“O Senhor, o Senhor, Deus misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel” (Ex 34,6).
Na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos um estudo sobre a presença
do Livro do Êxodo (Ex) nas celebrações do Rito Romano.
Após uma breve introdução, começamos a analisar sua leitura
sob o critério da composição harmônica, isto é, da sintonia com o tempo ou a
festa [1] no ciclo do Ano Litúrgico.
Para acessar a primeira parte desta pesquisa, clique aqui.
Nesta postagem prosseguiremos nosso percurso através da
Celebração Eucarística, dos demais sacramentos e sacramentais e da Liturgia das
Horas.
2. Leitura litúrgica
do Êxodo: Composição harmônica
a) Celebração
Eucarística
Começamos essa segunda parte do nosso estudo com os domingos do Tempo Comum, nos quais
identificamos cinco ocorrências do nosso livro, escolhidas “em relação às
perícopes evangélicas” [2]:
- XI Domingo do Tempo
Comum do ano A: Ex 19,2-6a [3],
texto no qual Deus promete constituir Israel como “um reino de sacerdotes e uma nação santa” (v. 6a). No Evangelho
desse domingo a promessa se cumpre através da eleição dos Doze Apóstolos,
colunas da Igreja, novo Israel (Mt
9,36–10,8).
- XXX Domingo do
Tempo Comum do ano A: Ex 22,20-26
[4], um trecho do “Código da Aliança” sobre a proteção dos marginalizados
(estrangeiros, viúvas, órfãos, pobres), iluminado pela afirmação de Jesus no
Evangelho (Mt 22,34-40): o maior
mandamento é o amor a Deus e ao próximo.
- XVIII Domingo do
Tempo Comum do ano B: Ex
16,2-4.12-15 [5], o episódio do envio do maná, recordado e “superado” por Jesus
no Evangelho (Jo 6,24-35), uma vez
que Ele se apresenta como o “verdadeiro pão do céu”.
- XXIV Domingo do Tempo Comum do ano C: Ex 32,7-11.13-14 [6], a intercessão de Moisés em favor do povo após a quebra da aliança e o consequente perdão de Deus. O tema do perdão está presente, pois, nas três “parábolas da misericórdia” do Evangelho desse domingo (Lc 15,1-32): a ovelha, a moeda e o filho perdidos e reencontrados (na forma breve leem-se apenas as duas primeiras: Lc 15,1-10).
- XXIX Domingo do Tempo Comum do ano C: Ex 17,8-13 [7], a perseverante intercessão de Moisés pelo povo durante a batalha contra os amalecitas, que corrobora a “insistência” da viúva na parábola do juiz iníquo (Lc 18,1-8), exortando a “rezar sempre e nunca desistir” (v. 1).
Prosseguimos o percurso pela leitura do Êxodo em composição harmônica com o Próprio dos Santos, isto é, os formulários com textos específicos para a celebração dos principais santos.
Assim, na Missa da Memória dos Santos Anjos da Guarda (02 de outubro) lemos Ex 23,20-23a [8], um dos textos que fundamentam a devoção aos anjos da guarda: “Vou enviar um anjo que vá à tua frente, que te guarde pelo caminho...” (v. 20).
Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da devoção ao Anjo da Guarda.
Nos Comuns dos Santos, por sua vez, formulários com várias opções de textos para cada “categoria” de santos, propõe-se para o Comum dos Pastores a leitura ad libitum (à escolha) de Ex 32,7-14 [9], com a intercessão de Moisés junto a Deus, recordando que é missão dos sacerdotes rezar em favor do seu povo.
Quanto às Missas para diversas necessidades, formulários nas quais a Igreja reza por várias intenções, propõe-se uma leitura do nosso livro nas Missas pelas vocações sacerdotais e pelas vocações religiosas: Ex 3,1-6.9-12 [10], o relato da vocação de Moisés: “Vai, eu te envio... Eu estarei contigo” (vv. 10.12).
A intercessão de Moisés em favor do povo (Ex 17) (Joseph von Führich) |
O conjunto de celebrações com mais leituras do nosso escrito é o das Missas votivas, celebradas para favorecer a devoção dos fiéis. Primeiramente, nas Missas em honra do Senhor, identificamos seis textos ad libitum em cinco formulários:
Na Missa votiva da Santa Cruz propõe-se Ex 12,1-8.11-14 [11], a mesma leitura da Missa da Ceia do Senhor na Quinta-feira Santa, narrando os preparativos para a Ceia pascal, com a imolação do cordeiro, prefiguração do sacrifício de Cristo na cruz.
Para a Missa votiva da Santíssima Eucaristia, por sua vez, são propostas três leituras:
- Ex 12,21-27: Moisés instrui o povo sobre a celebração da Páscoa, destacando o simbolismo do sangue do cordeiro sobre as portas, sinal que salva da “décima praga” (a morte dos primogênitos);
- Ex 16,2-4.12-15: Deus envia o maná como alimento ao povo peregrino no deserto;
- Ex 24,3-8: a conclusão da aliança do Sinai, com o sacrifício de novilhos e a aspersão do sangue sobre o povo, como na Solenidade de Corpus Christi no ano B [12].
Das três leituras acima, as duas que fazem referência ao
sangue do cordeiro (Ex 12,21-27 e Ex 24,3-8) são repropostas,
naturalmente, na Missa votiva do
Preciosíssimo Sangue do Senhor [13].
Na Missa votiva do
Santíssimo Nome de Jesus há uma leitura do nosso livro à escolha: Ex 3,11-15 [14], o célebre texto no qual
Deus revela seu nome na “sarça ardente”: “Eu
Sou Aquele que Sou... Este é o meu nome para sempre” (vv. 14-15).
Para saber mais sobre o tetragrama sagrado YHWH e suas interpretações, confira nossa postagem sobre a devoção ao Santíssimo Nome de Jesus.
Por fim, para a Missa
votiva do Sagrado Coração de Jesus a Igreja nos sugere a leitura de Ex 34,4b-6.8-9 [15], a autorrevelação do
Senhor como “Deus misericordioso e
clemente, paciente, rico em bondade e fiel” (v. 6).
Cabe recordar ainda que para o Culto Eucarístico fora da Missa são repropostas ad libitum as leituras das Missas
votivas da Santíssima Eucaristia e do Sagrado Coração de Jesus [16].
Passando às Missas votivas em honra da Virgem Maria, conforme
propostas na Coletânea de Missas de Nossa
Senhora, identificamos outros dois textos:
- na Missa da
Bem-aventurada Virgem Maria em Caná, formulário n. 9 da Coletânea, indicado para o Tempo do
Natal (no contexto das festas epifânicas), a leitura própria é Ex 9,3-8a [17], a promessa da aliança, à
qual o povo responde: “Faremos tudo o que
o Senhor disse” (v. 8a). Essa afirmação lê-se em paralelo com a exortação
de Maria nas bodas: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5).
Para acessar as orações e demais indicações de leituras para essa Missa, clique aqui.
Moisés diante da sarça ardente, na qual são estão a Virgem-Mãe e o Filho (Santuário Nacional de Aparecida) |
- dentre as leituras à escolha para as Missas de Nossa Senhora, por sua vez, encontramos Ex 3,1-8 [18], a manifestação do Senhor na “sarça ardente”, episódio tradicionalmente interpretado como “profecia” da virgindade perpétua de Maria: “A sarça estava em chamas, mas não se consumia” (v. 2).
Com efeito, no Cânon de José, o Hinógrafo, que acompanha a recitação do Akathistos da tradição bizantina, Maria é aclamada: “Ave, sarça ardente não consumada”. Para saber mais, confira nossa postagem sobre o ícone do Akathistos.
b) Sacramentos e
sacramentais
Além da Eucaristia, a Igreja nos propõe textos ad libitum do Livro do Êxodo em outros
dois sacramentos e ritos a eles
ligados: no Batismo e na Reconciliação.
Primeiramente, como vimos na postagem anterior, o texto de Ex 17,3-7, sobra a água que brota do
rochedo, é indicado para o I Escrutínio
em preparação aos sacramentos da Iniciação Cristã, tanto em seu dia próprio, o
III Domingo da Quaresma, quanto quando se celebra fora dele [19].
Para o II Escrutínio,
que se celebra ordinariamente no domingo seguinte, tomam-se as leituras do IV
Domingo da Quaresma do ano A. Porém, quando se celebra este rito em outra data,
há outra opção de 1ª leitura: Ex
13,21-22 [20], o relato da coluna de nuvem / coluna de fogo que guiava o povo
na saída do Egito até o mar Vermelho, cuja passagem prefigura o Batismo como
“iluminação”. Esta perícope está relacionada à cura do cego de nascença (Jo 9,1-41), cujo percurso à piscina de
Siloé também é uma imagem do itinerário batismal.
Na celebração propriamente dita do Batismo é indicado o
texto de Ex 17,3-7, a água que brota
da rocha, porém apenas para o Batismo de
crianças [21], uma vez que no Batismo de adultos esta leitura já apareceu
no I Escrutínio.
Passando à “irmã do Batismo”, isto é, a Reconciliação, encontramos duas perícopes do nosso livro à
escolha:
- Ex 17,1-7: novamente
o episódio da “água que brota da rocha”, porém enfatizando aqui o pecado do
povo, que murmura contra Deus: “Tentaram
o Senhor” (v. 7). A dimensão penitencial desta perícope é reforçada pelo Sl 94 (95), também previsto ad libitum para a celebração da
Reconciliação: “Não fecheis os corações
como em Meriba...” (v. 8) [22];
- Ex 20,1-21: os
Dez Mandamentos, propostos aqui como “exame de consciência” [23].
Moisés com as tábuas dos Dez Mandamentos (José de Ribera) |
Quanto aos sacramentais, nosso livro aparece ad libitum em cinco celebrações:
- na Instituição de Acólitos são propostos dois textos eucarísticos: Ex 16,2-4.12-15, o envio do maná, e Ex 24,3-8, no qual alguns jovens ajudam a preparar os sacrifícios que selam a aliança (v. 5), como os acólitos ajudam a preparar o altar para a Eucaristia [24];
- no novo rito da Instituição de Catequistas (De Institutione Catechistarum), promulgado pela Congregação para o Culto Divino em dezembro de 2021 (ainda sem tradução oficial para o português do Brasil), propõe-se dentre as opções de leituras o texto de Ex 3,1-6.9-12, o relato da vocação de Moisés [25];
- na Bênção de instrumentos de trabalho: Ex 35,30–36,1 [26], um elogio aos trabalhadores da construção do santuário: “O Senhor encheu-lhes o coração de sabedoria para executar toda espécie de trabalho...”;
- na Bênção de água por devoção: Ex 7,1-7 [27], a água que brota da rocha, como vimos acima;
- na Bênção de alimentos por devoção: Ex 12,1-4.6-8.11 [28], a descrição da refeição pascal com o cordeiro, pães ázimos e ervas amargas.
c) Liturgia das Horas
No que concerne à Liturgia das Horas, consideremos
primeiramente as leituras longas, proferidas no Ofício das Leituras, dentre as
quais se contam quatro textos do Livro do
Êxodo em composição harmônica:
- no Ofício das
Leituras do Domingo de Páscoa: rezado apenas por quem não participou da
Vigília Pascal na Noite Santa. Portanto, traz como 1ª leitura o célebre texto
de Ex 14,15–15,1 [29] sobre a
passagem do mar Vermelho, seguido do respectivo cântico (Ex 15,1-18), os quais nunca podem ser omitidos na Vigília Pascal.
- no Ofício das
Leituras da Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi): Ex 24,1-11 [30], sobre o sacrifício que conclui e sela a aliança
(versão mais longa do texto lido na Missa dessa Solenidade no ano B).
- no Ofício das
Leituras da Festa da Apresentação do Senhor (02 de fevereiro): Ex 13,1-3a.11-16 [31], a norma sobre a
consagração dos primogênitos ao Senhor, em paralelo com o observado por Maria e
José em Lc 2,22-38.
- no Ofício das
Leituras da Festa dos Santos Inocentes (28 de dezembro): Ex 1,8-16.22 [32], a morte dos meninos
hebreus por ordem do Faraó, “profecia” do “massacre dos inocentes” de Belém a
mando de Herodes (Mt 2,16-18).
Por fim, passamos às leituras breves do Êxodo em composição harmônica,
proferidas nas Laudes (oração da manhã) e na Hora Média da Liturgia das Horas,
as quais também são quatro:
- nas Laudes das
segundas-feiras da Quaresma até a IV semana: Ex 19,4-6a [33], a exortação a cumprir a aliança, pois o Senhor
libertou Israel e o constituiu como seu povo;
- na Hora Média da
Festa da Transfiguração do Senhor (06 de agosto): as teofanias do Êxodo como prefiguração da
Transfiguração de Jesus:
9h: Ex 19,8b-9 - Deus anuncia que virá a
Moisés “numa nuvem escura”;
12h: Ex 33,9.11a - “o Senhor falava com Moisés face a face” [34].
- nas Laudes da
Memória dos Santos Anjos da Guarda
(02 de outubro): Ex 23,20-21a [35],
como na Missa desse dia, que vimos acima: “Vou enviar um anjo que vá à tua frente, que te guarde pelo caminho...”.
Os anjos adoram o Nome de Deus, revelado em Ex 3 (Basílica do Rosário, Lourdes) |
Encerramos assim a segunda parte do nosso estudo sobre a
leitura litúrgica do Livro do Êxodo e
com ela a análise sob o critério da composição harmônica. A terceira parte
desse percurso, portanto, será dedicada à sua leitura semicontínua e ao
“cântico do mar”, entoado na Missa e na Liturgia das Horas.
Atualização: Para acessar a 3ª parte da pesquisa, publicada no dia 25 de maio, clique aqui.
Notas:
[1] cf. ALDAZÁBAL,
José. A Mesa da Palavra I: Elenco das
Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 103.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[4] ibid., p. x.
[5] ibid., p. x.
[6] ibid., p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para
Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o
Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] ibid., p. x.
[11] ibid., p. x.
[12] ibid., p. x.
[13] ibid., p. x.
[14] ibid., p. x.
[15] ibid., p. x.
[16] SAGRADA COMUNHÃO e
o culto do Mistério Eucarístico fora da Missa. Edição típica em tradução
portuguesa para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, pp. 65-67.95.
[17] LECIONÁRIO para
Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 46.
[18] ibid., p.
197.
[19] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição
típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 192.
[20] ibid., p.
215. A 1ª opção é 1Sm 16,1b.6-7.10-13a, a unção de Davi como rei.
[21] RITUAL DO BATISMO DE CRIANÇAS. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São
Paulo: Paulus, 1999, p. 124.
[22] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São
Paulo: Paulus: 1999, pp. 85.129.
[23] ibid., p. 86.
[24] LECIONÁRIO IV: Lecionário
do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil.
São Paulo: Paulus, 2000, pp. 79-80.
[25] Fonte: Site da
Santa Sé.
[26] RITUAL DE
BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 257.
[27] ibid., p. 422.
[28] ibid.
[29] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, p. 459.
[30] ibid., v.
III, p. 549.
[31] ibid., v.
III, p. 1235.
[32] ibid., v. I,
p. 1099.
[33] ibid., v. II,
pp. 84.142.198.257.
[34] ibid., v. IV,
pp. 1164-1165.
[35] ibid., v. IV,
p. 1338.
Imagens: Wikimedia Commons e Centro Aletti.
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