terça-feira, 29 de agosto de 2023

Leitura litúrgica do Livro de Rute

“Teu povo será o meu povo, e o teu Deus será o meu Deus” (Rt 1,16).

Dentro do bloco dos chamados “livros históricos” na Bíblia cristã, há quatro livros que podem ser definidos como “novelas bíblicas”: narrativas ou contos sobre diversos aspectos da vida quotidiana, de caráter didático. São eles: Rute, Ester, Judite e Tobias.

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos a análise dessas narrativas com um dos dois livros protocanônicos da lista (aceitos por todas as igrejas cristãs): o Livro de Rute (Rt).

Rute (Edwin Long)

1. Breve introdução ao Livro de Rute

Enquanto na Bíblia Hebraica o Livro de Rute aparece entre os Escritos (Ketubim), na Bíblia cristã ele se encontra após o Livro dos Juízes (Jz), devido ao primeiro versículo: “No tempo em que os juízes governavam...” (Rt 1,1). Porém, Rute não faz parte da literatura deuteronomista, à qual pertence Juízes.

Na tradição hebraica, Rute faz parte dos cinco “Megillot”, os cinco “rolos” lidos nas principais festas. Por sua referência à colheita e à fidelidade à aliança, costumava ser lido na Festa das Semanas (Shavuot).

Seu autor (ou autora, dado o protagonismo das mulheres na obra) é desconhecido. Sua datação também é bastante incerta, embora a maioria dos estudiosos o situe no período pós-exílico, entre os séculos V e IV a. C.

Nesse período ocorre a reforma de Esdras e Neemias, que “fecham” o Judaísmo a influências externas, proibindo casamentos com estrangeiros. Para alguns estudiosos, Rute (assim como Jonas) seria uma crítica a essa reforma, colocando uma mulher estrangeira como antepassada do rei Davi.

O Livro de Rute pode ser dividido em quatro “cenas”, além de um epílogo, cada uma situada em um local:
a) Rt 1,1-22: Em Moab - Noemi retorna a Belém, acompanhada por Rute;
b) Rt 2,1-23: Nos campos de Belém (dia) - Rute trabalha no campo de Booz e Noemi trama casá-los;
c) Rt 3,1-18: Nos campos de Belém (noite) - Rute executa o “plano” de Noemi;
d) Rt 4,1-13a: Na porta da cidade - Casamento de Rute com Booz;
e) Rt 4,13b-22: Epílogo, incluindo a genealogia de Davi (vv. 18-22).

A trama pode ser assim resumida: em um período de fome, uma família natural de Belém (Bet-Lehem, “casa do pão”) é obrigada a migrar para um país estrangeiro, Moab. Lá os dois filhos casam-se com mulheres moabitas, mas falecem, assim como seu pai. Noemi, a viúva, decide então retornar a Belém, sendo acompanhada por uma de suas noras, Rute, que se nega a abandoná-la (seu nome, com efeito, significa “companheira” ou “amiga”).

Em Belém, Rute vai trabalhar nos campos de Booz (ou Boaz), parente de Noemi, a qual arma um “plano” para casá-los. Booz exerce então a função do go’el (traduzido como “redentor” ou “defensor”): casa-se com Rute para assegurar a continuidade da família e a posse das suas terras.

Rute e Booz (Julius Schnorr von Carolsfeld)

Embora Deus não intervenha diretamente na história, embra seja invocado várias vezes, a teologia do livro gira em torno de sua misericórdia-fidelidade, hesed (Rt 2,20: o Senhor “não cessa de usar de misericórdia”). Assim como na história de José (Gn 36–50), Deus age através da Providência, dirigindo silenciosamente os acontecimentos.

Também os personagens mostram misericórdia uns para com os outros (Rute que não abandona sua sogra, Booz que alimenta Rute) e são recompensados. O ápice das bênçãos está no dom do filho, Obed, “pai de Jessé, pai de Davi” (Rt 4,17).

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica do Livro de Rute: Composição harmônica

Segundo o n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM) são dois os critérios de seleção dos textos para as celebrações litúrgicas: a composição harmônica, com o texto em harmonia com o tempo ou festa litúrgica, e a leitura semicontínua, a proclamação dos principais textos do livro na sequência [1].

No Rito Romano há apenas uma leitura em composição harmônica de Rute, especificamente no Apêndice da Coletânea de Missas de Nossa Senhora, com textos à escolha para as celebrações votivas em honra da Virgem Maria.

Dentre essas leituras consta Rt 2,1-2.8-11; 4,13-17 [2], um resumo da história de Rute, que, sendo a “bisavó” do rei Davi, foi antepassada da Virgem Maria e, por conseguinte, também de Jesus.

Com efeito, a genealogia de Jesus no Evangelho de Mateus (Mt 1,1-17) menciona abertamente Rute (v. 5). O texto de Lucas, por sua vez, menciona apenas os homens, Booz e Obed (Lc 3,23-38).

3. Leitura litúrgica do Livro de Rute: Leitura semicontínua

Sob o critério da leitura semicontínua, por sua vez, nosso livro é proferido tanto na Celebração Eucarística quanto na Liturgia das Horas.

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística, como os demais escritos do Antigo Testamento, o Livro de Rute é lido de maneira semicontínua nos dias de semana do Tempo Comum (cf. ELM, n. 110), mais especificamente na sexta-feira e no sábado da XX semana do Tempo Comum do ano ímpar, logo após o Livro dos Juízes. As duas perícopes selecionadas de Rute oferecem-nos um resumo da narrativa:

XX semana do Tempo Comum (Ano ímpar)
Sexta-feira: Rt 1,1.3-6.14b-16.22;
Sábado: Rt 2,1-3.8-11; 4,13-17 [3].

Rute e Booz (Nicolas Poussin)

b) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas, por sua vez, nosso livro é lido na íntegra, porém apenas no ciclo bienal do Ofício das Leituras, ainda sem tradução para o Brasil.

A narrativa é dividida em cinco dias: da quarta-feira da II semana do Advento ao III Domingo do Advento nos anos ímpares, uma vez que nos anos pares lê-se o Livro de Isaías, como no ciclo anual.

Aqui a leitura de Rute se situa entre um bloco de textos de Isaías 1–39 e a profecia de Miqueias, como indica o n. 147 da Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas [4].

Ofício das Leituras: II semana do Advento (Ano ímpar)
Quarta-feira: Rt 1,1-22 - Fidelidade de Rute;
Quinta-feira: Rt 2,1-13 - Encontro de Booz com Rute;
Sexta-feira: Rt 2,14-23 - Regresso de Rute junto a Noemi;
Sábado: Rt 3,1-18 - Promessa de Booz.

Ofício das Leituras: III semana do Advento (Ano ímpar)
Domingo: Rt 4,1-22: Booz se casa com Rute [5].

Na segunda-feira da III semana do Advento, antes do início de Miqueias, lê-se um interlúdio das Crônicas: 1Cr 17,1-15, o Oráculo do profeta Natã, com a célebre profecia sobre o Messias vindo da linhagem de Davi.

Concluímos assim esse brevíssimo estudo sobre a leitura litúrgica da primeira das “novelas bíblicas”: o Livro de Rute. Na próxima postagem analisaremos o segundo dos escritos protocanônicos que compõe esse bloco: o Livro de Ester.

Breve bibliografia sobre o Livro de Rute:

LAFFEY, Alice L. Rute. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 1087-1095.

LANOIR, Corinne. Rute. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 629-636.

MELERO, Enrique Cabezudo. Rute. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 619-628.

PUERTO, Mercedes Navarro. O Livro de Rute. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 331-348. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.

Rute (Catedral de Peoria, EUA)

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 200.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[4] cf. ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 86.
[5] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.

Imagens: Wikimedia Commons.

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