“A observância anual da Quaresma é o tempo favorável pelo qual se sobe ao monte santo da Páscoa” (Cerimonial dos Bispos, n. 249).
Assim o Cerimonial dos Bispos apresenta a Quaresma, “tempo que precede e predispõe à celebração da Páscoa; tempo de escuta da Palavra de Deus e de conversão, de preparação e de memória do Batismo, de reconciliação com Deus e com os irmãos...” (Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 124) [1].
No Rito Romano esse “tempo favorável” (cf. 2Cor 6,2) é marcado pela tradição das “estações quaresmais”, que destacam o caráter de caminho e a dimensão eclesial (comunitária) da Quaresma, como veremos nesta postagem.
A origem das estações quaresmais romanas
A palavra “estação” (em latim statio) vem da terminologia militar, significando originalmente “posto de guarda”, como atesta Tertuliano (†220) em seu tratado sobre a oração (De oratione): “Statio de militari exemplo accepit, nam et militia Dei sumus” - “A estação recebe o nome do exemplo militar, porque também somos o exército de Deus” [2].
Assim, na Liturgia, podemos pensar nas 14 “estações” da Via Sacra, nas quais os fiéis “param” para meditar os passos da Paixão do Senhor, ou as “estações” que costumam realizar-se durante a procissão eucarística da Solenidade de Corpus Christi.
Na antiga Liturgia romana, porém, o termo “estações” designava as celebrações dos dias em que os cristãos, armados com as “armas da penitência” (oração, jejum e esmola), são particularmente chamados à “vigilância”, atentos à exortação do próprio Senhor: “Vigiai e orai...” (Mt 26,41 e paralelos).
Já no século I, como atesta a Didaché, os dias “estacionais” eram a quarta e a sexta: “jejuai na quarta-feira e no dia da preparação (parasceve)” [3]. No século III foi inserido o sábado, como um prolongamento do jejum da sexta.
Os três dias estão associados à Paixão: a quarta-feira, segundo a tradição, seria o dia em que Judas decidiu entregar Jesus; a sexta-feira é, naturalmente, o dia da crucificação; e o sábado é o dia em que o Senhor permaneceu no sepulcro.
Assim, nas “estações quaresmais”, os cristãos são chamados a “permanecer em pé” junto à Cruz e ao sepulcro, a exemplo da Mãe das dores, do discípulo amado e das santas mulheres (cf. Jo 19,25; Mt 27,61 e paralelos).
As stationes (plural de statio), entendidas aqui como a celebração litúrgica presidida pelo Papa, Bispo de Roma, nas principais igrejas da cidade nas quartas, sextas e sábados da Quaresma, começaram a organizar-se a partir do século IV.
Além de honrar os mártires sepultados nas diversas igrejas da urbe, as estações possuíam uma importante dimensão eclesial: eram uma “epifania” (manifestação) da Igreja, reunindo o povo romano, os diáconos e os presbíteros em torno ao seu pastor, que presidia a Eucaristia (cf. At 2,42).
A statio iniciava-se sempre por volta da hora nona (15h) com a reunião do clero e dos fiéis em uma igreja próxima à igreja estacional do dia, que era chamada de collecta (igreja da “reunião”). O Papa iniciava a celebração nessa igreja com o sinal da cruz, a saudação e uma oração inicial.
Formava-se então a procissão rumo à igreja estacional do dia, chamada titulus (igreja “titular”), guiada por um acólito com a cruz processional, seguido do Papa, do clero e dos fiéis.
A procissão era chamada também litania (súplica), pois nela era cantada a Ladainha de todos os Santos. Com efeito, os santos, particularmente os mártires romanos, eram invocados como “companheiros” no caminho quaresmal rumo a Cristo.
Além da Ladainha, durante a procissão podiam cantar-se um ou mais dos sete salmos penitenciais: Sl 6; 31; 37; 50; 101; 129; 142 [4].
Chegando à igreja estacional, omitidos o Ato Penitencial (substituído pelo Kyrie eleison da Ladainha e pela própria procissão penitencial) e o Glória (por ser Quaresma), o Papa recitava a oração do dia e a Missa prosseguia como de costume.
Ao final da celebração um diácono anunciava qual seria a igreja titular onde se celebraria a próxima estação, com sua respectiva collecta.
Uma particularidade ritual expressava a íntima união entre a Liturgia estacional e toda a comunidade cristã de Roma: no momento da fração do pão (ao canto do Cordeiro de Deus), os presbíteros que participavam da statio recebiam das mãos do Papa o fermentum, um fragmento do pão consagrado que levavam reverentemente às suas tituli (igrejas titulares), onde celebravam a Missa para os fiéis que não puderam participar da Liturgia estacional, e só então comungavam.
Da mesma forma, se o Papa não podia estar presente à statio, um acólito lhe levava as saudações da igreja estacional do dia e um curioso símbolo de comunhão: um pouco de algodão embebido no óleo das lamparinas da igreja. Esse algodão era guardado e usado para preencher a “almofada fúnebre” do Papa, sobre a qual repousaria sua cabeça no sepultamento.
As estações quaresmais desenvolveram-se gradualmente até o século VIII, quando todos os dias da Quaresma, da Semana Santa e da Oitava da Páscoa possuíam uma igreja estacional.
Cabe recordar, porém, que a Liturgia estacional propriamente dita, com a procissão, tinha lugar particularmente nos dias penitenciais: nas quartas, sextas e sábados, como vimos acima. Nos outros dias era comum que se celebrasse apenas a Missa na igreja titular, presidida pelo Papa ou pelo respectivo presbítero (posteriormente pelo Cardeal titular da igreja) [5].
No tempo de São Gregório Magno (†604) a “Liturgia estacional” já estava mais ou menos organizada, como atesta o Lecionário de Würzburg (séc. VII), o mais antigo Lecionário romano [6]. Seriam acrescentados alguns “retoques” às estações entre os séculos VIII e IX, como veremos em nossa próxima postagem, na qual traremos a lista das igrejas estacionais romanas.
De Roma essa tradição se espalhou para outras igrejas ocidentais, que também promoviam “procissões penitencias” durante a Quaresma, em comunhão com o Bispo de Roma, tanto na Itália quanto em outros países da Europa (França, Alemanha, etc.).
O ofício estacional entrou em declínio no século XIV, quando a residência do Papa foi transferida para Avignon (França). As estações só seriam retomadas no século XX, através do trabalho do “Collegium Cultorum Martyrum” e do empenho do então Prefeito das Cerimônias Pontifícias, Monsenhor Carlo Respighi (†1947).
Em 1995 o Papa João Paulo II (†2005) elevaria o Collegium Cultorum Martyrum a Pontifícia Academia, que, junto com a Pontifícia Comissão de Arqueologia Sacra, está ligada ao Pontifício Conselho para a Cultura, responsável pelo cuidado das catacumbas e das igrejas históricas de Roma.
Atualmente, o Papa costuma celebrar apenas a primeira estação quaresmal, na Quarta-feira de Cinzas. Nos demais dias da Quaresma, na medida do possível, a Missa na respectiva igreja estacional é presidida pelo Cardeal titular (ou pelo Cardeal Arcipreste, no caso das quatro Basílicas Maiores), se presente em Roma.
A celebração das estações quaresmais hoje
A Constituição do Concílio Vaticano II sobre a sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium (1963), além de recuperar a dimensão batismal própria da Quaresma (n. 109), exorta a redescobrir o alcance eclesial-comunitário da penitência desse tempo (n. 110):
“A penitência do Tempo Quaresmal não deve ser apenas interna e individual, mas também externa e social. A prática da penitência, de acordo com as possibilidades do nosso tempo, as realidades de cada região e as condições dos fiéis, seja incentivada...” [7].
Atenta a essa orientação, a Congregação para o Culto Divino, através da Carta Circular Paschalis Sollemnitatis (n. 16), recomenda que se implementem as estações quaresmais em nossas comunidades como uma das formas de penitência comunitária:
“O caminho de penitência quaresmal em todos os seus aspectos seja orientado para pôr em mais evidência a vida da Igreja local, e para lhe favorecer o progresso. Por isto se recomenda muito conservar e favorecer a forma tradicional de assembleia da Igreja local, segundo o modelo das “estações” romanas. Estas assembleias de fiéis poderão reunir-se, especialmente sob a presidência do pastor da diocese, junto dos túmulos dos santos ou nas principais igrejas e santuários da cidade, ou nos lugares de peregrinação mais frequentados na diocese” [8].
Quaresma, tempo favorável para subir ao monte santo da Páscoa (Caminho do Calvário - Frans Francken II) |
A mesma orientação é dada pelo Missal Romano (p. 174) e sobretudo pelo Cerimonial dos Bispos. Este, em seus números 260-262, descreve a forma de organizar as estações, indicadas sobretudo para os domingos da Quaresma ou outros dias mais adequados (por exemplo, na Quarta-feira de Cinzas).
Os fiéis se reúnem em uma igreja menor (collecta) ou em outro lugar adequado fora da igreja onde se celebrará a Missa.
O sacerdote,
revestido de pluvial roxo ou, na sua falta, de casula roxa, dirige-se ao lugar
onde estão os fiéis, acompanhado dos acólitos e demais ministros. Esses levam o
turíbulo e a naveta, a cruz, os castiçais com velas e o Missal Romano. Se há diácono, convém que este leve o Livro dos
Evangelhos (Evangeliário).
À chegada do
sacerdote entoa-se uma antífona, isto é, um breve canto ou refrão quaresmal. A
celebração inicia-se então com o sinal da cruz e a saudação, após a qual o
sacerdote pode proferir uma monição, introduzindo os fiéis no sentido da
celebração.
O sacerdote
recita então a oração inicial, que pode ser:
- a oração do
dia da Missa votiva da Santa Cruz, que é a mesma oração da Festa da Exaltação
da Santa Cruz (Missal Romano, p.
656);
- uma das
orações da Missa pelo perdão dos pecados (p. 932);
- uma das
orações das Missas pela Igreja (pp. 876-880);
- uma das
“orações sobre o povo” (pp. 531-534) [9].
O Papa Francisco preside a "collecta" da estação da Quarta-feira de Cinzas |
O diácono ou o
próprio sacerdote convida então à procissão com essas palavras: “Vamos em paz, ao encontro do Senhor” ou
outras semelhantes. Forma-se a procissão, como de costume: acólitos com o
incenso, a cruz e as velas; demais ministros; o sacerdote; e os fiéis.
Nessa procissão,
seria importante valorizar a cruz processional, que depois é colocada junto ao
altar, demonstrando a unidade entre os dois momentos da celebração (procissão e
Missa). Se, porém, já houver uma cruz no presbitério, a cruz processional é
colocada na sacristia, preservando a autenticidade do sinal: uma cruz, assim
como também foi único o sacrifício de Cristo (cf. Instrução Geral sobre o Missal Romano, 3ª edição, nn.
117.122.308; Cerimonial dos Bispos,
n. 129).
Durante a
procissão se entoa a Ladainha de Todos os Santos, na qual podem inserir-se
alguns santos, como santo titular da igreja ou o padroeiro do lugar [10]. Se o
trajeto da procissão for mais longo, podem entoar-se também um ou mais “Salmos
Penitenciais”, como vimos acima, ou mesmo cantos quaresmais adequados.
Chegando à
igreja, após incensar o altar, o sacerdote depõe o pluvial, se o usou, e reveste
a casula (ou, se preferir, pode trocar o pluvial pela casula antes de incensar
o altar). Recita-se então a oração do dia e a Missa prossegue como de costume.
Se for mais oportuno, ao invés da Missa após a procissão pode ter lugar uma Celebração da Palavra de Deus ou uma Celebração Penitencial, conforme indicado no Ritual da Penitência [11].
Na impossibilidade de realizar a procissão, a Liturgia estacional pode também ser celebrada através de uma “entrada solene”, como foi realizada na Basílica de São Pedro na Quarta-feira de Cinzas de 2013. Essa entrada solene é particularmente indicada para o 1º Domingo da Quaresma (cf. Carta Paschalis Sollemnitatis, n. 23).
Nesse caso, o sacerdote dirige-se à porta da igreja com os ministros, onde inicia a celebração com o sinal da cruz, a saudação e a oração inicial, como indicado acima.
Forma-se então a procissão de entrada ao canto da Ladainha de Todos os Santos. Após incensar o altar, o sacerdote recita a oração do dia e a Missa prossegue como de costume.
Nos domingos e no Tempo Pascal (a partir da Vigília Pascal inclusive) todos recitam a Ladainha em pé, e, nos demais dias, ajoelhados (cf. Cerimonial dos Bispos, nn. 359.507.529 et al.). Porém, uma vez que aqui a Ladainha substitui a procissão de entrada, todos a recitam em pé.
“Senhor Deus, escutai
propício as nossas súplicas e perdoai os nossos pecados, dando-nos ao mesmo
tempo o perdão e a paz. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade
do Espírito Santo. Amém”
(1ª opção de oração da Missa
pelo perdão dos pecados, uma das opções de oração inicial a ser recitada nas
estações quaresmais; Missal Romano,
p. 932).
Notas:
[1] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO
DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório
sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 112.
[2] TERTULIANO. A oração. in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do
Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fátima, 2003, p. 202.
[3] Didaché ou Doutrina dos Doze Apóstolos. in: CORDEIRO, op. cit., p.
96.
[4] Há outros salmos de
súplica no Saltério que incluem o pedido de perdão pelos pecados. Esses se
consagraram dado o forte simbolismo do número sete (associado, por exemplo, aos
“sete pecados capitais”).
[5] Cada Cardeal recebe o
cuidado espiritual sobre uma das igrejas de Roma, expressando seu vínculo com o
Papa. Assim, embora na prática todos sejam Bispos (salvo raras exceções), os
Cardeais dividem-se em três ordens:
Cardeais Bispos: aos quais
se confia de uma das antigas dioceses vizinhas a Roma;
Cardeais Presbíteros: aos
quais se confia as igrejas titulares (tituli);
Cardeais Diáconos: aos quais
se confiam igrejas menores, chamadas diaconias.
[6] Também João, diácono
romano (†880), em sua Vida de São
Gregório Magno (Sancti Gregorii Magni
Vita), atesta que este Papa “organizou com solicitude as estações nas
basílicas e nos cemitérios dos santos mártires, de acordo com o que o povo
romano sempre fizera” (CORDEIRO, op. cit.,
p. 1484).
[7] CONCÍLIO ECUMÊNICO
VATICANO II. Documentos. Brasília:
Edições CNBB, 2018, p. 64.
[8] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO
DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A
preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018,
p. 13. Coleção: Documentos da Igreja,
n. 38.
[9] A 3ª edição típica do
Missal Romano (2002), ainda sem tradução para o Brasil, traz uma “oração sobre
o povo” para cada dia da Quaresma, desde a Quarta-feira de Cinzas até a
quarta-feira da Semana Santa, as quais podem ser proferidas à escolha (ad libitum). Para saber mais sobre as mudanças da 3ª edição do Missal Romano, clique aqui.
[10] A forma “básica” da Ladainha de Todos os Santos é aquela entoada na Vigília Pascal (Missal Romano, pp. 284-285), no Batismo
e nas Exéquias, com versões ligeiramente distintas para outras celebrações:
ordenações, profissão religiosa, dedicação de igreja...
Para as procissões solenes,
como é o caso das “estações quaresmais”, há uma versão mais longa da Ladainha,
indicada no Graduale Romanum (1974).
Esta, porém, infelizmente não possui uma tradução oficial para o português do
Brasil.
[11] cf. RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999. No Ritual há dois modelos de celebrações penitenciais próprios para o Tempo da Quaresma (pp. 191-204).
Referências:
ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre o Missal Romano: Texto
e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007.
CERIMONIAL DOS BISPOS. Cerimonial da Igreja. Tradução portuguesa da
edição típica. São Paulo: Paulus, 1988.
MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo:
Paulus, 1991.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El Año Litúrgico;
El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 747-752.
Postagem publicada
originalmente em 07 de março de 2014. Revista e ampliada em 02 de janeiro de 2022.
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