“Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (Lc 1,45).
Ao longo de toda a Sagrada Escritura encontramos diversas
bem-aventuranças, tanto no Antigo Testamento (particularmente nos Salmos) quanto no Novo Testamento, desde
os Evangelhos até o Apocalipse.
A primeira bem-aventurança do Novo Testamento é aquela proferida
pela anciã Isabel à jovem “dona-de-casa” de Nazaré. É o que celebramos no dia 31 de maio, Festa da Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria (Visitatio Beatae Mariae Virginis), mais
conhecida no Brasil como Visitação de Nossa Senhora:
“Festa do Magnificat, a Visitação prolonga e irradia a alegria messiânica da salvação. Maria, arca da nova aliança, é ‘teófora’ (portadora de Deus), saudada por Isabel como Mãe do Senhor. A Visitação é o encontro entre a jovem mãe, Maria, a serva do Senhor, e a anciã Isabel, símbolo de Israel que espera. A solicitude carinhosa de Maria com o seu caminhar apressado (Lc 1,39) exprime, também, juntamente com o gesto de caridade, o anúncio de que os tempos se cumpriram. João, que estreme no seio materno, inicia desde já sua missão de Precursor” [1].
Visitação de Maria a Isabel (Giotto - Basílica Inferior de Assis) |
1. As origens da Festa da Visitação
Embora seja contada entre as “festas marianas”, a Visitação
está relacionada diretamente ao Ciclo da Encarnação-Manifestação do Senhor, como
parte dos acontecimentos que preparam imediatamente o seu Nascimento segundo a
carne, encontrando seu “lugar litúrgico” por excelência, portanto, no Tempo do
Advento (cf. Elenco das Leituras da Missa,
n. 93).
O relato da Visitação (Lc
1,39-56), com efeito, era lido tradicionalmente na sexta-feira da III semana do
Advento, a sexta-feira das Têmporas de inverno (no hemisfério norte), assim
como o relato da Anunciação do Senhor (cf. Lc 1,26-38) era lido na
quarta-feira dessa semana.
Atualmente, o relato da Visitação - às vezes unido ao cântico
da Virgem Maria, o Magnificat (vv. 46-55) -
é proclamado diversas vezes nesse tempo: no IV Domingo do Advento do ano C; nos
dias 21 e 22 de dezembro; no 3º formulário de Missa votiva de Nossa Senhora no Advento.
Fora do Advento, o mistério da Visitação começou a ganhar destaque apenas
a partir do século XIII, como parte da devoção às “alegrias de Maria” promovida
pelos franciscanos. Sua comemoração teria sido inserida no Breviário Franciscano em 1263 pelo então superior da Ordem, São
Boaventura (†1274).
Nesse período, no contexto das Cruzadas, seria edificada uma
igreja na localidade de Ain Karem (ou Ein Kerem), próxima a Jerusalém, identificada como a “região montanhosa” onde habitavam Zacarias e
Isabel (Lc 1,39). Essa igreja, porém,
logo foi destruída pelos muçulmanos (o atual Santuário da Visitação remonta a
1955).
O Arcebispo de Praga, no então Reino da Boêmia (atual
República Tcheca), Johann von Jenstein (†1400; em tcheco, Jan z Jenštejna) teria instituído a Festa da Visitação em sua
Diocese em 1386, a ser celebrada no dia 28 de abril, cerca de um mês após a
Solenidade da Anunciação.
Johan von Jenstein, Arcebispo de Praga: Grande promotor da Festa da Visitação |
A Johann von Jenstein, com efeito, atribuem-se ao menos três
hinos para a Festa da Visitação, posteriormente entoados como sequências antes do Evangelho da
Missa: Ave Verbi Dei parens, Decet huius cunctis horis e Illibata
mente sana.
A festa rapidamente difundiu-se por outras dioceses - Ratisbona (Regensburg), Paris, Reims, Genebra - sendo celebrada em diferentes
datas, a maioria entre o final de junho e o início de julho (associada,
como veremos, à Natividade de São João Batista).
A Festa da Visitação seria estendida para toda a Igreja de
Rito Romano pelo Papa Urbano VI (†1389) pouco antes de sua morte em 1389, decisão
confirmada no mesmo ano por seu sucessor, Bonifácio IX (†1404).
Vale lembrar que o mesmo Urbano VI convocou um Jubileu para o ano seguinte, 1390, celebrado pelo seu sucessor, durante o qual a Basílica de
Santa Maria Maior foi incluída entre as igrejas de peregrinação junto às outras
três Basílicas Maiores.
Instituída no contexto do Grande Cisma do Ocidente
(1378-1417), período de conflito entre Igreja e Estado, alguns Bispos não
acolheram a decisão de Bonifácio IX. Portanto, a instituição da festa foi
confirmada em 1441 pelo Concílio de Florença.
A data escolhida para sua celebração foi o dia 02 de julho, primeiro dia após a Oitava da Natividade de São João Batista.
Com efeito, uma vez que a Solenidade do Natal do Senhor foi
fixada no dia 25 de dezembro, a Natividade de São João Batista passou a ser
celebrada seis meses antes (cf. Lc
1,36), no dia 24 de junho. Para saber mais, confira nossas postagens sobre o culto a São João Batista.
Papa Bonifácio IX, que instituiu oficialmente a Festa da Visitação |
Dado o forte simbolismo do número oito, logo a Natividade do Batista (como diversas festas do Ano Litúrgico) passou a contar com uma oitava, isto é, com uma celebração prolongada por oito dias, culminando no dia
01 de julho, dia em que se recordava a circuncisão e a imposição do seu nome (Lc 1,57-66), conforme a tradição
judaica, bem como o cântico entoado por Zacarias, o Benedictus (Lc 1,67-79)
[2].
Assim, a Festa da Visitação foi fixada no dia seguinte, 02
de julho, celebrando portanto os três meses que Maria permaneceu com Isabel (Lc 1,56), desde a Anunciação até o
nascimento e a imposição do nome a João Batista.
Inicialmente a própria Festa da Visitação contava com uma
Missa da Vigília e uma oitava, suprimidas pelo Papa São Pio V (†1572) no
contexto da reforma litúrgica do Concílio de Trento.
O evento da Visitação ganhou destaque no século XV, ao ser
incluído no rosário como 2º mistério gozoso ou da alegria (cf. João Paulo II, Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, n. 20). Esses mistérios foram
sistematizados pelo dominicano francês Alain de La Roche (†1475) a partir de
tradições precedentes (como o “rosário das cláusulas” da tradição cartuxa).
Mais recentemente surgiram algumas ordens religiosas ligadas
ao mistério da Visitação, que une o anúncio do Evangelho e o serviço humilde de
Maria. A mais célebre é a Ordem da Visitação de Santa Maria (Ordo Visitationis Beatissimae Mariae
Virginis), fundada em 1610 por São Francisco de Sales (†1622) e Santa Joana
Francisca de Chantal (†1641), cujas religiosas são conhecidas como “irmãs
visitandinas”.
2. A Festa da Visitação de Maria hoje
O Papa São Paulo VI (†1978), em sua Exortação Apostólica Marialis cultus (1974), elenca a
Visitação entre “aquelas celebrações que comemoram eventos ‘salvíficos’ em que
a Virgem Maria esteve intimamente associada ao Filho” (n. 7).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, buscando maior
fidelidade aos textos bíblicos, quis situá-la entre as Solenidades da Anunciação
do Senhor (25 de março) e da Natividade de São João Batista (24 de junho).
Visitação (Francesco de Mura) |
Assim, a Festa foi transferida para 31 de maio, dia no qual se celebrava anteriormente a Memória de Nossa Senhora Rainha, que passou para o dia 22 de agosto, oito dias após Solenidade da Assunção.
Vale recordar que essa data geralmente coincide com o Tempo
Pascal, razão pela qual deve ser celebrada à luz da espiritualidade própria
desse tempo. Além disso, quando coincide com as Solenidades de Pentecostes, da Santíssima Trindade ou de Corpus Christi, é omitida.
Além da mudança da data, a reforma litúrgica revisou também
as leituras e orações da Festa: antes do Concílio, lia-se Ct 2,8-14 e Lc 1,39-47,
enquanto o “salmo” era formado por alguns versos em honra da Virgem,
provavelmente adaptados da tradição bizantina (“Benedicta et venerabilis es, Virgo Maria...”).
Atualmente são propostas duas opções de leitura à escolha, Sf 3,14-18 ou Rm 12,9-16b, além do cântico de Is 12,2-6 entoado como salmo e o Evangelho de Lc 1,39-56, incluindo o Magnificat. A antiga perícope do Cântico dos Cânticos, por sua vez, passou para o Ofício das
Leituras da Liturgia das Horas (Ct
2,8-14; 8,6-7).
As orações, que anteriormente eram mais “genéricas”, tomadas
de outras celebrações marianas, foram substituídas por textos mais específicos:
- a oração do dia destaca a relação entre a Mãe e o Filho
(“levando no seio o vosso Filho...”) e invoca o Espírito Santo, para que nos
ensine a cantar como Maria o louvor do Senhor (“tema” retomado no Prefácio da
Virgem Maria II);
- a oração sobre as oferendas recorda o “serviço de caridade”
de Maria a Isabel;
- a oração após a Comunhão nos exorta a acolher o “Cristo
sempre vivo”, presente na Eucaristia, “que João Batista pressentiu com exultação
oculto no seio materno” [3].
Quanto à Liturgia das Horas, destacamos os três hinos
próprios para a Festa, os dois primeiros anônimos (séculos XIV e XVI,
respectivamente), e o terceiro de nova composição:
Ofício das Leituras: Veni,
praecelsa Domina (Vem, ó Senhora nossa);
Laudes: Veniens, mater
ínclita (Vem, Mãe Virgem gloriosa);
Vésperas: Concito gressu
petis alta montis (Eis que apressada sobes a montanha).
Santuário da Visitação em Ain Karem: Ao fundo, azulejos com o Magnificat em vários idiomas |
Vale destacar que a Festa da Visitação é celebrada inclusive
por algumas comunidades eclesiais protestantes mais tradicionais, como os
anglicanos e os luteranos, tanto no dia 31 de maio quanto na
antiga data de 02 de julho.
Com efeito, como vimos anteriormente, a Visitação é uma
festa da Mãe e do Filho. Assim como a Festa da Apresentação do Senhor (02 de
fevereiro), a Visitação celebra o “encontro” entre o Antigo Testamento, representado pela
anciã Isabel e por João Batista, último dos profetas (cf. Mt 11,13; Lc 16,16),
e o Novo Testamento: Maria, “arca da nova aliança”, que conduz em seu ventre o
Messias esperado, o Senhor que visita e salva o seu povo (cf. Lc 1,68).
Além disso, a Visitação é também a “festa do Magnificat”, cântico que possui grande
espaço na Liturgia desde o início da Igreja, sendo entoado diariamente nas
Vésperas (oração da tarde da Liturgia das Horas), e ao qual o próprio Martinho
Lutero (†1546) escreveu um comentário. Confira a Catequese do Papa Bento XVI sobre o Magnificat clicando aqui.
Por fim, enquanto no Ocidente a Visitação de Maria possui
grande destaque na Liturgia e na piedade popular, o mesmo não acontece no
Oriente.
Não obstante, algumas Igrejas Católicas Orientais comemoram a
Visitação na sexta-feira após a Páscoa, conhecida na tradição bizantina como
“Sexta-feira Luminosa” ou “Sexta-feira Brilhante”, dia em que se comemora a Mãe
de Deus como “Fonte da Alegria” ou “Fonte da Água Viva”.
A Igreja Católica Greco-Melquita, com efeito, celebra a
“Visitação da Santíssima Mãe de Deus à sua prima Santa Isabel” nesse dia desde 1844,
quando a comemoração foi instituída pelo Patriarca Maximos III Mazloum (†1855).
Canta o kondákion da festa:
“Os exércitos dos anjos ficaram admirados com tua ternura, ó
Mãe de Deus, quando te viram indo com toda pressa e modéstia, de Nazaré à casa
de Zacarias, na Judeia, a fim de servir à Mãe do Batista, grávida na sua
velhice, e ajudá-la durante três meses com profunda humildade e grande amor. Por
isso, eles aclamaram: Salve, Virgem e Esposa!” [4].
Fachada do Santuário da Visitação em Ain Karem |
Notas:
[1] MISSAL ROMANO, Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p.
584.
[2] O Papa São Pio X (†1914), por sua vez, transferiu para o
dia 01 de julho a Festa do Preciosíssimo Sangue de Jesus, instituída em 1849 por
Pio IX (†1878), suprimida pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II e conservada apenas em alguns calendários particulares.
[3] cf. MISSAL ROMANO, p. 585.
[4]. SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.].
Liturgikon: Próprio das Festas no Rito
Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 136.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 154-155.
HOLWECK, Frederick. Visitation
of the Blessed Virgin Mary. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 15. New
York: 1912. Disponível em: New Advent.
LODI, Enzo. Os Santos
do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, pp. 182-184.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, p. 915.
SARTOR, Danilo. Visitação.
in: DE FIORES, Stefano; MEO,
Salvatore [org.]. Dicionário de
Mariologia. São Paulo; Paulus, 1995, pp. 1345-1349.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v.
VII: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Quaresima
all'ottava dei Principi degli Apostoli). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 323-326.
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