“Rodeados
de tão grande número de testemunhas, corramos com perseverança, fixando os olhos em Jesus” (cf. Hb 12,1-2).
Em nossa postagem anterior apresentamos os fundamentos do culto aos santos do Antigo Testamento (AT), que integram os “coros” dos
Patriarcas e dos Profetas. Aqui daremos início a um percurso pelas suas comemorações, conforme descritas pela atual edição do Martirológio
Romano.
Seguindo as várias etapas da história de Israel, nesta
primeira parte do nosso estudo abordaremos o período dos Patriarcas (Gn), o êxodo (Ex a Dt), a entrada na
terra prometida (Js) e a época dos
juízes (Jz). Na próxima postagem seguiremos
a partir da instituição da monarquia.
Começamos, porém, com uma celebração genérica dos
antepassados de Jesus, diretamente ligada ao Ciclo do Natal:
Todos os antepassados de Jesus: 24 de dezembro
Comemoração de todos os santos antepassados de Jesus Cristo, filho de
Davi, filho de Abraão, filho de Adão, isto é, dos patriarcas que agradaram a
Deus e foram encontrados justos, os quais, sem terem obtido a realização das
promessas, mas vendo-as e saudando-as de longe, morreram na fé: deles nasceu
Cristo segundo a carne, que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos
os séculos.
Esta comemoração, na véspera da Solenidade do Natal do
Senhor, coroa o Advento e os dias de preparação próxima para o Natal, que
começam e terminam com a leitura da genealogia de Jesus (Mt 1,1-17) -
respectivamente na Missa do dia 17 de dezembro e na Missa da Vigília do Natal,
na tarde do dia 24 [1] - além de encontrar seu eco na proclamação do Natal, na Missa da Noite (também tomada do Martirológio).
Além disso, dos dias 17 a 23 de dezembro, nossa espera é
iluminada pela recitação das Antífonas do Ó, cheias de imagens do AT sobre o Messias.
Destacamos aqui a antífona do dia 19: “Ó Raiz de Jessé”, recordando a profecia
de Is 11 sobre o rebento que brotaria da descendência de Jessé, o
pai de Davi.
Tornou-se um motivo recorrente da arte medieval o “sonho de
Jessé”: do patriarca dormindo brota uma árvore que frutifica com os antepassados de
Jesus e tem como frutos mais insignes, no topo, a Virgem Maria e o seu Filho
(ora como criança em seu colo, ora já como rei em seu próprio trono).
Raiz de Jessé - Saltério de Ingeborg (França, séc. XII) |
A comemoração dos antepassados de Jesus tem dois paralelos no Rito Bizantino. Embora este não possua um período mais longo de preparação ao Natal como o Advento romano, os dois domingos que antecedem a grande solenidade são marcados pela recordação da primeira aliança e a expectativa pela vinda do Messias.
O segundo domingo antes do Natal é chamado de “Domingo dos Antepassados”
e celebra “todos os justos do Antigo Testamento que têm relação com o Salvador,
de Adão à Virgem Maria” [2]. Aqui todos os santos do AT que não têm uma data
própria podem ser recordados.
Ícone dos Antepassados |
O domingo seguinte, que antecede o Natal, é o “Domingo da Genealogia”,
pois nele se lê esta passagem do Evangelho (Mt 1,1-25) e se recordam os
antepassados diretos de Cristo, especialmente Abraão - uma vez que Davi, como
veremos na próxima postagem, será celebrado no domingo seguinte ao Natal.
Abraão e Davi formam assim a “moldura” para o nascimento do seu descendente.
“Pela fé justificaste os nossos ancestrais, e por eles
desposaste a Igreja que é dos gentios. Os santos se encheram de glória, porque,
da sua semente nasceu o fruto glorioso que te gerou sem semente. Pelas suas
orações, ó Cristo Deus, salva as nossas almas!”
(Tropárion do Domingo dos antepassados) [3].
1. Período dos Patriarcas:
Abraão: 09 de outubro
Comemoração de Santo Abraão, patriarca e pai de todos os crentes, que,
chamado por Deus, saiu da sua pátria, a cidade de Ur dos Caldeus, e se pôs a
caminho da terra prometida por Deus a ele e à sua descendência. Manifestou toda
a sua fé em Deus, esperando contra toda a esperança, quando não recusou
oferecer em sacrifício o seu único filho Isaac, que o Senhor lhe tinha dado,
quando ele já era velho e estéril a sua esposa Sara.
Iniciamos os santos do AT com Abraão (Gn 12,1–25,11), “nosso
pai na fé” (cf. Rm 4,11). Ele
representa aqui todo o coro dos Patriarcas do AT, sendo seu mais insigne membro.
Em algumas igrejas bizantinas Abraão é celebrado nesta data junto com seu
sobrinho Ló, a quem os anjos salvaram da destruição de Sodoma (Gn 19).
Cumpre recordar aqui a celebração ecumênica e
inter-religiosa presidida pelo Papa João Paulo II durante o Grande Jubileu do
ano 2000 em honra de “Abraão, pai de todos os crentes”.
Abraão aparece ainda em algumas versões do ícone da Trindade, que retrata sua filoxenia (hospitalidade) a três viajantes misteriosos (Gn 18,1-14).
São Abraão |
Melquisedec: 26 de agosto
Comemoração de São Melquisedec, rei de Salém e sacerdote do Deus
Altíssimo, que saudou Abraão, abençoando-o quando regressava da vitória e,
oferecendo ao Senhor um sacrifício santo, uma vítima imaculada, é considerado
como prefiguração de Cristo, rei de paz e de justiça, e, porque é apresentado
sem genealogia, preanuncia o sacerdote eterno.
A comemoração do misterioso personagem (cf. Gn 14,18-20; Sl 110,4; Hb 7) foi inserida no Martirológio, como
indica o seu “elogio”, como prefiguração de Cristo rei e sacerdote. Além disso,
sua oferta de pão e vinho nos remete à Eucaristia, razão pela qual (como vimos
na postagem anterior) é evocado no Cânon Romano com Abel e Abraão.
São Melquisedec |
2. Do êxodo à época
dos juízes:
Moisés: 04 de setembro
Comemoração de São Moisés, profeta, que Deus escolheu para libertar o
seu povo do Egito e conduzi-lo à terra prometida; no monte Sinai revelou-lhe o
seu nome, dizendo: «Eu sou o que sou», e deu-lhe a lei que devia reger a vida
do povo eleito. Este servo de Deus morreu com avançada idade no monte Nebo, na
terra de Moab, diante da terra da promessa.
Moisés é, junto com Abraão, um dos personagens mais
importantes do AT, figura central de maior parte do Pentateuco (do Êxodo ao Deuteronômio): é o libertador do povo e o intercessor junto a Deus,
do qual recebe a Lei. Junto com Elias, além de participar da Transfiguração do Senhor, "co-preside" o coro dos Profetas.
Como Abraão, também foi recordado em uma celebração no contexto do Grande Jubileu do ano 2000, presidida pelo Papa João Paulo II no
Monte Sinai.
São Moisés |
Para acessar nossas postagens sobre a leitura litúrgica dos Livros do Pentateuco sobre a história de Moisés, clique nos links a seguir: Êxodo / Levítico / Números / Deuteronômio.
Aarão: 01 de julho
Comemoração de Santo Aarão, da tribo de Levi, que Moisés, seu irmão,
ungiu com o óleo santo sacerdote do Antigo Testamento e foi sepultado no monte
Hor.
Diferente de Melquisedec, que vimos acima, Aarão representa especificamente o
sacerdócio da antiga aliança (Hb 7,11-14), sendo escolhido por Deus (Ex 28-29;
Hb 5,4) e ungido por Moisés (Lv 8-9), apesar de sua participação no episódio do
bezerro de ouro (Ex 32).
A Aarão está associada a bênção de Nm 6,22-27, que é lida no
dia 01 de janeiro, início do ano civil, e uma das fórmulas de bênção à escolha nas
celebrações. Cumpre dizer ainda que algumas igrejas da tradição bizantina o
celebram no dia 12 de março.
Santo Aarão |
Josué: 01 de setembro
Comemoração de São Josué, filho de Nun, servo do Senhor, que, pela
imposição das mãos de Moisés sobre ele, ficou cheio do espírito de sabedoria e,
depois da morte de Moisés, introduziu de modo maravilhoso o povo de Israel,
atravessando o rio Jordão, na terra prometida.
Josué faz a ponte entre o êxodo e a instalação na terra
prometida. Aparece inicialmente como “espião” enviado a Canaã (Nm 13-14). No Livro do Deuteronômio recebe, pela
imposição das mãos de Moisés, a missão de guiar o povo (Dt 31,1-8; 34,9), eleição
confirmada pelo próprio Deus (Js 1,1-9). Cumpre dizer que sua celebração no dia
01 de setembro está diretamente ligada à de Moisés, no dia 04.
São Josué |
Para acessar nossa postagem sobre a leitura litúrgica do Livro de Josué, clique aqui.
Gedeão: 26 de setembro
Comemoração de São Gedeão, da tribo de Manassés, que foi juiz em Israel
e, recebendo do Senhor o sinal do orvalho no velo de lã, com a fortaleza de
Deus destruiu o altar de Baal e libertou o povo de Israel dos seus inimigos.
Após a instalação na terra prometida o povo de Israel passa
a ser governado pelos juízes (Jz). O
livro recorda o nome de 12 deles (número simbólico), dos quais o representante
no Martirológio é Gedeão. Sua história é descrita nos capítulos 6 a 8 do livro,
marcada pelos sinais de Deus e pelas vitórias contra os inimigos.
São Gedeão |
Para acessar nossa postagem sobre a leitura litúrgica do Livro dos Juízes, clique aqui.
Santos do AT não
celebrados no Rito Romano
Por fim, vamos elencar os santos do AT - desde os Patriarcas
até os juízes - que não constam no Martirológio Romano, mas que são celebrados
por outras tradições cristãs, como os fiéis católicos e ortodoxos de Rito Bizantino e os luteranos.
Os luteranos, além de comemorar Abraão,
Moisés e Josué como no Rito Romano, tem outras sete comemorações próprias.
Importante destacar que esta tradição não os intitula “santos” (reservando este
título apenas aos Apóstolos), preferindo os termos “justo”, “patriarca” e “profeta”:
Adão e Eva: 19 de
dezembro
Esta comemoração está em estreita relação com Natal. Com
efeito, a vinda de Cristo cumpre a promessa feita por Deus de que a descendência
de Adão e Eva seria vitoriosa sobre o mal (Gn 3,15).
No Rito Romano Adão e Eva são contemplados na comemoração de
todos os antepassados de Jesus, filho de Adão, e no Rito Bizantino no II
domingo antes do Natal, o “Domingo dos Antepassados”. Nossos primeiros pais estão presentes ainda no ícone da Ressurreição do Senhor, sobre o qual falamos aqui.
Abel: 20 de março
Algumas igrejas de Rito Bizantino celebram nessa data o justo
Abel, filho de Adão e Eva. Já na postagem anterior recordamos como o tema do
sacrifício de Abel está presente na Liturgia romana (junto com Abraão e Melquisedec),
sendo também invocado como intercessor junto aos falecidos.
Noé: 29 de novembro
A comemoração do Patriarca Noé tem um alcance eclesial: não
apenas o dilúvio e a arca são imagens do Batismo (1Pd 3,18-22), como a arca é
uma imagem recorrente da Igreja no ensinamento dos Padres.
São Noé |
Ciclo de Abraão
Completando o “ciclo de Abraão”, os luteranos recordam outros três
personagens diretamente ligados ao grande Patriarca:
Sara, sua esposa,
no dia 20 de janeiro;
Isaac, seu filho,
no dia 16 de agosto;
Jacó, o filho de
Isaac, no dia 05 de fevereiro;
No
“Domingo dos antepassados”, algumas igrejas bizantinas recordam, além dos três Patriarcas, também Rebeca, a esposa de Isaac, e Raquel,
a esposa de Jacó, completando com Sara o grupo das três “Matriarcas”.
Santos Abraão, Isaac e Jacó |
José: 31 de março
Continuador do ciclo de Abraão, Isaac e Jacó, mas com uma
história própria bem desenvolvida (Gn 37-50), o Patriarca José, filho de Jacó, é
celebrado tanto por luteranos quanto pela tradição bizantina. Sua
história possui alguns paralelos com a de Jesus, como sua “venda” como escravo
pelos próprios irmãos por moedas de prata, sua jornada ao Egito, entre outros.
São José |
Míriam e Débora
Concluído o ciclo dos Patriarcas, encontramos duas mulheres
que são recordadas no “Domingo dos Antepassados” da tradição bizantina, a quem
são atribuídos dois dos cânticos mais antigos da Sagrada Escritura:
Míriam,
profetisa, irmã de Moisés e Aarão, que entoa o núcleo do “cântico do mar” (Ex
15,20-21);
Santa Míriam |
Débora, juíza, que entoa um cântico celebrando a vitória sobre os cananeus (Jz 5).
Santa Débora |
Rute: 16 de julho
Retornando aos luteranos, estes celebram ainda mais uma
mulher, cuja história se passa “no tempo dos juízes”: protagonista do livro de
mesmo nome, Rute é uma mulher estrangeira que, com sua sogra Noemi, vai para
Belém, onde trabalha nos campos. De sua descendência viria o rei Davi, sobre o
qual falaremos na próxima postagem.
Santa Rute |
Cumpre notar a infeliz ausência das santas
mulheres do AT no Rito Romano. Como veremos nas próximas postagens,
estão sempre presentes nas outras tradições cristãs.
[Para acessar a segunda parte dessa pesquisa, publicada no dia 23 de outubro, clique aqui]
Notas:
[1] Na Missa da Vigília do Natal lê-se uma perícope mais
longa: Mt 1,1-25. Há ainda a opção de ler a forma breve do Evangelho (apenas os
vv. 18-25).
[2] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.).
Liturgikon: Próprio das Festas no Rito
Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 18.
[3] ibid., p. 19.
De forma devocional e privada, podemos celebrar as datas luteranas que foram mencionadas?
ResponderExcluirCertamente. Tanto as celebrações luteranas quanto ortodoxas, seja na oração pessoal seja em orações comunitárias fora da Liturgia.
ExcluirMeu filho José Antonio nasceu em 31/03/2014. Somente vários anos depois foi que, fazendo uma pesquisa sobre os santos do Antigo Testamento, achei esta página e fui saber da celebração de São José do Egito precisamente na data de aniversário do meu filho José.
ExcluirQuando é dito "Rito Bizantino" podemos compreender as Igrejas Católicas Orientais?
ResponderExcluirO Rito Bizantino é utilizado tanto por algumas Igrejas Católicas Orientais quanto por algumas Igrejas Ortodoxas.
ExcluirAqui no blog há algumas postagens sobre as Igrejas Católicas Orientais e sobre as Igrejas Ortodoxas que indicam o rito celebrado por cada uma (além do rito bizantino, há outros quatro grandes ritos orientais: siríaco-ocidental ou antioqueno, siríaco-oriental ou caldeu, copta e armênio).