“Teu povo será o meu
povo, e o teu Deus será o meu Deus” (Rt 1,16).
Dentro do bloco dos chamados “livros históricos” na Bíblia
cristã, há quatro livros que podem ser definidos como “novelas bíblicas”:
narrativas ou contos sobre diversos aspectos da vida quotidiana, de caráter
didático. São eles: Rute, Ester, Judite e Tobias.
Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos a análise dessas narrativas com um
dos dois livros protocanônicos da lista (aceitos por todas
as igrejas cristãs): o Livro de Rute
(Rt).
1. Breve introdução
ao Livro de Rute
Enquanto na Bíblia Hebraica o Livro de Rute aparece
entre os Escritos (Ketubim), na
Bíblia cristã ele se encontra após o Livro dos Juízes (Jz), devido ao
primeiro versículo: “No tempo em que os
juízes governavam...” (Rt 1,1). Porém, Rute não faz parte da literatura deuteronomista, à qual pertence Juízes.
Na tradição hebraica, Rute faz parte dos cinco “Megillot”,
os cinco “rolos” lidos nas principais festas. Por sua referência à colheita e à
fidelidade à aliança, costumava ser lido na Festa das Semanas (Shavuot).
Seu autor (ou autora, dado o protagonismo das mulheres na
obra) é desconhecido. Sua datação também é bastante incerta, embora a maioria
dos estudiosos o situe no período pós-exílico, entre os séculos V e IV a. C.
Nesse período ocorre a reforma de Esdras e Neemias, que
“fecham” o Judaísmo a influências externas, proibindo casamentos com
estrangeiros. Para alguns estudiosos, Rute
(assim como Jonas) seria uma crítica
a essa reforma, colocando uma mulher estrangeira como antepassada do rei Davi.
O Livro de Rute pode ser dividido em quatro “cenas”,
além de um epílogo, cada uma situada em um local:
a) Rt 1,1-22: Em Moab - Noemi retorna a Belém,
acompanhada por Rute;
b) Rt 2,1-23: Nos campos de Belém (dia) - Rute trabalha
no campo de Booz e Noemi trama casá-los;
c) Rt 3,1-18: Nos campos de Belém (noite) - Rute
executa o “plano” de Noemi;
d) Rt 4,1-13a: Na porta da cidade - Casamento de Rute
com Booz;
e) Rt 4,13b-22: Epílogo, incluindo a genealogia de
Davi (vv. 18-22).
A trama pode ser assim resumida: em um período
de fome, uma família natural de Belém (Bet-Lehem,
“casa do pão”) é obrigada a migrar para um país estrangeiro, Moab. Lá os dois filhos
casam-se com mulheres moabitas, mas falecem, assim como seu pai. Noemi, a
viúva, decide então retornar a Belém, sendo acompanhada por uma de suas noras,
Rute, que se nega a abandoná-la (seu nome, com efeito, significa “companheira”
ou “amiga”).
Em Belém, Rute vai trabalhar nos campos de Booz (ou Boaz), parente de
Noemi, a qual arma um “plano” para casá-los. Booz exerce então a função do go’el (traduzido como “redentor” ou “defensor”):
casa-se com Rute para assegurar a continuidade da família e a posse das suas terras.
Rute e Booz (Julius Schnorr von Carolsfeld) |
Embora Deus não intervenha diretamente na história, embra seja invocado várias vezes, a teologia do livro gira em torno de sua
misericórdia-fidelidade, hesed (Rt
2,20: o Senhor “não cessa de usar de
misericórdia”). Assim como na história de José (Gn 36–50), Deus age
através da Providência, dirigindo silenciosamente os acontecimentos.
Também os personagens mostram misericórdia uns para com os
outros (Rute que não abandona sua sogra, Booz que alimenta Rute) e são
recompensados. O ápice das bênçãos está no dom do filho, Obed, “pai de Jessé, pai de Davi” (Rt
4,17).
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
do Livro de Rute: Composição
harmônica
Segundo o n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa (ELM) são dois os critérios de seleção dos textos para as
celebrações litúrgicas: a composição harmônica, com o texto em harmonia com o
tempo ou festa litúrgica, e a leitura semicontínua, a proclamação dos principais
textos do livro na sequência [1].
No Rito Romano há apenas uma leitura em composição harmônica
de Rute, especificamente no Apêndice da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, com textos à escolha para as celebrações votivas em
honra da Virgem Maria.
Dentre essas leituras consta Rt 2,1-2.8-11; 4,13-17 [2],
um resumo da história de Rute, que, sendo a “bisavó” do rei Davi, foi
antepassada da Virgem Maria e, por conseguinte, também de Jesus.
Com efeito, a genealogia de Jesus
no Evangelho de Mateus (Mt
1,1-17) menciona abertamente Rute (v. 5). O texto de Lucas, por sua
vez, menciona apenas os homens, Booz e Obed (Lc 3,23-38).
3. Leitura litúrgica
do Livro de Rute: Leitura semicontínua
Sob o critério da leitura semicontínua, por sua vez, nosso
livro é proferido tanto na Celebração Eucarística quanto na Liturgia das Horas.
a) Celebração
Eucarística
Na Celebração Eucarística, como os demais escritos do Antigo
Testamento, o Livro de Rute é lido de
maneira semicontínua nos dias de semana do Tempo Comum (cf. ELM, n. 110),
mais especificamente na sexta-feira e no sábado da XX semana do Tempo Comum do ano ímpar,
logo após o Livro dos Juízes. As duas perícopes selecionadas de Rute oferecem-nos um resumo da narrativa:
XX semana do Tempo
Comum (Ano ímpar)
Sexta-feira:
Rt 1,1.3-6.14b-16.22;
Sábado: Rt
2,1-3.8-11; 4,13-17 [3].
b) Liturgia das Horas
Na Liturgia das Horas, por sua
vez, nosso livro é lido na íntegra, porém apenas no ciclo bienal do Ofício das Leituras, ainda sem tradução para
o Brasil.
A narrativa é dividida em cinco
dias: da quarta-feira da II semana do Advento ao III Domingo do Advento nos
anos ímpares, uma vez que nos anos pares lê-se o Livro de Isaías, como no ciclo anual.
Aqui a leitura de Rute se
situa entre um bloco de textos de Isaías 1–39 e
a profecia de Miqueias, como indica o
n. 147 da Instrução Geral sobre a Liturgia
das Horas [4].
Ofício das Leituras: II semana do Advento (Ano ímpar)
Quarta-feira: Rt 1,1-22 - Fidelidade de Rute;
Quinta-feira: Rt 2,1-13 - Encontro de Booz com Rute;
Sexta-feira: Rt 2,14-23 - Regresso de Rute junto a
Noemi;
Sábado: Rt 3,1-18 - Promessa de Booz.
Ofício das Leituras: III semana do Advento (Ano ímpar)
Domingo: Rt 4,1-22: Booz
se casa com Rute [5].
Na segunda-feira da III semana do Advento, antes do início
de Miqueias, lê-se um interlúdio das Crônicas:
1Cr 17,1-15, o Oráculo do profeta
Natã, com a célebre profecia sobre o Messias vindo da linhagem de Davi.
Concluímos assim esse brevíssimo estudo sobre a leitura
litúrgica da primeira das “novelas bíblicas”: o Livro de Rute. Na próxima
postagem analisaremos o segundo dos escritos protocanônicos que compõe esse
bloco: o Livro de Ester.
Breve bibliografia sobre o Livro de Rute:
LAFFEY, Alice L. Rute. in: BROWN,
Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo
Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 1087-1095.
LANOIR, Corinne. Rute. in:
RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e
Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 629-636.
MELERO, Enrique Cabezudo. Rute.
in: OPORTO, Santiago Guijarro;
GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário
ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 619-628.
PUERTO, Mercedes Navarro. O Livro de Rute. in:
LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São
Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 331-348. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO para Missas
de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 200.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo:
Paulus, 1995.
[4] cf. ALDAZÁBAL,
José. Instrução Geral sobre a Liturgia
das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 86.
[5] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do
texto espanhol divulgado pelo site Dei
Verbum.
Imagens: Wikimedia Commons.
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