Recentemente no site da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi publicado um texto de Dom Geovane Luís da Silva, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte (MG), intitulado "Liturgia e evangelização", destacando sobretudo a contribuição do Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium:
Evangelização e Liturgia
Dom
Geovane Luís da Silva - Bispo Auxiliar de Belo Horizonte
A Liturgia é o coração pulsante da Igreja, porém
não esgota toda a sua ação evangelizadora (Sacrosanctum
Concilium, n. 9). Ela não é um elemento acidental ou decorativo no âmbito
da missão eclesial; muito pelo contrário, situa-se no centro da sua atividade
missionária qual fonte que rejuvenesce sem cessar a comunidade de fé. Parece
que ainda hoje não levamos a sério este princípio teológico e pastoral
estabelecido pelo Concílio Vaticano II na Constituição sobre a Sagrada Liturgia
Sacrosanctum Concilium (SC, nn.
9.10).
“Missão, evangelização, pastoreio, liturgia,
serviço” são realidades inseparáveis que expressam o mistério da presença de
Cristo agindo no mundo através do seu corpo eclesial. Não podemos descurar
nenhum destes aspectos que expressam a sacramentalidade da Igreja, pois ela
deve anunciar integralmente o Evangelho (missão/evangelização), acompanhar e
cuidar (pastoreio) daqueles que abraçaram a fé em Cristo e com eles celebrar (Liturgia)
e viver (serviço) a fé traduzida no amor e na solidariedade para com os mais
pobres e sofredores.
Priorizar um destes elementos constitutivos da Igreja
esquecendo-se dos demais seria muito prejudicial aos fiéis e comprometeria seriamente
a sua ação pastoral na sociedade, pois estaríamos apresentando um retrato
mutilado ou um mosaico incompleto do rosto de Cristo que resplandece na Igreja
através da missão, da evangelização, do pastoreio, da Liturgia e do serviço.
Esta questão foi retomada recentemente no
magistério do Papa Francisco, bem ao início do seu pontificado, quando se
dirigiu aos fiéis cristãos através da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium
(EG), a fim de “convidá-los para uma nova etapa evangelizadora da
Igreja” [1].
1.
Celebrar cada passo em frente na evangelização
A Evangelii Gaudium em
seu artigo 24 condensa o pensamento teológico e pastoral do Papa Francisco
sobre a Liturgia da Igreja e suas implicações na ação missionária e
evangelizadora. No referido artigo aparece o retrato ou mosaico do rosto de
Cristo que deve resplandecer através da ação da Igreja no mundo.
A Comunidade Eclesial enquanto sacramento de Cristo
deve “primeirear”, envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar. No extenso
artigo 24 da Exortação Apostólica aparece a intrínseca relação existente entre
os elementos que constituem a essência da Igreja: missão, evangelização,
pastoreio, Liturgia e serviço. Ao final do presente artigo, o Papa se refere à
dimensão festiva da fé e o faz em estreita conexão com os demais elementos
citados anteriormente. Aqui se revela a visão integral do Papa Francisco que
não admite descurar nenhum dos aspectos constitutivos da Igreja. Sua visão integral
e unitária nos ajuda a valorizar cada ação no âmbito eclesial e a fugir de uma
práxis pastoral reducionista.
Analisemos, ainda que brevemente, as últimas frases
do artigo 24, onde o Papa Francisco fala da relação vital entre evangelização,
Liturgia e serviço:
“A comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre
festejar: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na evangelização.
No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa
torna-se beleza na Liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza
da Liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum
renovado impulso a se dar”.
Aparecem aqui termos teológicos e profundamente
significativos para uma justa hermenêutica da ação litúrgica da Igreja.
O Papa nos diz que “a comunidade evangelizadora
sabe sempre festejar: celebra e festeja”. A expressão “comunidade
evangelizadora” evoca a realidade da missão, pois seria impossível a comunidade
evangelizar sem se deixar cativar primeiro pelo anúncio do Evangelho. Uma vez
evangelizados, evangelizamos.
A obra evangelizadora da Igreja assume também uma
forma ritual e celebrativa. A Igreja celebra com
júbilo a salvação e faz festa na
presença do Senhor. Celebrar e festejar são categorias que evidenciam a dimensão
antropológico-humana, teológico-memorial, comunitária e ritual da fé cristã.
Ninguém celebra sozinho ou faz festa para si mesmo, pois “a vida se enfraquece
no isolamento e se fortalece na doação e na comunhão. Isto é, definitivamente,
a missão” [2]. A comunidade que celebra a fé descobre o sentido
da sua existência no mundo e se renova no empenho missionário. Isto se dá graças
à presença de Cristo na Liturgia da Igreja (SC, n. 7), pois é dele que provém
toda força e dinamismo missionário.
Qual o motivo da festa? Aqui o Papa Francisco deixa
claro: “celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na
Evangelização” [3]. Deste modo evidencia-se que
as pequenas vitórias são fruto e expressão da vitória suprema de Cristo “que venceu o mundo e
sua permanente conflitualidade, estabelecendo a paz por seu sangue derramado na
cruz” [4]. A Liturgia da Igreja é profissão de fé no sentido
pascal e de união à Páscoa de Cristo que se dá nas pequenas vitórias. Deste
modo “Jesus nos deixa a Eucaristia como memória cotidiana da Igreja, que nos
introduz cada vez mais na Páscoa (Lc 22,19). A alegria evangelizadora refulge
sempre sobre o horizonte da memória agradecida” [5].
A dimensão estética da Liturgia também é
evidenciada pelo Papa: “No meio desta exigência diária
de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na Liturgia”.
O quotidiano é o lugar primeiro do encontro com
Deus e nele se insere a Liturgia da Igreja, como espaço privilegiado para a
contemplação da beleza divina. Evidentemente trata-se daquela beleza suprema, o
rosto transfigurado e glorioso de Cristo, que dá fundamento aos gestos e
palavras da Igreja e não se confunde jamais com o excesso de paramentos, o
rubricismo ou o cerimonialismo vazio tão presente nos dias atuais. O excesso de
paramentos é sempre expressão de mau gosto; não remetem à beleza suprema, e o
rubricismo é muitas vezes sinal de que a Liturgia não é expressão autêntica do
sentimento interior que brota do coração de quem celebra, quer presidindo ou exercendo
outro ministério na assembleia litúrgica.
Para não deixar margens a dúvidas sobre a
verdadeira beleza que deve resplandecer na liturgia e a partir da sua
celebração, o Papa afirma na sua Exortação Apostólica: “Todo cuidado
exibicionista da Liturgia é expressão evidente de um obscuro mundanismo
espiritual que se manifesta hoje em muitas atitudes, mas com a mesma pretensão
de dominar o espaço eclesial e transformá-lo numa peça de museu ou numa
possessão de poucos” [6].
Há uma relação intrínseca entre evangelização, Liturgia
e vida. A beleza do rosto de Cristo deve permear toda a nossa existência e se
irradiar nestes momentos, aparentemente distintos, mas intimamente
relacionados. O anúncio do Evangelho converge naturalmente para a sua
celebração na Liturgia e tem implicações diretas na vida de quem o acolhe com
abertura de coração. “Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra
escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada” [7].
O Evangelho proclamado é celebrado ritualmente,
mediante símbolos, gestos, palavras e cânticos; ou seja, o Evangelho anunciado
se torna sacramento, sinal visível da ternura de Deus agindo no mundo. Na Liturgia
da Igreja nada acontece à margem da Palavra de Deus (SC, n. 24). Nas palavras
do Papa ressoa assim: “A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na
Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de
um autêntico testemunho evangélico da vida diária. A Palavra proclamada, viva e
eficaz, prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança
a sua máxima eficácia” [8].
A Liturgia bem celebrada é fonte de vida para a
comunidade evangelizadora, pois a “Igreja evangeliza e se
evangeliza com a beleza da Liturgia”. Eis aí um constante
desafio para todos nós: evangelizar e deixar-se evangelizar! [9]. Celebrar e deixar-se tocar pelo Ressuscitado na Liturgia
e na vida! Certamente o cuidado com a Liturgia exigirá de todos nós um empenho
constante para que o Evangelho adquira uma real inserção em nossa vida e nas
necessidades concretas da nossa história [10].
Para explicitar a força transformadora da Liturgia,
ou melhor, a sua eficácia o Papa recorre à metáfora da “fonte” [11]. Segundo ele, a “Liturgia é também celebração da
atividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso a se dar”.
Emerge aqui a dimensão espiritual [12], existencial e social da ação litúrgica da Igreja já
expressa na Constituição Conciliar do Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia [13]. Em consonância com o pensamento conciliar, o Papa
Francisco afirma que a Liturgia é fonte de um renovado impulso para a nossa
autodoação ao próximo, pois nela, pela ação do Espírito Santo, se atualiza a
autodoação de Cristo ao Pai para a salvação da humanidade. A ação litúrgica é a
realidade plena de tudo aquilo que ela mesma significa e faz memória: a morte e
ressurreição de Jesus. Por isso ela produz, na vida de quem a celebra com fé,
um renovado impulso e desejo de doação levando-a “a tocar a carne sofredora de
Cristo no povo” [14]. A entrega de nós mesmos aos irmãos e irmãs mais
sofredores é o critério decisivo para comprovar a verdade da Liturgia que
celebramos em nossas comunidades, pois uma vida autenticamente litúrgica
expressa nossa abertura ao anúncio da Palavra e transforma-se em dom para os
outros.
Delineia-se no pensamento do Papa Francisco uma
concepção litúrgica radicada na Escritura, particularmente na tradição profética que atinge sua maturidade nos
gestos e palavras proféticos de Jesus. Os profetas do Antigo Testamento, bem
como Jesus Cristo, não se opunham ao culto, muito pelo contrário, defendiam-no
e não admitiam a banalização ou profanação dos ritos sagrados que expressavam a
comunhão do ser humano com Deus.
Na concepção dos profetas, Liturgia
sem misericórdia é culto vazio rejeitado por Deus; e para o Papa
Francisco, Liturgia sem amor ao próximo é a mais refinada
expressão do mundanismo espiritual que invade sutilmente o
espaço sagrado e distancia cada vez mais a comunidade celebrante do mistério
pascal de Cristo, desobrigando-a da vivência ou práxis da misericórdia na
relação com o próximo. Disto decorre a seguinte afirmação: a Liturgia é sinal
inequívoco da acolhida ao Evangelho e vida que escoa no rio da misericórdia
para com o próximo.
2.
Concepção unitária da ação eclesial
Ao longo da sua Exortação Apostólica, o Papa
Francisco nos oferece algumas indicações pastorais que visam superar os desvios
criados por uma concepção reducionista da ação eclesial no mundo.
A Igreja é um reflexo do Ressuscitado agindo no
mundo. Ele é o missionário, o evangelizador, o pastor, o liturgo e o servidor
por excelência. O seu jeito de ser, o seu modo de agir, os seus gestos e
palavras são normativos para a Igreja, sacramento de Cristo.
Quando desvinculamos a Igreja do mistério de Cristo
missionário, evangelizador, pastor, liturgo e servidor, corremos o risco de
apresentá-la de um modo disforme ou desfigurado e cometemos vários equívocos em
nossa práxis pastoral.
2.1 Entusiasmo missionário e evangelizador sem cuidado pastoral
Uma comunidade que prioriza a missão e a evangelização
em detrimento do cuidado pastoral quotidiano corre o risco de anunciar o
Evangelho aos afastados e não dar o devido acompanhamento a eles quando
acolhidos na Igreja. Em contrapartida, uma comunidade que se preocupa somente
com aqueles que participam e celebram a fé, mas não se coloca em atitude de
saída, está condenada a uma espécie de atrofiamento espiritual e paralisia
pastoral. Voltada para si mesma, abre mão da atividade missionária e se
contenta apenas com os poucos que conseguiu, às custas de muito sacrifício,
manter no seu interior.
A missão/evangelização destina-se sobretudo aos
afastados e “está essencialmente relacionada com a proclamação do Evangelho
àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram” [15]. A pastoral ordinária, por sua vez, destina-se aos que
já pertencem à comunidade de fé, àqueles que conservam uma fé católica embora
não participem frequentemente no culto. Tal ação visa “incendiar os corações
dos fiéis que frequentam regularmente a comunidade, reunindo-se no dia do
Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e do Pão de vida eterna” [16].
O olhar da Igreja deve se estender a todos. Ela é
chamada a acolher e abraçar os afastados, mas a se comprometer também com
aqueles que já frequentam a vida comunitária.
2.2
Celebração da fé sem compromisso social
O esmero litúrgico e sacramental sem compromisso
sócio-transformador parece ser a tônica do momento. Também isto é mundanismo
espiritual. Pior ainda quando, além de disso, a comunidade opta deliberadamente
pela sacramentalização [17] desordenada sem a devida
catequese mistagógica.
Este é um sintoma da amnésia teológica de muitos.
Esqueceram-se ou desconhecem o princípio norteador estabelecido pelo Vaticano
II nesta matéria (SC, n. 9), onde se afirma que a ação da Igreja não se reduz à
Liturgia. O Concílio já nos alertou contra a ameaça constante do panliturgismo
(tudo é liturgia).
Noutros casos confundimos o cuidado pastoral, com
relação aos sacramentos, com uma alfândega [18] e caímos no
absurdo da seletividade e da burocracia fechando a porta dos sacramentos para a
maioria das pessoas e abrindo-a para um suposto grupo de eleitos que preenchem
os requisitos da instituição ou correspondem aos caprichos pessoais daqueles
que organizam e conduzem a Comunidade Eclesial. Deste modo, a Igreja se perde
num emaranhado de obsessões e procedimentos pastorais e começamos a “agir como
controladores da graça e não como facilitadores” [19].
O reverso desta atitude, ou seja, a promoção social
sem o anúncio do Evangelho e o devido acompanhamento espiritual aos pobres é a
pior forma de discriminação para com eles [20]. Agindo assim
transformaríamos a Igreja numa ONG qualquer destituída da força da Palavra de
Deus.
Na compreensão do Papa Francisco, “hoje e sempre os
pobres são destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida
a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que
existe um vínculo indissolúvel entre nossa fé e os pobres” [21]. “A imensa maioria dos pobres possui uma especial
abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a
sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a
proposta de um caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção
preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude
religiosa privilegiada e prioritária” [22].
Deste modo podemos afirmar que se faz necessário e
urgente rever nossas opções no amplo horizonte da missão evangelizadora da
Igreja. No dizer do Papa, “do ponto de vista da evangelização, não servem as
propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário,
nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que
transforme o coração. Essas propostas parciais e desagregadoras alcançam só
pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o
Evangelho” [23].
[1] Cf. Evangelii Gaudium, n. 1
[2] Cf. ibid., nn. 8.10.
[3] ibid.,
n. 24.
[4] ibid.,
n. 229.
[5] ibid.,
n. 13.
[6] Cf. ibid., n. 95, que nos remete ao
ensinamento de Bento XVI na Sacramentum Caritatis n.
23 quando se trata do ministro que age na pessoa de Cristo.
[7] Evangelii Gaudium, n. 174.
[8] ibid.
[9] ibid.
[10] ibid., n. 95.
[11] Esta
compreensão aparece na Sacrosanctum Concilium
n. 10, onde os Padres conciliares afirmam: “Todavia, a Liturgia é o cume para o
qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua
força”.
[12] A
liturgia “é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis haurem o espírito
verdadeiramente cristão” (SC, n. 14).
[13] Esta
referência aos aspectos sociais da Liturgia e de suas implicações na vida
prática aparece nos seguintes artigos da Constituição Conciliar: “Aos que creem,
porém, sempre deve pregar-lhes a fé e […], estimulá-los para toda obra de
caridade” (SC, n. 9); “A renovação da Aliança do Senhor com os homens na
Eucaristia, solicita e estimula os fiéis para a caridade imperiosa de Cristo”
(n. 10). No segundo capítulo, quando se fala da Eucaristia, usa-se a expressão
“vínculo de caridade” (cf. n. 47). A celebração dos sacramentos “prepara os
fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem
devidamente a Deus e praticarem a caridade” (n. 59). “A penitência do tempo
quaresmal não seja somente interna e individual, mas também externa e social” (n.
110).
[14] Evangelii Gaudium, nn. 24. 270
[15] ibid., n. 14.
[16] ibid.
[17] ibid., n. 63.
[18] ibid., n. 47.
[19] ibid., n. 47.
[20] ibid., n. 200.
[21] ibid., n. 48.
[22] ibid., n. 200.
[23] ibid., n. 262.
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