quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Leitura litúrgica do Livro de Josué

Quanto a mim e a minha família, nós serviremos ao Senhor” (Js 24,15)

Ao longo do último mês de setembro dedicamos três postagens a analisar a leitura do Livro do Deuteronômio (Dt) nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Aqui gostaríamos de dar continuidade a esta proposta analisando outro livro que integra a “literatura deuteronomista”: o Livro de Josué (Js).

1. Breve introdução ao Livro de Josué

O Livro de Josué é considerado o primeiro dos “livros históricos” do Antigo Testamento [1], pois prossegue a narrativa da história de Israel a partir do ponto em que havia encerrado o Dt: após a morte de Moisés, a missão de guiar o povo passa ao jovem Josué (Dt 31,1-8; 34,9).

O livro pode ser dividido em dois grandes blocos, emoldurados por uma introdução e uma conclusão:
a) Js 1: Introdução - Josué, cuja eleição é confirmada por Deus, começa a organizar o povo;
b) Js 2–12: Relatos da conquista da terra de Canaã;
c) Js 13–22: A divisão da terra entre as tribos de Israel;
d) Js 23–24: Conclusão - Discursos de despedida e a morte de Josué.

Ícone do justo Josué, filho de Nun

Antes de tudo é preciso esclarecer que os relatos descritos no livro não podem ser considerados “históricos” no sentido estrito. As pesquisas arqueológicas comprovam que a “conquista de Canaã” não se deu na forma de uma campanha militar, mas de maneira mais complexa, ao longo de muitos anos.

É importante lembrar que a redação dos textos acontece séculos depois dos eventos. Como vimos na introdução ao Dt, a “literatura deuteronomista” começa a ganhar destaque durante as reformas do rei Josias (séc. VII a. C.). Portanto, os textos mais antigos de Js são deste período, cerca de seiscentos anos depois da chegada dos israelitas a Canaã (séc. XIII).

Posteriormente outros textos são escritos durante e após o exílio da Babilônia (séc. VI), como forma de reafirmar a identidade do povo. Com efeito, a narrativa de Js é fortemente nacionalista, inclusive com a temática bélica bem acentuada.

Não obstante, esta não deixa de ser uma “história teológica”. O tema central é a antítese entre a fidelidade a Deus, da qual provêm as bênçãos, e a infidelidade, o culto a deuses estrangeiros, que traz como consequência a maldição, como bem ilustram os discursos de Josué nos capítulos 23 e 24.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [2].

2. Leitura litúrgica de Js: Composição harmônica

Seguindo o esquema de todas as postagens desta série, analisaremos a leitura litúrgica de Js segundo os dois critérios propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa [3]. O primeiro deles é a composição harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística temos duas leituras de Js em composição harmônica: uma na Quaresma e uma no Tempo Comum.

Nos domingos da Quaresma, como vimos na primeira postagem sobre o Dt, “as leituras do Antigo Testamento referem-se à história da salvação (...). Cada ano há uma série de textos que apresentam os principais elementos desta história” [4].

Assim, no IV Domingo da Quaresma no ano C lê-se a perícope de Js 5,9a.10-12, que recorda a primeira Páscoa celebrada na terra prometida, quando cessou de cair o maná, uma vez que os israelitas já podiam comer dos frutos da terra.

Nos domingos do Tempo Comum, por sua vez, as leituras do Antigo Testamento “foram selecionadas em relação às perícopes evangélicas (...) para evidenciar a unidade de ambos os Testamentos” [5].

No XXI Domingo do Tempo Comum do ano B o texto selecionado é Js 24,1-2a.15-17.18b, o discurso de Josué na “assembleia de Siquém”, quando propõe ao povo escolher entre servir ao Senhor ou os deuses estrangeiros.

O texto harmoniza-se com o Evangelho deste domingo (Jo 6,60-69), a conclusão do “discurso do pão da vida”, quando muitos se escandalizam com Jesus e o abandonam. O Mestre oferece esta escolha também aos discípulos, que respondem pela boca de Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (v. 68).

b) Sacramentos e sacramentais

Também nos demais sacramentos e nos sacramentais encontramos dois textos do nosso livro. O primeiro deles como leitura ad libitum, isto é, à escolha dentre as opções previstas, para a celebração do Batismo de adultos fora da Vigília Pascal. Aqui encontramos a mesma perícope que vimos acima, Js 24,1-2a.15-17.18b-25a [6], com a exortação a escolher entre servir ao Senhor ou a outros deuses.

Para o sacramental da Dedicação de um altar, por sua vez, encontramos dentre as leituras ad libitum o texto de Js 8,30-35 [7], uma narração que serve de “interlúdio” entre as conquistas, na qual Josué constrói um altar para o Senhor no monte Ebal.

Detalhe da "travessia do Jordão" de Benjamin West (1738-1820)

3. Leitura litúrgica de Js: Leitura semicontínua

O segundo critério para a escolha dos textos bíblicos, conforme indicado pelo Elenco das Leituras da Missa, é a leitura semicontínua, quando se leem as perícopes mais importantes de um livro na sequência, proporcionando aos fiéis um contato mais amplo com a Sagrada Escritura.

a) Celebração Eucarística

A leitura semicontínua de Js na Celebração Eucarística concentra-se em três dias da XIX semana do Tempo Comum no ano ímpar, na sequência da leitura do Dt e precedendo Jz. As perícopes selecionadas do nosso livro são:

Quinta-feira: Js 3,7-10a.11.13-17 (o relato da travessia do Jordão com a arca da aliança, com notáveis paralelos com a travessia do Mar Vermelho no Êxodo);

Sexta-feira: Js 24,1-13 (o início do discurso de Josué na “assembleia de Siquém”, no qual ele recapitula a história do povo, desde Abraão até a chegada na terra prometida);

Sábado: Js 24,14-29 (conclusão do discurso, com a exortação a servir ao Senhor e não aos deuses estrangeiros).

b) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas a leitura semicontínua de Js estende-se durante seis dias no Ofício das Leituras da X semana do Tempo Comum [8]:

Segunda-feira: Js 1,1-18 - “Josué, chamado por Deus, exorta o povo à unidade”;
Terça-feira: Js 2,1-24 - “Pela fé, a prostituta Raab acolhe pacificamente os espiões”;
Quarta-feira: Js 3,1-17; 4,14-19; 5,10-12 - “O povo atravessa o Jordão e celebra a Páscoa”;
Quinta-feira: Js 5,13–6,21 - “Conquista da cidade fortificada dos inimigos”;
Sexta-feira: Js 10,1-14; 11,15-17 - “O povo de Deus toma posse da terra”;
Sábado: Js 24,1-7.13-28 - “Renovação da Aliança na Terra Prometida”.

Cumpre notar que esta leitura é precedida de um “prólogo sapiencial” no Ofício das Leituras do domingo: Eclo 46,1-12 [9], com o “Elogio de Josué e Caleb”.

Cabe dizer ainda que duas perícopes são complementadas pela segunda leitura do Ofício, tomada das Homilias sobre o Livro de Josué de Orígenes (séc. III): na quarta-feira, sobre a travessia do Jordão; e na quinta, sobre a conquista de Jericó [10].

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi traduzido para o Brasil, nosso livro é lido entre a X e a XI semanas do Tempo Comum no ano ímpar. Indicamos a seguir em negrito os dias com leituras “inéditas” de Js:

X semana do Tempo Comum (ano ímpar)
Domingo a quinta-feira: como acima, no ciclo anual;
Sexta: Js 7,4-26 - “Delito e castigo de Acã” [11];
Sábado: como na sexta-feira do ciclo anual.

XI semana do Tempo Comum (ano ímpar)
Domingo: como no sábado do ciclo anual. 

Após a leitura de Js, tanto no ciclo anual quanto no ciclo bienal, a história prossegue no Ofício o Livro dos Juízes, sobre o qual falaremos na próxima postagem desta série.

Representação simbólica dos "brasões" das Doze Tribos de Israel
(Thesouro da Nobreza, armorial português do séc. XVII)

Notas:
[1] Na Bíblia hebraica, em contrapartida, Js é o primeiro dos Nebiim (ou Neviim), os Profetas, formando junto com Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis o grupo dos “profetas anteriores”, ao passo que os profetas escritores são chamados de “posteriores”.
[2] LAMADRID, Antonio González. Os Livros de Josué e dos Juízes. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 53-76 (Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3b).
RÖMER, Thomas. Josué. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 306-321.
[3] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[4] ibid., p. 97.
[5] cf. ibid., pp. 103-104.
[6] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 239.
[7] LECIONÁRIO IV: Lecionário do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 188.
[8] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 2000, v. III, pp. 287.291.295.299.304.307.
[9] ibid., p. 283.
[10] ibid., pp. 298.302.
[11] O título da leitura foi traduzido livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.

[Observação: Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus (Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as devidas referências]

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