a Ele, na força da sua ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos, conformando-me com ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os mortos. Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro, para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Jesus Cristo» (Fl 3,10-12).
Não acharemos melhor resumo do que seja a nossa vida pascal: alcançar a Cristo, que já nos alcançou. Com a urgência que desperta e o testemunho que irradia.

Reparemos ainda como tudo se apressou naquela madrugada: correu Madalena, correram depois Pedro e o outro discípulo.
Tudo o que se refere a Cristo é movimento. Assim resumiu a sua vida entre nós: «Saí do Pai e vim ao mundo; agora deixo o mundo e vou para o Pai» (Jo 16,28). Um percurso terreno, coincidente com o seu percurso eterno, gerado pelo Pai e a Ele devolvido, na circulação constante do Espirito que compartilham.
É este movimento que nos ressuscita agora, com uma pressa de alma que nada tem a ver com precipitações mundanas. Por isso o Papa Francisco me disse o que disse, a propósito da Jornada Mundial da Juventude a realizar em Lisboa: como Maria a caminho da casa de Isabel, iremos “apressadamente, mas não ansiosamente”.
Já não falta muito tempo para realizar a Jornada, com tudo o que há a fazer. Com as muitas ações em curso e o número crescente nelas envolvidos, transporta-nos aquela “pressa no ar” que o seu hino vai cantando em sucessivas línguas. Mas sem precipitação, porque o Cristo que se manifestará em tão grande encontro é o mesmo que, ressuscitado, nos acompanha e impele.
Assim será a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, no verão de 2023: um sinal magnífico da ressurreição de Cristo, oferecido pelos jovens dos cinco continentes a este mundo que a pandemia afetou. O mundo que precisa reviver a madrugada pascal. 

+ Manuel, Cardeal-Patriarca



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