“É o Senhor que será
vosso rei” (Jz 8,23)
Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos
livros da Sagrada Escritura, estamos analisando o grupo de escritos da
“literatura deuteronomista”: além do próprio Livro do Deuteronômio (Dt),
ao qual dedicamos três postagens, também o Livro de Josué (Js). Hoje damos
continuidade a este estudo com o Livro
dos Juízes (Jz).
1. Breve introdução
ao Livro dos Juízes
O Livro dos Juízes
prossegue a história narrada no precedente escrito (que encerra com a morte de
Josué), fazendo a ponte entre o período da conquista da terra e o período da
monarquia (séc. XIII-XI a. C.). É uma etapa da história de Israel que
poderíamos chamar de “pré-monárquica”.
As figuras que nomeiam o livro, os “juízes” (do hebraico saphat, “julgar” ou “governar”), eram na
sua origem líderes e guerreiros das tribos de Israel. De fato, a única
personagem que aparece presidindo julgamentos é Débora (Jz 4,5). Não obstante,
a obra elenca doze juízes, seis considerados “maiores” (pela maior quantidade
de informações sobre eles) e seis “menores” (dos quais temos poucas
informações).
A estrutura da obra pode ser assim delineada:
a) Js 1,1–3,6: Dupla introdução:
histórico-geográfica, com a
recapitulação da história de Js
(1,1–2,5), porém menos triunfalista;
histórico-teológica, com uma avaliação geral
sobre o tempo dos juízes (2,6–3,6);
b) Js 3,7–16,31: O ciclo dos juízes:
Juízes maiores:
Otoniel (3,7-11), Aod (3,12-30), Débora-Barac (4,1–5,31), Gedeão (6,1–8,35), Jefté
(11,1–12,7) e Sansão (13,1–16,31);
Juízes menores:
Samgar (3,31), Tola e Jair (10,1-5), Ibsã, Helon e Abdon (12,8-15).
Este ciclo é intercalado pela tentativa fracassada de
instalação da monarquia sob Abimelec, filho de Gedeão (9,1-57).
A juíza Débora (cap. 4-5) |
c) Js 17,1–21,25: Apêndices, narrando conflitos internos do
povo de Israel. Escritos em um contexto pró-monarquia, uma vez que há um juízo
negativo sobre não haver rei (17,6; 18,1; 19,1; 21,25), contrastando com textos
anteriores (cap. 9).
O Livro dos Juízes
provavelmente reúne tradições orais muito antigas sobre os líderes ou “heróis”
das tribos. Merece destaque o cântico de Débora (cap. 5), mulher que possui um
grande protagonismo, exaltada como profetisa (4,4) e mesmo como
“mãe de Israel” (5,7).
Seu cântico é provavelmente um dos textos mais antigos da
Sagrada Escritura (junto com o “cântico do mar” de Ex 15). É um hino de
vitória, exaltando as tribos que auxiliaram no combate aos cananeus (narrado no
capítulo precedente) e repreendendo as que não atenderam ao chamado.
Não obstante essas tradições mais antigas, como parte da
“literatura deuteronomista”, boa parte do livro deve ter sido redigida durante
a reforma do rei Josias (séc. VII) e mesmo no período do exílio da Babilônia (séc.
VI), como, por exemplo, as “liturgias penitenciais” em 2,1-5 e 10,10-16.
Sobre a teologia do livro, esta retoma a antítese já presente em Dt e Js: a fidelidade a Deus, fonte de
bênçãos, e a infidelidade, que traz como consequência as maldições. Na introdução
teológica (Jz 2,6–3,6), após fazer um juízo positivo sobre a geração do tempo de
Josué, o livro indica que a sucede uma geração infiel. Sob a guia dos juízes, a
aliança é retomada: intercalam-se então, sucessivamente, períodos de
fidelidade e de infidelidade.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem [1].
2. Leitura litúrgica
de Jz: Composição harmônica
O n. 66 do Elenco das
Leituras da Missa [2], como vimos nas postagens anteriores desta série, apresenta dois critérios gerais para a escolha das leituras nas celebrações. O primeiro
deles é a composição harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com
o tempo ou a festa litúrgica.
No Rito Romano há apenas uma leitura de Jz seguindo este critério, durante o período de “preparação próxima
para o Natal”, de 17 a 24 de dezembro. Nesses dias leem-se os relatos da
infância do Senhor em Mateus e Lucas, enquanto “para a primeira leitura foram selecionados
alguns textos de diversos livros do Antigo Testamento, levando em consideração o
Evangelho do dia” [3].
Assim, na Missa do
dia 19 de dezembro lemos Jz 13,2-7.24-25a, o anúncio do nascimento de
Sansão feito por um anjo a seus pais. Esta narrativa possui diversos paralelos
com o Evangelho do dia (Lc 1,5-25), no qual o anjo Gabriel anuncia ao sacerdote
Zacarias o nascimento de João Batista.
O juiz Gedeão (cap. 6-8) |
3. Leitura litúrgica
de Jz: Leitura semicontínua
A partir do critério da leitura semicontínua (leitura dos
principais textos de um livro na sequência), a presença de Jz nas celebrações é mais abundante, como veremos a seguir.
a) Celebração
Eucarística
A leitura semicontínua de Jz na Missa concentra-se na XX
semana do Tempo Comum no ano ímpar, logo após a leitura de Js, como vimos na postagem anterior. O
livro é proclamado durante quatro dias dessa semana:
Segunda-feira: Jz
2,11-19 (introdução teológica do livro);
Terça-feira: Jz
6,11-24a (vocação de Gedeão);
Quarta-feira: Jz
9,6-15 (repreensão contra a tentativa de monarquia sob Abimelec);
Quinta-feira: Jz
11,29-38a (o voto temerário de Jefté e suas consequências desastrosas).
Cumpre notar que os últimos dois dias desse semana são
completados com a leitura do Livro de
Rute (Rt), uma história situada
“no tempo em que os juízes governavam” (Rt 1,1). Este livro, porém, não
pertence à “literatura deuteronomista”, sendo parte das chamadas “novelas
bíblicas” (Rt, Tb, Jt e Est), sobre as quais trataremos no
futuro.
b) Liturgia das Horas
Também na Liturgia das Horas a leitura de Jz segue a de Js, como vimos na postagem anterior. Referimo-nos aqui ao Ofício das Leituras da XI semana do Tempo
Comum [4]:
Domingo: Jz
2,6–3,4 - “Visão de conjunto do tempo dos
juízes”;
Segunda-feira: Jz
4,1-24 - “Débora e Barac”;
Terça-feira: Jz
6,1-6.11-24 - “Vocação de Gedeão”;
Quarta-feira: Jz
6,33–7,8.16-22 - “Gedeão vence com um
minúsculo exército”;
Quinta-feira: Jz
8,22-23.30-32; 9,1-15.19-20 - “O povo de
Deus tenta proclamar um rei”;
Sexta-feira: Jz
13,1-25 - “Anúncio do nascimento de Sansão”;
Sábado: Jz
16,4-6.16-31 - “Traição de Dalila e morte
de Sansão”.
No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi
traduzido para o Brasil, nosso livro é proclamado por oito dias, entre a XI e a XII semanas do Tempo Comum no ano ímpar:
XI semana do Tempo Comum
(ano ímpar)
Segunda a sexta-feira:
como acima, de domingo a quinta-feira no ciclo anual;
Sábado: Jz 11,1-9.29-40 - “Voto
e vitória de Jefté” [5].
XII semana do Tempo Comum
(ano ímpar)
Domingo e
segunda-feira: como acima, na sexta-feira e no sábado do ciclo anual.
Tanto no ciclo anual quanto no ciclo bienal a leitura
semicontínua de Jz na Liturgia das
Horas é sucedida pelos Livros de Samuel
(1Sm e 2Sm), prosseguindo assim a história deuteronomista, que se estende até
os Livros dos Reis, com as narrativas
do período da monarquia, até o exílio da Babilônia (séc. XI-VII a. C.). Sobre
esses livros, porém, falaremos em postagens futuras da nossa série.
O juiz Sansão (cap. 13-16) Sansão que derruba as portas de Gaza (Jz 16,3) é um episódio lido em paralelo com a Ressurreição (Cristo que derruba as portas da morte) |
Notas:
[1] LAMADRID, Antonio González. Os Livros de Josué e dos Juízes. in: LAMADRID, Antonio González et
al. História, narrativa, apocalíptica.
São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 76-102 (Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3b).
LANOIR, Corinne. Juízes.
in: RÖMER, Thomas; MACCHI,
Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo
Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015,
pp. 322-337.
[2] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 94.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 2000, v. III, pp. 312.317.321.326.330.334.339.
[5] O título da leitura foi traduzido livremente do texto
espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.
[Observação:
Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus
(Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das
leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as
devidas referências]
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